Legenda da foto: Sinval no escritório de IMPRENSA em 1988
Artigo compartilhado do site do PORTAL IMPRENSA, de 13 de agosto de 2024
Um destino nada convencional
Perfil: Parte 1
Por Isis Brum*
Inquieto e dono de uma intensa produção intelectual, a motivação de Sinval de Itacarambi Leão foi a busca incessante pela liberdade
Os livros sempre foram uma ameaça. Em qualquer tempo. Em qualquer governo autoritário. Fossem eles manifestos, romances ou textos sagrados. Restritos na Idade Média, queimados nas inquisições, censurados em todas as ditaduras, desprezados nas incoerentes democracias de ultradireita. O perigo deles é saltar do campo das ideias para a vida real: seja Dom Quixote, seja a saga de Jesus Cristo. Certas leituras causam uma intranquilidade para a vida, atiçam um tipo de rebeldia que põe em risco as conveniências – até mesmo alguns destinos.
O jornalismo agrega não só todas essas virtudes como se consolida como força de combate à corrupção do poder público, à censura, às tentativas de manipulação da verdade e de enfrentamento de governos brutais em ditaduras à direita e à esquerda.
Assim, a Revista IMPRENSA, fundada em 1987 por Sinval de Itacarambi Leão e outros três sócios, e da qual é o único diretor, nasceu com o propósito claro de salvaguardar os valores que norteiam a boa prática da profissão, combater injustiças contra a categoria, onde quer que ocorram, e promover o debate constante da categoria impactada pela digitalização, pelas fake news e pela concorrência com as redes sociais e com os influenciadores.
Até aqui, não há dúvidas, de que esta é uma trajetória construída com talento, trabalho e muitas parcerias com jornalistas e comunicadores que Sinval conquistou ao longo de sua carreira. Aos 81 anos, ele afirma que “o que traz notoriedade às pessoas é fazer as coisas”. “Talvez, seja a minha forma de lidar com a realidade”, afirma, em tom de incerteza, quando precisa expor-se de dentro para fora.
O jornalista faz essas reflexões em meio aos relatos de sobrevivência à ditadura militar brasileira. Foi preso duas vezes durante o regime de exceção, em 1969 e 1971, e cruelmente torturado por associação com a ALN (Ação Libertadora Nacional), fundada por Carlos Marighella, e por conspirar contra o País, tendo sido enquadrado na Lei de Segurança Nacional.
Em liberdade vigiada, enfrentou dificuldades para arrumar trabalho, fosse pelos antecedentes criminais, fosse pelo temor dos empregadores em contratar um inimigo do Estado. Depois, para permanecer empregado em razão da perseguição sofrida pelo Exército.
A sua obra jornalística acaba sempre por refletir uma necessidade inata para a liberdade de pensar, opinar, refletir e construir. Sem que horrores como a tortura voltem a ameaçar a expressão de qualquer outro ser humano.
O processo antes da pessoa
- Sinval de Itacarambi Leão. Processo ALN, novembro de 69 - disse o jornalista e escritor Elio Gaspari a Sinval ao ser apresentado por João Roberto Marinho, em São Paulo, na celebração dos 75 anos do Jornal O Globo.
Sinval ficou estarrecido sobre como poderia ser reconhecido pelo seu processo. Mas certos episódios não se arrefecem na linha comprida do tempo, como aquela terça-feira em que o Corinthians receberia o Santos, no Estádio do Pacaembu, e Marighella seria assassinado pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em ação planejada pelo delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Testemunhava, de dentro do Dops, algemado com Roberto Romano, alguns dos episódios mais significativos do regime militar. Foram deixados ali pelos militares da Operação Bandeirante (Oban), onde passou 40 dias incomunicável.
Fazia pouco de mais de um ano que se mudara de São Paulo para o Rio de Janeiro. Passava por um período de muitas mudanças, uma vez que também havia deixado a Ordem dos Beneditinos e a vida monástica para seguir um caminho novo entre os homens comuns.
Com a autorização concedida pelo Vaticano para o seu desligamento, foi recomendado pelos monges beneditinos para o trabalho na revista cultural da Editora Vozes, proprietária dos frades franciscanos, que ficava em Petrópolis, na região serrana do Rio.
Prenúncio de um destino nada convencional
Foram 14 anos de dedicação à Ordem de São Bento a que pertencem os monges beneditinos. As experiências transformadoras da infância para a adolescência e, depois, para a vida adulta, foram atravessadas pelos dogmas morais e espirituais da fé cristã. O contato com o mundo real, iniciado alguns anos antes em algumas viagens e na faculdade, só emergiu efetivamente quando se desligou do monastério, aos 25 anos.
O mais velho entre os seus irmãos, Sinval de Itacarambi Leão veio ao mundo com o sobrenome trocado. Seria o prenúncio de que o primogênito jamais teria um destino convencional.
