Foto: Estadão
Ruy Mesquita e Julio de Mesquita Neto.
Publicado no estadao.com.br, em 21 de maio de 2013.
A liberdade, antes de tudo
Albert Camus acreditava no jornalismo como trincheira de
combate político, não apenas uma correia de transmissão de notícias, muito
embora esta também seja uma função nobre e importante para a vida numa
sociedade democrática. Não foi à toa que ele participou da equipe de uma
publicação que se tornou um ponto de referência da resistência francesa à
invasão nazista, Combat.
O grande escritor franco-argelino, justamente galardoado com
o Prêmio Nobel de Literatura, não viveu o suficiente para ver como a era da
comunicação de massas, que reina sobre a sociedade da informação, tem
atrofiado, cada vez mais, o papel combatente da imprensa, dando mais relevo à
natureza meramente noticiosa dos jornais.
Neste panorama, comum em todo o planeta, o Brasil não é
exceção à regra. Mas o jornal O Estado de S. Paulo é, sim, e se orgulha de
sê-lo. Embora nunca tenha deixado de lado a obrigação social precípua de narrar
os fatos do dia a seus leitores fiéis, este diário sempre se manteve, ele
também, fiel a sua característica, adquirida desde a fundação, de arma política
na luta pelo aperfeiçoamento das instituições democráticas. Fundado por
abolicionistas e republicanos, desde seus tempos iniciais, quando ainda tinha
no cabeçalho o título A Província de São Paulo, ele nunca abandonou a
trincheira da guerra, sempre nobre, mas muitas vezes inglória, pelos princípios
democráticos, que se baseiam no primado da liberdade de agir, empreender,
trabalhar, se reunir e se manifestar.
Essa diferença de um jornal, entendido como arma política, e
não apenas divulgador de notícias, estabelecida pelo grupo de fundadores,
combatentes republicanos em pleno 2° Império, foi entendida em toda sua
extensão por meu avô, Julio Mesquita, e seus descendentes, que participaram do
contexto histórico nacional.
O Estado, muito mais do que um registro fiel dos fatos
históricos, sempre se orgulhou de ser um ator, muitas vezes até protagonista,
da História, por mais sacrifícios pessoais ou patrimoniais que esse papel pudesse
implicar. O velho Julio Mesquita foi o primeiro a sofrer sacrifício pessoal,
pois, em sua luta contra a frustração dos ideais republicanos na 1.ª República,
acabou apoiando os movimentos revolucionários da década dos 20, o que lhe
custou, em 1924, uma temporada nas prisões de Artur Bernardes.
Em nome dos ideais liberais a que sempre foi rigorosamente
leal, meu pai, Julio de Mesquita Filho, amargou o exílio em 1932, depois da
derrota militar da Revolução Paulista, aliás planejada na redação de O Estado
de S. Paulo. Voltou ao exílio em 1938, após ter frequentado várias vezes as
prisões do Estado Novo fascista, instalado pelo golpe de novembro de 1937, por
se recusar a silenciar diante da explícita traição dos ideais da Revolução de
30 por seu usurpador Getúlio Vargas. Por causa disso, o jornal foi fechado e
viveu um hiato administrado por esbirros do Estado Novo. A fidelidade aos
mesmos ideais levou meu pai a apoiar a conspiração política e militar, chegando
até a dela participar, para enfrentar a ofensiva do governo de João Goulart
contra as instituições democráticas. Essa ofensiva culminou com o projeto de
instalação de uma "república sindical" no País, anunciada no famoso
discurso de Goulart no comício da Central do Brasil, em março de 1964.
No entanto, não demorou muito após os militares terem
assumido o poder, e logo ele se convencia de que o movimento
contrarrevolucionário se desviava de seu objetivo inicial, que era o de
preservar as instituições democráticas. Já por ocasião da promulgação do Ato Institucional
n.° 3, Julio de Mesquita Filho colocou o jornal em franca oposição ao governo
Castello Branco e ao regime.
