Foto: Luciana Whitaker.
Publicado originalmente no site da Revista do Brasil, em 04/04/2013.
Fígado de Jaguar.
Entre os muitos mistérios que a medicina não decifrou, um
envolve diretamente o fígado desse jornalista, cartunista e um dos personagens
mais folclóricos da imprensa e da boemia.
Por Tom Cardoso publicado
Aos 77 anos, e consumidor de chope há mais de meio século,
ele próprio calcula: 10 chopes por dia, em média; 3.650 por ano; mais de 200
mil litros de experiência. O fígado do cartunista, por um milagre, está zerado.
Ao médico ele foi apenas uma vez nas últimas cinco décadas, por insistência da
mulher, a sanitarista Célia Pierantoni. Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, o
Jaguar, se diverte trabalhando. É assim desde que entrou para a revista
Manchete, em 1958. Na época, conciliava o trabalho de desenhista com o de
escriturário do BB. Seu chefe era ninguém menos do que Sérgio Porto, o
Stanislaw Ponte Preta. Trabalhou em grandes publicações, da Senhor, de Paulo
Francis, ao Última Hora, de Samuel Wainer. Hoje é consultor de humor da
Desiderata, editora responsável pelos melhores lançamentos em quadrinhos dos
últimos anos e pelas antologias de O Pasquim – o tablóide que marcou época nos
anos 1960-1970, tendo à frente ele próprio e os melhores vagabundos de Ipanema,
como Ziraldo, Paulo Francis, Tarso de Castro, Millôr Fernandes, Luiz Carlos
Maciel, Sérgio Cabral. A entrevista, ainda inédita, estava guardada pelo
repórter há dois anos. Mas, assim como o fígado do sabatinado, resistiu firme
ao tempo.
Vocês fizeram história com O Pasquim, mas também cometeram
gafes. Recusaram publicar, em 1969, trechos de Cem Anos de Solidão, de Gabriel
García Márquez, que havia acabado de ser lançado.
Quem se recusou a publicar foi o Tarso. Todo mundo achou o
livro genial, até então desconhecido, mas o Tarso, que era o chefe, bateu o pé:
“Imagina se O Pasquim vai publicar livro de cucaracha!” Não saiu uma nota.
Mais tarde se redimiram e fizeram uma entrevista com o
García Márquez no Pasquim.
É, foi em 1971, quando ele veio ao Brasil pela primeira vez,
para ficar hospedado na casa do Oscar Niemeyer em Canoas (RJ). Toda a
intelectualidade estava presente: Ferreira Gullar, Glauber Rocha, todo mundo.
Quando cheguei para a entrevista, o Darcy Ribeiro estava ensinando ao García
Márquez como trepar em rede sem levar tombo.
Eu é que deveria ter tido aquela aula... Logo depois de sair do
Exército, fui à Amazônia, tipo aventura mesmo. Decidi trepar com a filha da
dona da pensão numa rede. Levei um tempo e quase quebrei o crânio. Eu é que
deveria estar na rede com o Darcy, tendo aulas.
Vocês entrevistaram mulheres lindíssimas no Pasquim. O Tarso
deixou alguma pra você?
Só a Betty Friedman (feminista americana). Depois da
entrevista, descolei uma garrafa inteira de batida de limão e fomos bebê-la no
Antonio’s. Depois da oitava dose, eu já estava achando a Betty parecida com a
Ava Gardner. Tentei beijá-la, mas ela me deu uma joelhada.
Já tomou viagra?
Tomei uma vez. Mas só para me masturbar. Viagra é ótimo para
a memória: de vez em quando eu esqueço como é uma mulher nua.
Ao contrário do Ziraldo, você diz que já broxou várias
vezes...
Já broxei muito. Você não sabe como é bom broxar. O cara que
não broxa é como um vibrador: liga, aperta o botão, e pronto. É uma delícia
ficar insistindo. E tem outra coisa: a mulher adora quando consegue fazer o
cara sair do prejuízo, se sente orgulhosa, uma heroína. O cara que vive de pau
duro não pode dar esse prazer à mulher. E outra coisa: é mentira que o Ziraldo
nunca broxou. O bordão dele é mentiroso. Eu tenho como provar. Andei namorando
uma cantora lésbica, muito bonitinha. Não vou dizer quem. De repente tem filho
dela por aí. Vai me processar. Nós fomos para um hotel. No meio da conversa,
surgiu a história do Ziraldo, de que ele nunca havia broxado. Ela levantou
indignada: “Não é bem assim, não”. E eu: “Como você sabe?” E ela: “Ele esteve
comigo e não aconteceu absolutamente nada”.
