Umberto Eco caminha diante da estante de livros em sua casa.
/ ROBERTO MAGLIOZZI.
O
autor, em sua casa. / ROBERTO MAGLIOZZI
Publicado originalmente no site do Jornal 'El PAÍS', em 29 MAR 2015.
Umberto Eco: “A Internet pode tomar o lugar do mau
jornalismo”.
Em novo romance, filólogo italiano mergulha no mundo da
"máquina de lama" das notícias.
Por JUAN CRUZ .
Umberto Eco tem na entrada de sua casa em Milão, antes de
sua montanha de livros, o jornal de seu povoado (Alessandria, no Piemonte), que
recebe diariamente. Quando pedimos fotos de sua juventude foi a um computador,
que é o centro borgiano de seu Aleph particular, seu escritório, e encontrou as
fotos que o levam ao princípio de sua vida, quando era um bebê de fraldas. Faz
tudo com eficiência e bom humor, e rapidamente; tem na boca, quase sempre, um
charuto apagado com o qual, com certeza, foge do charuto. Tem uma inteligência
direta, não foge de nada, nem dá voltas. Acostumado a escolher as palavras, as
diz como se viessem de um exercício intelectual que tem seu reflexo nos
corredores superlotados dessa casa que se parece com o paraíso dos livros.
Está com 83 anos; emagreceu, pois faz uma dieta que o afastou
do uísque (com o qual almoçava algumas vezes) e de outros excessos, de forma
que mostra a barriga achatada como uma glória conquistada em uma batalha sem
sangue. É um dos grandes filólogos do mundo; desde muito jovem ganhou
notoriedade como tal, mas um dia quis demonstrar que o movimento narrativo se
demonstra andando e publicou, com um sucesso planetário, o romance O Nome da
Rosa (1980), cujo mistério, cultura e ironia impressionaram o mundo.
Passeamos junto com o escritor. Física e metaforicamente.
Percorremos juntos a imponente biblioteca de sua casa em Milão, onde também
repousam alguns de seus livros de maior sucesso, como O Pêndulo de Foucault e
Apocalípticos e Integrados. Nas mesmas prateleiras também está seu novo
romance, Número Zero, uma ficção sobre jornalismo inspirada na realidade. Um
olhar sobre a informação no século XXI e a Internet, campo de batalha das
ideias, das notícias e das mentiras. Controlar a verdade do que aparece na rede
é, para Eco, imprescindível. Uma tarefa à qual deveriam se dedicar os jornais
tradicionais, para que esses continuem sendo, no futuro, garantidores da
democracia, da liberdade e da pluralidade.
Com esse sucesso que teria envaidecido qualquer um, não
parou de trabalhar, como filósofo e romancista, e desde então o professor Eco é
também o romancista Eco; agora aparece (em vários países do mundo) com um novo
romance que nasce do centro de seus próprios interesses como cidadão: ele se
sente um jornalista cujo compromisso civil o levou durante décadas a fazer autocrítica
do ofício; seu romance Número Zero (cujos direitos no Brasil foram comprados
pela Record, que deve lançá-lo neste ano) retrata um editor que monta um jornal
que não sairá às ruas, mas cuja existência serve ao magnata para intimidar e
chantagear seus adversários. Pode se pensar legitimamente que nesse editor está
a metáfora de Berlusconi, o grande magnata dos meios de comunicação na Itália?,
perguntei a Eco. O professor disse: “Se quiser ver em Vimecarte um Berlusconi,
vá em frente, mas há muitos Vimecarte na Itália”.
Umberto Eco.
Alessandria, 1932. Nasceu no Piemonte, na Itália, onde foi
educado pelos salesianos. Em 1954 se formou doutor em Filosofia e Letras na
Universidade de Turim, onde também foi professor, além de lecionar nas
Universidades de Florença, Milão e Bologna. Beirando os 50 anos, Umberto Eco
obteve um de seus maiores sucessos literários com seu romance O Nome da Rosa,
traduzido para vários idiomas e levado ao cinema. Ao longo de sua trajetória,
conquistou inúmeras premiações, como o Prêmio Príncipe de Astúrias de Comunicação
e Humanidades no ano 2000. Também é cavaleiro da Grande Cruz da Ordem ao Mérito
da República Italiana e cavaleiro da Legião de Honra francesa.
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Pergunta. Um romance sobre o jornalismo. Por quê?
Resposta. Escrevo críticas do ofício desde os anos 1960,
além de ter na carteira o registro de jornalista. Tive um bom debate polêmico
com Piero Ottone sobre a diferença entre notícia e comentário. Escrever sobre
certo tipo de jornalismo era uma ideia que me passava pela cabeça desde sempre.