Nascido aos 23 de fevereiro de 1943, na zona rural de Araçatuba, interior de São Paulo, o cartório onde foi registrado trouxe para perto do nome as raízes indígenas da família paterna, originária da tribo dos Itacarambi - uma corruptela de Itákurubi, que significa “pedregulho, seixos”, segundo o Dicionário de Tupi-Guarani pesquisado por Sinval para descobrir suas raízes. Há uma cidade com esse nome, situada na margem esquerda do Rio São Francisco, ao norte de Minas Gerais. A tribo foi dizimada muito tempo antes de o distrito ascender a município em 1962.
Pertencia a São João das Missões. A exemplo de São Miguel, no Rio Grande do Sul, era um povoado liderado por jesuítas com a missão de catequizar os indígenas entre os séculos 16 e 18. Os religiosos ensinavam a leitura e a escrita para as tribos inseridas nas missões, convertendo os gentios ao catolicismo.
A catequese praticada com os indígenas, naquele período, era bem diferente da que os monges beneditinos ensinariam aos seus devotos no século 20, entre eles, o jovem Sinval. Por volta dos 11 anos, morando na capital paulista com a família há um, estava decidido a seguir com os estudos, ainda que para isso tivesse de se inscrever no noviciado. Era a oportunidade que os religiosos católicos vinham entregar-lhe depois das missões colonizadoras – se é que deixaram de sê-la quando ao outro faltam opções e oportunidades.
Mesmo contrariado, o pai descobriu a vaga para novos alunos no Mosteiro de São Bento. E o menino, sem saber ao certo o que esperar, foi descobrir o seu caminho.
A Ordem de São Bento tem sua origem relacionada aos monges copistas da Idade Média. Por essa razão, possui vasto acervo de livros e documentos raros. Aliás, a biblioteca do Mosteiro, em São Paulo, é a mais antiga da cidade e possui um catálogo de mais de 115 mil exemplares, entre os quais, uma bíblia impressa por Gutenberg, considerado o pai da prensa, datada de 1496.
Havia a sessão dos livros proibidos, que Sinval leu, driblando a fiscalização dos monges, ao lado de um colega curitibano, recém-chegado do Rio, o Paulo Leminski. Leminski ficou no colégio São Bento por apenas um ano, mas a amizade entre os dois durou até a morte do poeta, em 1989. Leram às escondidas as obras de Jorge Amado.
Para os beneditinos, a formação intelectual é tão valiosa quanto a teológica, assim como o hábito da leitura e a postura disciplinar são pilares da Ordem, cujo lema é “ora et labora et lege”, isto é, “oração, trabalho, estudo”.
Havia muito silêncio e introspecção no Mosteiro. Os clérigos eram um pouco menos conservadores se comparados a sacerdotes de outros grupos católicos, o que não os tornava menos rígidos e exigentes. Graças à inteligência, comportamentos podem ser copiados e até aprendidos. Difícil é naturalizá-los quando, em essência, o espírito alça voos em outras dimensões.
Sinval nunca foi uma personalidade fácil – e ele mesmo o admite. A perspicácia intelectual, continuamente enriquecida com a leitura e o estudo de métodos de pensamento crítico, o impeliam a questionar e, sempre que possível, com uma pitada de sarcasmo.
Nem de longe era um mau menino, desrespeitoso. Ao contrário, era diligente, observador. Mas exigissem dele obediência a um conceito, regra ou pessoa com apenas um comando, e teriam dele o oposto. À medida em que crescia, a avenida pavimentada por dogmas de fé se estreitava. E sobre ela ainda trafegava o carro da história e do mundo para depois dos muros do Mosteiro.
Prova disso, foi a fundação do seu primeiro jornal, ainda no noviciado, nomeado El Paredón. O título era uma referência explícita ao paredão para onde os inimigos da Revolução Cubana (1959) eram enviados por Fidel Castro. A publicação incomodou parte dos clérigos, que cogitaram proibir uma nova edição.
Estava à beira de completar 81 anos ao conceder as entrevistas em que relatou o episódio. A expressão facial iluminou-se com uma graça adolescente de contrariar as autoridades por mera zombaria.
Fez-me lembrar de uma cena, em um seriado antigo, em que o cineasta espanhol Luis Buñuel dizia, após filmar, à época, o escandaloso "Viridiana" (1961), que fazia filmes com tal temática (misturando sexo às concepções sagradas da Igreja Católica) porque diziam que não podia. Considerava-se um intolerante com o autoritarismo. “Sou antifanático (fanaticamente)”, escreveu em “Meu Último Suspiro”.
No colégio monástico, a conduta irreverente foi contornada por monges mais progressistas. No Dops, foi posto no pau de arara para ser surrado ao confrontar o delegado Fleury, que o interrogou algumas vezes.
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(1) Este perfil foi publicado no Portal IMPRENSA em 3 partes.
*A jornalista Isis Brum entrevistou o Sinval de Itacarambi Leão entre novembro e dezembro de 2023. O texto teve a colaboração e edição de Alexandra Itacarambi.
Texto reproduzido do site: portalimprensa com br
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