Parece que ele fumou um baseado e vomitou. Na verdade, é preciso dar um
certo crédito ao Ziraldo, já que não foi tecnicamente uma broxada. Ele nem chegou
a ficar de pau duro. Eu também sou assim: toda vez que fumei maconha, vomitei.
A cocaína era a droga da moda do Pasquim.
Todo mundo cheirava, todo mundo. Menos eu, que ficava na
biritinha. Ah, o Sérgio Cabral também não. Ele já sabia que seria pai do futuro
governador do Rio. Não podia dar bandeira.
É verdade que o Carlos Drummond de Andrade era louco por sua
primeira mulher, a Olga Savary?
Sim. Ele cansou de dar em cima da Olga. Nós nos encontramos
na mesma lotação, a caminho da cidade. Naquele tempo, ainda não havia o aterro
e as ondas batiam à beira-mar e molhavam todo mundo dentro do ônibus. E o
Drummond ali, impassível. Ele era caladão, como o Manuel Bandeira, mas gostava
de mulher. Era um velhinho assanhado. Eu morava na mesma quadra que ele e de
vez em quando ele passava pelo meu prédio. Cantou a Olga no elevador, de um
jeito discretíssimo, é claro. Ela me contou e eu mandei avisá-lo que iria
enchê-lo de porrada. Imagine, eu batendo no meu ídolo, o Drummond.
Quando você decidiu viver do humor?
Eu era um garoto asmático, muito doente. Enquanto os outros
caras jogavam bola, andavam de bicicleta, eu sofria com a asma. Meu pai é
paulistano, mas morou muitos anos no Sul. Era apaixonado por Buenos Aires,
pelas bibliotecas de lá. Aqui não tinha biblioteca, não tinha nada. Ele trazia
uma pilha de livros da Argentina, tudo o que você podia imaginar: Kafka,
Baudelaire, Rimbaud. E os livros que você lê dos 11 aos 18 anos são os livros
que o marcam. E eu não fazia outra coisa. Só lia. Essa foi a vantagem de ter
asma. A única, mas me salvou. Eu sou carioca, mas, por causa dos meus problemas
de saúde, meu pai decidiu morar em Juiz de Fora e depois em Santos. Quando
melhorei da asma, mudei para o Rio. Acho que o meu pai preferia que eu
continuasse asmático. O Carlos Drummond de Andrade era caladão, como o Manuel
Bandeira, mas era um velhinho assanhado. Cansou de dar em cima da Olga, minha
primeira mulher
Seu pai não desistiu de pagar seus estudos?
Não. Ele me matriculou no Colégio Rio de Janeiro. Não durei
uma semana. Fiz uma redação e usei uma palavra pouco usual. E o professor:
“Olha, a redação está boa, mas você usou uma palavra que não existe”. Respondi
na mesma hora: “O que não existe é um professor de português ignorante, que
nunca leu Eça de Queiroz. Analfabeto!” Ele me deu uma reguada. Passei por mais
alguns colégios e finalmente concluí o curso clássico num colégio do Largo do
Machado. Aí veio o Exército. Foi uma carreira brilhante. Cheguei a cabo e
terminei a carreira rebaixado, como soldado raso.
Por que foi rebaixado?
Por causa de um sargento chamado Gambine. Ele cismou que eu
era veado porque era intelectual. Lia Rimbaud o tempo todo. E eu era o soldado
424, olha o meu azar. E todo mundo ali, perfilado, e o sargento Gambine me
chamava: “Ô, 424, passo a frente!” E jogava um fuzil no meio do meu peito, com
toda a força. E perguntava: “Que fuzil é esse?” Toda a tropa já sabia o que eu
ia responder: “É uma espingarda”. O sargento ficava furioso. Nos oito meses que
fiquei no Exército, passei, pelo menos, a metade preso, por causa da maldita
espingarda. Acabei rebaixado, depois de ser pego em flagrante por um
comandante. Por ser cabo, eu era chefe da guarda de um monumento histórico na
Barra da Tijuca. Comandava três soldados. Um dia, um comandante, que nunca ia
lá, resolveu levar a família para conhecer o forte. Chegou lá e viu os quatro
soldados de cueca, cercados de garrafas de pinga. Minha carreira militar acabou
ali. Cheguei a comer a mulher de um sargento. Eu e metade da tropa. Ela era
ninfomaníaca.
Foi sua primeira vez?
Não. A primeira foi com duas empregadas. Eram duas alemãs,
de Santa Catarina. E eu, magrinho. Elas me pegaram, levaram para o quarto delas
e me curraram. E diziam que se eu contasse para a minha mãe cortavam meu pau.
Fiquei traumatizado. Quando me lembro da minha primeira experiência, fico
horrorizado. Deixei de comer muita prima por causa das duas alemãs.