Há leitores que encontraram em Número Zero o eco de muitos artigos meus, cuja
substância utilizei porque já se sabe que as pessoas esquecem amanhã o que
leram hoje. De fato, alguns me elogiaram. Por exemplo, há quem aplaudiu o que
escrevo sobre o desmentido na imprensa, e já escrevi o mesmo sobre isso há 15
anos! De forma que abordei o tema porque o carrego comigo. Até o princípio do
livro é muito meu, porque esse episódio em que a água não sai da torneira era
também o princípio de O Pêndulo de Foucault. Para aquele alguém me disse que
não era uma boa metáfora, e tirei; mas, para Número Zero, gostei dessa ideia, a
água que fica presa na torneira e não sai, e você espera que saia pelo menos
uma gota. Gostei dessa ideia, fui ao porão, encontrei aquele primeiro
manuscrito e voltei a usar. Tudo é assim: na discussão que há com Bragadoccio
[um jornalista fundamental na trama de Número Zero] sobre qual carro comprar, o
que escrevo é uma lista que fiz nos anos 1990 quando eu mesmo não sabia qual
automóvel queria...
P. O romance está cheio de referências ao cinismo do editor
que cria um jornal para extorquir...
R. Tinha em mente um personagem da história da Itália,
Pecorelli, um senhor que fazia uma espécie de boletim de agência de notícias
que jamais chegava às bancas. Mas suas notícias acabavam na mesa de um
ministro, e se transformavam, em seguida, em chantagem. Até que um dia foi
assassinado. Disseram que foi por ordem de Andreotti, ou de outros... Era um
jornalista que fazia chantagens e não precisava chegar às bancas: bastava que
ameaçasse difundir uma notícia que poderia ser grave para os interesses de
outro... Ao escrever o livro pensava nesse jornalismo que sempre existiu, e que
na Itália recebeu recentemente o nome de “máquina de lama”.
P. No que consiste?
R. Em que para deslegitimar o adversário não é necessário
acusá-lo de matar sua avó ou de ser um pedófilo: é suficiente difundir uma
suspeita sobre suas atitudes cotidianas. No romance aparece um magistrado (que
existiu de verdade) sobre quem se lança suspeitas, mas não se desqualifica
diretamente, se diz simplesmente que é extravagante, que usa meias coloridas...
É um fato verdadeiro, consequência da máquina de lama.
"A imprensa é ainda uma garantia de democracia”
P. O editor, o diretor do jornal que não chega a sair, diz
por meio de seu testa-de-ferro: “É que a notícia não existe, o jornalista é que
cria”.
R. Sim, naturalmente. Meu romance não é apenas um ato de
pessimismo sobre o jornalismo da lama; acaba com um programa da BBC, que é um
exemplo de fazer bem feito. Porque existe jornalismo e jornalismo. O
impressionante é que quando se fala do mau, todos os jornais tratam de fazer
acreditar que se está falando de outros... Muitos jornais se reconheceram em
Número Zero, mas agiram como se estivessem falando de outro. Não pode se limitar apenas a falar do mundo, uma vez que
disso a televisão já fala. Já disse: tem que opinar muito mais sobre o mundo
virtual. Um jornal que soubesse analisar e criticar o que aparece na Internet
hoje teria uma função.
P. O jornalista, em particular, está retratado também como
um paranoico em busca de histórias custe o que custar, e fica babando quando
acha ter encontrado...
R. Acontece quando Bragadoccio encontra a autópsia de
Mussolini... Sempre disse, também quando escrevia romances históricos, que a
realidade é mais fantástica que a ficção. Em A Ilha do Dia Anterior descrevo um
personagem fazendo um estranho experimento para descobrir as longitudes; é
muito engraçado, e as pessoas disseram: “Olha que bonita a invenção do Eco”.
Pois era de Galileu, que também tinha ideias loucas de vez em quando e havia
inventado essa máquina para vender aos holandeses. Se mergulhar na história
pode encontrar episódios mais dramáticos, mais cômicos, e também mais
verdadeiros do que os que qualquer romancista pode inventar. Por exemplo,
enquanto buscava material para Número Zero, encontrei a autópsia inteira de
Mussolini. Nenhum narrador de pesadelos e horrores jamais conseguiu imaginar
uma história como essa, e é verdadeira. E a passei para o personagem Bragadoccio,
jornalista investigativo, que babava enquanto a utilizava para sua crônica
sobre conspiração que inventou.
P. E o senhor não a inventou, claro.
R. Está na Internet, é assim. Então é muito fácil imaginar
que um personagem tão paranoico e tão obsessivo como esse jornalista comece a
desfrutar tanto da autópsia como das caveiras que encontra na igreja de Milão
por onde passa sua história. Também nesse caso da igreja tudo é verdadeiro:
tentei desenhar uma Milão secreta, com essas ruas, essas igrejas, que abrigam
realidades que pareceriam fantasias...
