Joel Silveira (Foto: FEB).
Domingo, 03 de julho de 2011.
O último romântico do jornalismo
“À semelhança da esmagadora maioria dos cariocas, sinto-me
perfeitamente feliz nesta cidade. Aqui cheguei numa tórrida manhã de fevereiro
(mais precisamente, na manhã do dia 13 de fevereiro de 1937), vindo pelo
Itagiba, simpático ferro-velho que os alemães iriam afundar, cinco anos depois,
exatamente na boca do rio Real, lugar onde acaba Sergipe e começa o resto do
mundo. Quando desembarquei no Armazém 13 (numerozinho jóia!) tinha de mim 18
anos incompletos, 200 mil réis e uma carta de apresentação para um figurão
federal, carta que, aliás, nunca foi entregue, pois o destinatário mandava
dizer sempre que não estava quando eu ia procurá-lo (já morreu o infeliz, e que
a terra lhe seja leve). Vim — e aqui estou. O meu querido Paulo Mendes Campos
escreveu certa vez, e acertou em cheio, que ‘o carioca tem o gosto e o dom de
igualar os homens, de refugar as sofisticações, de considerar apenas em cada
pessoa, independente de qualquer valor, a sua capacidade de convívio’. Sem
querer ser imodesto, acho que sou também mais ou menos assim. Como igualmente
me repugna, como ao Rio, na citação de PMC, ‘qualquer pose ou afetação’. De
forma que sendo o Rio como é e sendo eu como sou, nosso convívio tem sido
bastante fácil — e só não é mais por culpa exclusiva minha, que às vezes
engrosso sem motivo. Mas isso só se dá quando, movido por incontroláveis
impulsos telúricos, deixo por alguns instantes de ser carioca e volto a ser
nordestino. O que, graças a Deus, vem acontecendo cada vez mais raramente”.
A autodescrição encerra um texto de Joel Silveira chamado
Rio, do livro Memórias de Alegria, e é bem coerente com a personalidade
irrequieta do sergipano que morreu naquela cidade que o adotou, ou que ele
adotou como sua, já há quase quatro anos, no dia 15 de agosto de 2007. Seis
meses antes de morrer, já alquebrado pelo câncer de próstata que o consumiu por
alguns anos, abatido pela inevitável velhice, Joel Silveira bafejou o cansaço
e, sem perder o vezo, proferiu uma sentença tão cáustica quanto muitas das suas
reportagens: “O Brasil, hoje, não é um bom assunto. Estamos vivendo uma vida
política medíocre”.
Joel Silveira, que morreu, aos 88 anos, estava se referindo
à corrupção, aos escândalos que andaram sacolejando os podres poderes
brasileiros, à violência que viceja na impunidade e a outros males que tais.
Ele falava como se ainda tivesse forças para escrever, se quisesse, mas não
queria mais. Cansou. Para ele não valia mais a pena.
O lagartense Joel Silveira foi talvez o último romântico do
jornalismo. Foi de um tempo épico quando o mundo girava mais lentamente, os
jornais valorizavam a grande reportagem e a política estava muito acima de ser
um meio fácil de ficar rico. As suas reportagens, publicadas em alguns dos mais
de 40 livros que lançou em vida, têm um estilo literário que caiu em desuso
nesses dias de lides plastificados, prontos a responder perguntinhas básicas.
“Joel usa intensamente recursos de ficção para descrever com
maior riqueza os fatos que narra; lança mão da metalinguagem, de flashbacks e,
muito fortemente, de referências ao que andava por seu mundo interior no
momento em que ocorrem os fatos narrados”, diz o jornalista Leão Serva, no
posfácio do livro A feijoada que derrubou o governo, de 2004, o penúltimo do
prolífico Joel (o último foi O inverno da guerra, de 2005).
A reportagem que dá título ao livro talvez seja o exemplo
mais bem acabado de um cada vez mais raro subjetivismo aplicado ao jornalismo.
É a descrição do dia do golpe de 1964. Perambulando pelo Rio de Janeiro na madrugada
de 1º de abril, ele recorda incrédulo de um poderoso banquete ocorrido dias
antes do golpe, na casa de um jovem ministro, onde, testemunha ocular da
história, naturalmente estava presente.