O Hélio Fernandes (irmão de Millôr) chegou a dizer que você
desenhava mal e que jamais deveria largar o trabalho de escriturário...
Ele estava certíssimo. Sempre fui um péssimo desenhista.
Mas seu chefe no Banco do Brasil, o Sérgio Porto (o célebre
cronista e humorista Stanislaw Ponte Preta), dizia que você levava jeito...
O Sérgio Porto era fantástico. Foi uma sorte que eu dei. Já
tinha procurado outros empregos, mas nada dava certo. Cheguei a trabalhar numa
agência de publicidade, mas vi que não levava jeito. Depois fui vender vinhos
em lojas. Recebi um mostruário e bebi tudinho. Eu era um desastre. Aí resolvi
entrar para a Marinha Mercante. Fiz um concurso e passei. Meu plano era ficar
rodando o mundo, enchendo a cara e comendo mulher. Aí me apaixonei e casei com
a Olga Savary. Tinha de levar a vida a sério. Resolvi fazer concurso para o
Banco do Brasil e passei. Mas tirei zero em datilografia, que na época ainda
não era eliminatória. E o meu trabalho seria justamente datilografar ordem de
pagamento.
E como se virou?
Eu cheguei lá, vi qual era o meu serviço e resolvi ir
embora. O meu chefe me pegou pelo braço e perguntou: “Você tem algum parente
médico?” Eu disse que tinha vários primos médicos. E ele: “Pega uma licença
médica e faz um curso intensivo de datilografia. Qualquer débil mental aprende
a bater a máquina. Até você”. Era o Sérgio Porto.
Ele já era um grande cronista...
Sim, escrevia na Tribuna da Imprensa. Ele ficou seis meses
comigo e se demitiu. Depois, me chamou para ilustrar os livros do Stanislaw
Ponte Preta. Eu ia lá na casa dele, na Leopoldo Miguez, em Copacabana. Fomos
muito amigos. Ficamos várias vezes de porre em pleno expediente. Às vezes
aconteciam algumas cagadas. Eu fazia ordem de pagamento para o mundo inteiro.
Era para mandar uma ordem de pagamento de 10 mil coroas para Copenhague, na
Dinamarca, e mandei de 100 mil. E pagaram!
Foi possível conciliar o trabalho no Banco do Brasil com o
de cartunista na revista Manchete?
Sim. Naquela época todo humorista tinha de ganhar a vida com
algum emprego sério. Eu entrei na Manchete no lugar do Borjalo, que tinha sido
contratado da revista O Cruzeiro, celeiro dos grandes chargistas da época. Fiz
um concurso, promovido pelo Nahum Sirotzky, diretor da Manchete. Passei, junto
com outros dois chargistas, o Claudius, do Sul, e o Brandão, que era do
Maranhão. O Brandão, aliás, estava animadíssimo, com as malas prontas para vir
pro Rio. Eu perguntei: “Vai viver do quê? De cartunista? Vai morrer de fome,
arruma um emprego logo”. Ele entrou no concurso do Banco do Brasil e largou a
carreira de humorista. Alguns anos atrás o encontrei. Ele estava desgostoso com
a vida de bancário. Culpa minha. Quando casei com a Célia, eu achava que
jornalista era a categoria que mais bebia. Passei a frequentar sua roda de
amigos e descobri que médico bebe muito mais que jornalista
Você participou da equipe fundadora da revolucionária
revista Senhor...
É. Fui demitido da Manchete pelo Sirotzky. Eu fiquei puto.
Saí espalhando barbaridades sobre ele, dizendo que era um centauro, metade
cavalo e metade também. Eu não sabia, mas ele já estava tramando, em 1959, a revista
Senhor, junto com o Carlos Scliar e o Paulo Francis. Quando o projeto deixou de
ser segredo, ele me chamou. Foi a publicação mais importante editada no país. É
claro que O Pasquim teve sua importância, mas a Senhor reuniu um time
imbatível, de Rubem Braga a Drummond, de Fernando Sabino a Carlinhos Oliveira.
Fiquei até o fim, em 1964. Eu tenho essa característica. No Pasquim, também
fiquei do primeiro ao último número. Só na Bundas (extinta revista de humor,
lançada por Ziraldo) saí no meio, brigava muito com o Ziraldo.
Você continua brigado com o Ziraldo?
Não. A gente briga como dois irmãos brigam. Somos amigos há
mais de 50 anos. Só que eu não concordava com essa história de Bundas, de
Pasquim 21, de tentar resgatar os tempos do Pasquim. O jornal já está na
história. Não há mais clima para resgatá-lo.