P. Agora a realidade e a fantasia têm um terceiro aliado, a
Internet, que mudou por completo o jornalismo.
R. A Internet pode ter tomado o lugar do mau jornalismo...
Se você sabe que está lendo um jornal como EL PAÍS, La Repubblica, Il Corriere
della Sera…, pode pensar que existe um certo controle da notícia e confia. Por
outro lado, se você lê um jornal como aqueles vespertinos ingleses,
sensacionalistas, não confia. Com a Internet acontece o contrário: confia em
tudo porque não sabe diferenciar a fonte credenciada da disparatada. Basta
pensar no sucesso que faz na Internet qualquer página web que fale de complôs
ou que invente histórias absurdas: tem um acompanhamento incrível, de
internautas e de pessoas importantes que as levam a sério.
P. Atualmente é difícil pensar no mundo do jornalismo que
era protagonizado, aqui na Itália, por pessoas como Piero Ottone e Indro
Montanelli…
R. Mas a crise do jornalismo no mundo começou nos anos 1950
e 1960, bem quando chegou a televisão, antes que eles desaparecessem! Até então
o jornal te contava o que acontecia na tarde anterior, por isso muitos eram
chamados jornais da tarde: Corriere della Sera, Le Soir, La Tarde, Evening
Standard… Desde a invenção da televisão, o jornal te diz pela manhã o que você
já sabe. E agora é a mesma coisa. O que um jornal deve fazer?
P. Diga o senhor.
R. Tem que se transformar em um semanário. Porque um
semanário tem tempo, são sete dias para construir suas reportagens. Se você lê
a Time ou a Newsweek vê que várias pessoas contribuíram para uma história
concreta, que trabalharam nela semanas ou meses, enquanto que em um jornal tudo
é feito da noite para o dia. Um jornal que em 1944 tinha quatro páginas hoje
tem 64, então tem que preencher obsessivamente com notícias repetidas, cai na
fofoca, não consegue evitar... A crise do jornalismo, então, começou há quase
cinquenta anos e é um problema muito grave e importante.
P. Por que é tão grave?
R. Porque é verdade que, como dizia Hegel, a leitura dos
jornais é a oração matinal do homem moderno. E eu não consigo tomar meu café da
manhã se não folheio o jornal; mas é um ritual quase afetivo e religioso,
porque folheio olhando os títulos, e por eles me dou conta de que quase tudo já
sabia na noite anterior. No máximo, leio um editorial ou um artigo de opinião.
Essa é a crise do jornalismo contemporâneo. E disso não sai!
P. Acredita de verdade que não?
R. O jornalismo poderia ter outra função. Estou pensando em
alguém que faça uma crítica cotidiana da Internet, e é algo que acontece
pouquíssimo. Um jornalismo que me diga: “Olha o que tem na Internet, olha que
coisas falsas estão dizendo, reaja a isso, eu te mostro”. E isso pode ser feito
tranquilamente. No entanto, ainda pensam que o jornal é feito para que seja
lido por alguns velhos senhores –já que os jovens não leem— que ainda não usam
a Internet. Teria que se fazer um jornal que não se torne apenas a crítica da
realidade cotidiana, mas também a crítica da realidade virtual. Esse é um
futuro possível para um bom jornalismo.
P. Em seu romance, um editor concebe um jornal que não vai
sair às ruas, para dar medo. É uma metáfora do que acontece?
R. E não só isso. Em Número Zero aprofundo a técnica do
dossiê. A chantagem consiste em anunciar uma documentação, um informe. A pasta
pode estar vazia, mas a ameaça de que existe basta: cada um de nós tem um
cadáver no armário ou pelo menos recebeu uma multa por excesso de velocidade há
30 anos. A ameaça da existência de um dossiê é fundamental. A técnica da
documentação é como a técnica do segredo. Filósofos ilustres, como Simmel e
outros, disseram que o segredo mais poderoso é o segredo vazio. É uma técnica
infantil: o menino diz (enganando): “Eu sei uma coisa que você não sabe!”.
Dizer que sabe uma coisa que o outro não sabe é uma ameaça. Muitos segredos são
vazios, e por isso são muito mais poderosos. Depois você vê os verdadeiros
documentos, e são apenas recortes de imprensa. São vendidos a um Governo e aos
serviços secretos, ou para a polícia, e são dossiês vazios, cheios de coisas
que todos sabiam, menos os serviços secretos.
P. Número Zero é um romance de ficção, mas tudo pode ser
visto na realidade...