O resto é História. Que, aliás, está muito bem contada nessa
exposição: a progressiva radicalização, tanto dos opositores do regime militar,
à esquerda, quanto da linha dura militar, que os reprimiu. Essa exposição tem a
virtude de resgatar a História do Brasil recente. Aqui estão registrados os
fatos de 1968, que terminaram provocando a reação brutal dos militares da
linha-dura. Estes impuseram a violência institucional. Para entender bem a
época, é preciso ter presente o fato de que o movimento estudantil tinha
reivindicações materiais em seu princípio e Edson Luís Souto, o estudante morto
à bala num confronto com a repressão policial, nem sequer tinha posições
políticas bem definidas. E deu no que deu: guerrilha, fechamento do Congresso,
censura, etc.
A promulgação do Ato Institucional n.° 5, em 13 de dezembro
de 1968, marcou o fim da atividade jornalística de Julio de Mesquita Filho. Seu
editorial daquele dia, "Instituições em frangalhos", escolhido para
encerrar esta exposição, foi o último que escreveu. A edição em que o texto foi
publicado foi apreendida pela polícia da ditadura, e até o fim do regime de
censura da imprensa, já no governo Geisel, aquele espaço passou a ser ocupado
por versos dos Lusíadas, poema fundador de nossa língua portuguesa, de autoria
de Luís de Camões.
Poucos dias após esse episódio, em janeiro de 1969, Julio de
Mesquita Filho caiu doente e estou convencido de que o triunfo da linha-dura
dos militares sobre os ideais originais do movimento de 1964 lhe produziu tal
amargura e frustração que terminariam levando-o à morte. Quando morreu, a meu
ver de desgosto por isso, meu pai era um homem idoso, mas, em seus 77 anos, não
sofria dos achaques naturais da velhice. Ao contrário, era um homem moço para
sua idade avançada.
Logo depois da decretação do AI-5, contudo, uma velha úlcera
do duodeno, com a qual conviveu durante a vida inteira sem hostilidade de parte
a parte, ressurgiu com violência, levou-o ao leito e, seis meses depois disso,
à morte, em julho de 1969. Com o AI-5 e o controle do governo pela linha-dura,
o regime passou a ser mais violento e explícito do que já era. O Estado de S.
Paulo, como era de se esperar, estava entre suas primeiras vítimas - foi o
único dos grandes jornais a ser censurado na redação, por se recusar a praticar
a autocensura, como também se recusou o semanário alternativo carioca O
Pasquim.
Em reconhecimento a isso, a Federação Internacional de
Jornais concedeu o Prêmio Pena de Ouro da Liberdade de 1974 a meu irmão Julio
de Mesquita Neto, que tinha assumido o lugar de nosso pai e passou a comandar o
jornal após sua morte, em julho de 1969. Com o prêmio, a FIJ ressaltou a
"corajosa e solitária luta que vem mantendo contra a censura à imprensa no
Brasil".
O próprio regime militar, ao resolver partir para a abertura
política, definida como uma distensão lenta, segura e gradual, reconheceu o
papel histórico desempenhado pelo jornal. Pois o presidente Ernesto Geisel
aproveitou a edição comemorativa do centenário da fundação do Estado, em 1975,
para retirar a censura de nossa redação, anunciando, dessa forma, o fim da
censura no País.
Essa consciência de que o jornal tem de cumprir sua função
social de contar a verdade para seus leitores, sem abrir mão de funcionar como
arma na luta política na defesa dos nobres ideais da liberdade, continua a
impregnar a tinta que circula em nossas rotativas. A liberdade, antes de tudo,
é o lema que corre no sangue de minha família, na luta para construir um Brasil
melhor e mais justo para nossos filhos.
ARTIGO PUBLICADO EM 24/4/1998, NO CADERNO ‘1968 - DO SONHO
AO PESADELO’.
Foto e texto reproduzidos do site: estadao.com.br
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