Vocês passaram um tempo na Vila Militar, no episódio que
ficou conhecido como a “Gripe do Pasquim”. O único que não foi preso foi o
Millôr. O Tarso de Castro jura que ele fez acordo com os militares.
Eu não sei de nada. O que eu disser aqui vai ser puro “achismo”.
Só sei que fui parar na cadeia por pura chantagem sentimental do Paulo Francis.
Que chantagem?
Eu estava muito bem escondido, na casa de um dos maiores
reacionários da história: o Flávio Cavalcanti. O cara que depredou o Última
Hora, do Samuel Wainer. Ou seja, não seria encontrado nunca pelos militares.
Estava em excelente companhia, com a Leila Diniz, tomando o uísque do Flávio
Cavalcanti, sem culpa. Eu estou lá, no bem-bom, e liga o Paulo Francis, que já
estava preso: “Vocês têm de se entregar só para prestar depoimento. Se não
vierem, eles não soltam a gente”.
E você?
Eu disse que não ia. Que não queria ser preso. Ele fez uma
voz dramática, embargada, e disse: “Segue a voz da sua consciência”. Fodeu.
Fiquei com remorso. Liguei para o Sérgio Cabral, contei a história, e ele
decidiu ir comigo. No meu caminho, encontramos o Flávio Rangel: “Eu também
vou”. E eu: “Mas eles nem te chamaram!” E ele: “E como fica a minha
consciência?” E o pior é que o Rangel estava
com uma mala enorme, pronto para prestar depoimento! É claro que os caras iriam
aproveitar e enquadrá-lo ali mesmo. Quando chegamos em frente à Vila Militar,
eu tive uma intuição e disse para o chofer do táxi: “Volta para o primeiro
boteco que você encontrar”. Tomei um copo de cachaça e me entreguei. Ficamos
dois meses e ninguém interrogou a gente porra nenhuma.
Sua mulher consegue acompanhá-lo na bebedeira?
Vou dizer uma coisa: quando casei com a Célia, eu achava que
jornalista era a categoria que mais bebia. Depois que passei a frequentar a
roda de amigos da minha mulher, descobri que médico bebe muito mais.
Qual foi o maior bebum que conheceu?
Bebum qualquer um pode ser. Conheço gente que toma três
cervejas e já fica de porre. O Roniquito (Ronaldo de Chevalier, economista) era
assim. Tomava dois uísques e já queria partir para a porrada com todo mundo. O
Paulinho Mendes Campos (escritor) também. O difícil é ser um bom bebedor.
É verdade que você não tem ressaca?
É. Se tivesse ressaca eu não bebia. Não aguentaria. Eu nunca
contei, como o Romário, mas acho que já bebi mais de mil litros de chope
Vai ao médico, se cuida?
Eu não me cuido porra nenhuma. É um milagre. Não tenho
horário para comer, não faço ginástica, não ando. No máximo ando um quarteirão,
de bar em bar. Só fui ao médico agora, quando urinei sangue. Minha mulher me
obrigou a marcar uma consulta, não teve jeito.
Algo de grave?
Não, nada. O médico perguntou há quanto tempo eu não marcava
uma consulta. Eu disse que há 20 anos e que atribuía a esse longo período o
fato de ainda estar vivo. Eles fizeram todos os exames. Gastei uma fortuna,
pois não tenho plano de saúde. Só não fiz toque retal. O médico disse que
queria me apalpar e eu disse que ele só conseguiria se chamasse dois negões.
Ele olhou espantado para mim e quis saber o porquê dos dois negões. E eu: “Para
me segurar”. Acabei não topando, e nunca vou fazer. Vou morrer virgem.
Você chegou a dizer que quando morresse queria que suas
cinzas fossem espalhadas por todos os bares em que bebeu. Vai ter cinza
suficiente?
Para você ser cremado, é preciso registrar em cartório, né?
Fui lá e o cara me perguntou: “Como você quer que suas cinzas sejam
espalhadas?” E eu: “Quero que as minhas cinzas sejam espalhadas pelos bares em
que bebi no Rio”. O cara fez a mesma pergunta: “Será que vai dar?” Eu disse:
“Se não der, é só pegar um pangaré velho, queimar e juntar tudo”. Mas, como não
confio muito nesses caras de hoje, eu mesmo vou fazer um ensaio geral da minha
cerimônia de cinzas.
Já começou a ensaiar?
Ainda é cedo, mas já fiz a lista: serão dez bares por dia
durante alguns meses. Minha mulher acha meio mórbido, mas estou decidido. A
ideia é ótima. Meus amigos também acham. Estão todos animadíssimos com o meu
funeral.
Texto e imagem reproduzidos do site: redebrasilatual.com.br/revistas
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