R. É do jornalismo real que eu falo. Os jornais
especializados na máquina de lama existem. Nem todos os jornais usam essa
máquina, mas existem os que a utilizam, e por uma modesta soma de dinheiro eu
poderia te dar os nomes...
P. E como sair da lama?
R. Dando notícias credenciadas. O que é maquina de lama?
Normalmente é utilizada para deslegitimar o adversário e desacreditá-lo sobre
questões particulares. Quero dizer que, na época áurea, se você não gostava de
um presidente dos Estados Unidos, já aconteceu com Lincoln e Kennedy, o matava;
era, por assim dizer, um procedimento honesto, como se faz na guerra... Por
outro lado, com Nixon e Clinton se produziu uma deslegitimação com base em
questões particulares. Um incitava a roubar papéis, o outro fazia coisas com
uma estagiária... Essa é a maquina de lama. Poderiam ter dito, algo que não
aconteceu nos Estados Unidos, que Kennedy dormia com Marilyn Monroe; a máquina
de lama teria feito isso... Aquele juiz de Rimini do meu livro (que existiu
realmente, em outra cidade) foi colocado na máquina de lama: usava meias
extravagantes, fumava demais. Na verdade, havia emitido uma sentença que
naquele momento não tinha agradado Berlusconi. E o que o maquinário do
ex-primeiro-ministro fez foi buscar desacreditar sua reputação por meio de
episódios menores. Pode se deslegitimar Netanyahu pelo que faz com a Palestina.
Mas acusá-lo, por exemplo, de pedófilo, então já não estará trabalhando com
fatos, mas estará colocando em funcionamento a máquina de lama.
P. Contra a máquina de lama…
R. As provas, as notícias rebatidas. Para a máquina de lama
é suficiente difundir uma sombra de suspeita ou trabalhar sobre uma fofoca
menor. No fim, na Itália, Berlusconi foi colocado contra as cordas contando o
que ele fazia à noite em sua casa. Podiam dizer dele, e disseram, coisas muito
mais graves, sobre seus conflitos de interesse, por exemplo. Mas isso deixava o
público indiferente. E quando se provou que ele estava com uma menor de idade,
então se viu em dificuldades. Como você pode ver, até defendo o Berlusconi! Ele
foi vencido a partir de revelações sobre sua vida pessoal mais do que por
notícias sobre fatos verdadeiros e outras coisas pelas quais é responsável.
P. O senhor cita em seu livro a Operação Gládio em relação a
fatos que ocorreram após a Segunda Guerra Mundial... Entram aí até as suspeitas
sobre a autoria da matança dos advogados de Atocha... Aquela sombra da extrema
direita agora volta ao mundo com os atentados islâmicos. Um mundo sombrio outra
vez. Qual a sua opinião desse momento outra vez sangrento, protagonizado dessa
vez pelos terroristas jihadistas?
R. É como o nazismo: pensava em restabelecer a dignidade do
povo alemão matando todos os judeus. De onde nasce o nazismo? De uma profunda
frustração. Tinham perdido uma guerra, e é nos momentos de grandes crises que o
cacique de um povo pode congregar a opinião pública em torno do ódio contra um
inimigo. Acontece agora com o mundo muçulmano: três séculos de frustração, após
o império otomano, após o imperialismo, surge essa frustração em forma de ódio
e fanatismo...
P. E como se luta contra isso?
R. Não sei. Estava muito claro como se podia lutar contra o
fanatismo nazista, porque os nacional-socialistas estavam em um território
identificável. Aqui a coisa é mais complexa.
P. Tem medo?
R. Não por mim, por meus netos.
P. O senhor escreveu um livro em que um jornal da lama faz
batalhas sujas sem sair às ruas... Cogita que um dia não haja jornais?
R. É um risco muito grave, porque, depois de tudo que disse
de mau sobre o jornalismo, a existência da imprensa ainda é uma garantia de
democracia, de liberdade, porque especialmente a pluralidade dos jornais exerce
uma função de controle. Mas, para não morrer, o jornal tem que saber mudar e se
adaptar. Não pode se limitar apenas a falar do mundo, uma vez que disso a
televisão já fala. Já disse: tem que opinar muito mais sobre o mundo virtual.
Um jornal que soubesse analisar e criticar o que aparece na Internet hoje teria
uma função, e até um rapaz ou uma moça jovem leriam para entender se o que
encontraram online é verdadeiro ou falso. Por outro lado, acho que o jornal
ainda funciona como se a Internet não existisse. Se olhar o jornal de hoje, no
máximo encontrará uma ou duas notícias que falam da Internet. É como se as
rotativas nunca se ocupassem de sua maior adversária!
P. É adversária?
R. Sim. Porque pode matá-la.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com/brasil
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