Na ocasião, poderosos comensais se deliciaram da mais gostosa
feijoada de todos os tempos, regada a perfeitas batidas de limão e maracujá, e
revelavam sua confiança absoluta no “dispositivo”, o esquema de segurança de
João Goulart. Os ecos da festa torturavam Joel Silveira, que andava perdido
pelas ruas do Rio, já totalmente controladas pelo Exército golpista. Ele
conclui que toda a energia do dispositivo tinha se esgotado na digestão daquela
feijoada: “O dispositivo era somente aquilo: o tenro charque do Rio Grande, a
língua especial trazida de Teresópolis, o orgulhoso e impávido paio português,
a dourada salmoura, a primorosa batida de maracujá e também a não menos soberba
batida de limão, a imaculada farinha do Nordeste?”.
Ele retorna ao passado recente para relembrar os comícios,
os manifestos, as greves, as briguinhas de bastidores, a arrogância dos
políticos que cercavam o presidente. “Entre o Comício da Central e a sua queda,
no alvorecer do dia 1º de abril, João Goulart não iria mais sair; e mergulhado
assim no patético sonambulismo que dele se havia apoderado a partir das 21h45
do dia 13 de março, quando, obnubilado e ofegante, conseguiu vencer a multidão
e chegar ao seu carro, ele iria ser apenas o simbólico epicentro do terremoto
que se armava em seu redor e que não tardaria a explodir, pondo abaixo em segundos
tudo aquilo, esperança dos comandados e promessa dos comandantes, que o
feijoadesco ‘dispositivo’ garantia defender de todas as maneiras”.
No dia posterior à morte do velho jornalista, Hélio
Fernandes escreveu na Tribuna da Imprensa: “Passo em revista os mais de 60 anos
de amizade, de convivência, de admiração por Joel Silveira, o homem que durante
quase 70 anos foi considerado o maior repórter brasileiro. Se no Brasil
houvesse um Prêmio Pulitzer (destinado apenas a repórteres-escritores), quase
todo ano ou a cada livro, teria que ser entregue ao Joel”.
Mas ele próprio, casmurro, era avesso a homenagens. “Esse
negócio de bom ou grande repórter, o maior repórter do Brasil, eu acho uma
idiotice completa. Sempre fui cáustico na minha maneira de ser, mas nunca fui
agressivo, nunca ofendi ninguém”, dizia Joel Silveira, que uma vez prescreveu a
seguinte receita para ser um bom jornalista: “Paciência, persistência e sorte”.
Como se fosse fácil.
O “víbora”, como o alcunhou Assis Chateaubriand, era, acima
de tudo, íntimo das palavras. “Ele tinha o segredo do adjetivo. Com um adjetivo
ele destruía uma reputação”, brinca Ledo Ivo. “Era uma língua que unia ironia e
até sarcasmo, com uma grande dose de poesia e de ternura. Creio que ele ficará
na literatura brasileira e será redescoberto. Seu estilo admirável será
admirado e será amado”, prevê o alagoano, acadêmico e amigo. Que assim seja.
Cláudio Abramo
Coincidência de agosto: já há quase 24 anos morria outro
importante jornalista, este de São Paulo, o Cláudio Abramo. Formador de uma
geração de profissionais de jornal, ele dizia que a ética do jornalista é a
mesma do marceneiro. Ou seja, ética, só há uma: a do cidadão. Há pouco, Roberto
Müller Filho, um discípulo dele, escreveu que, quando cuidava do Projeto Folha
(que acabou transformando o diário paulista no maior jornal do País), Abramo
apresentou ao Otávio Frias de Oliveira três nomes de jornalistas conhecidos
para agregar influência ao jornal. Müller argumentou depois que os três nomes
que ele sugerira eram competentes, mas nem sempre falavam bem dele. Ao que
Abramo respondeu com uma lição: “Eu sei, mas são grandes jornalistas e têm
direito ao trabalho”.
Homens éticos do naipe de um Cláudio Abramo e de um Joel
Silveira fazem falta à imprensa brasileira.
Texto reproduzido do site: destaquenoticias.com.br
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