Publicado pelo estadao.com.br, em 21 de maio de 2013.
Uma vida dedicada ao jornalismo, uma história guiada por
princípios
Ao longo de 60 anos de trabalho no ‘Estado’ e no ‘Jornal da
Tarde’, manteve-se fiel ao ideal de liberdade que herdou de seu pai e seu avô
José Maria Mayrink
Acordava às 4 horas da madrugada, lia os jornais antes de
tomar o café, ligava para dois ou três colaboradores, chegava à redação ao
meio-dia e meia, voltava direto para casa depois do trabalho. Se houve uma
época em que Ruy Mesquita passava pelo clube para tomar um uisquinho, era mais
para conversar com o irmão, Julio de Mesquita Neto, que morreu em 1996.
Conversavam sobre o Estado e o Jornal da Tarde, que eles dirigiam desde 1969,
quando morreu o pai, Julio de Mesquita Filho.
"A minha vida é isso, sou quase um workaholic",
disse Ruy Mesquita numa entrevista pela Rádio Eldorado, resumindo a rotina que
vinha refazendo, de segunda a sexta-feira, por quase 60 anos. Os fins de semana
eram, para ele, um plantão sem descanso. Conferia a edição do dia, anotava e
cobrava eventuais falhas, telefonava para a redação nas tardes de sábados e
domingos. "O que temos para amanhã?", perguntava invariavelmente. Se
discordava da manchete prevista, ditava suas instruções, mas também aceitava
contra-argumentos.
Com a morte de Julio Neto, em 1996, aumentou a carga de
trabalho. Assumiu a direção do Estado, com o nome no cabeçalho da primeira
página, bem embaixo do nome do avô, Julio Mesquita, o patriarca, que dirigiu o
jornal de 1891 a 1927. Quando era diretor do JT, costumava fazer editoriais.
Deixou a tarefa para os editorialistas dos dois jornais, com os quais se reunia
diariamente, porque não tinha mais tempo de escrever.
A mesa de trabalho de Ruy era coberta de pilhas de papéis,
que só ele era capaz de localizar. Lia dezenas de artigos, conferia os textos
em pauta, anotava com uma caneta o que tinha a recomendar ou corrigir. "Se
não entender, leve para o Marco Antônio Rocha traduzir", dizia com um
risinho de brincadeira, mas falando sério, porque quase ninguém conseguia
decifrar sua letra. Fazia observações precisas e, se reclamava, geralmente
tinha razão.
Sua sala, de janelas amplas para o Rio Tietê, tinha também
computadores, a tela aberta nas informações da Agência Estado, mas Ruy não era
afeito às novidades da internet. "Eu sou completamente incapaz de adquirir
as tecnologias modernas, estou muito velho para isso, mas recebo diariamente
prints feitos especialmente para mim sobre os assuntos que me interessam."
Queria saber o que a imprensa, especialmente a americana e a europeia, estava
publicando.
"Eu sei que isso está meio fora da moda",
reconhecia com sinceridade, mas não alterava a rotina. "No fim de semana,
passo o dia inteiro em casa lendo livros. Há muito tempo não leio um romance.
Procuro ler os livros que discutem os problemas políticos e econômicos da
atualidade. Não entendo jornalismo a não ser assim." Gostava de discutir
sobre política e sobre economia, matéria-prima preferencial do jornal de seus
sonhos.
Acreditava ser essa a sua função. "O jornal é a obra
mais perecível que o homem faz: começa e se completa a cada 24 horas. Então,
você tem de estar todo dia orientando, discutindo o que você acha que deve ser
mais realçado numa determinada edição, no dia seguinte fazendo a crítica da
edição que saiu, para poder cumprir seu papel da melhor maneira possível",
disse em entrevista à revista Imprensa.
Foi uma lição que veio do berço. Ruy Mesquita acompanhou a
vida atribulada do jornal desde menino. Tinha 7 anos de idade, quando o pai,
Julio de Mesquita Filho, e o irmão dele, Francisco Mesquita, foram presos e
enviados ao exílio em Portugal porque o jornal apoiou a Revolução
Constitucionalista de 1932. A família foi junto. Aliás, as famílias.
"Éramos duas famílias, pois eram dois irmãos (os Mesquitas) casados com
duas irmãs Vieira de Carvalho." Foram morar num chalé na Praia do Estoril,
perto de Lisboa.
O pai aproveitou o exílio para levar Ruy à Itália, onde
passou dois meses em tratamento no Instituto Rizzoli, na cidade de Bolonha.
Nascido em 16 de abril de 1925, ele tinha paralisia infantil desde os 3 anos.
"Eu tinha um aparelho que pegava a perna inteira. Meu
pai me levou para a Itália, porque ali havia o maior, mais moderno e mais
adiantado centro de ortopedia, e o médico mais renomado do mundo, dr. Putti.
Fui operado por esse médico, que me fez andar sem aparelhos o restante da
vida." Enquanto Ruy ficava dois meses internado no hospital em companhia
da mãe, Marina Vieira de Carvalho Mesquita, o pai percorria a Itália fazendo
reportagens sobre o regime fascista de Mussolini.
Marina relatou numa carta bem-humorada ao marido, em 2 de
junho de 1933, como o filho se comportava na clínica: "Vamos bem. O Ruy,
firme nos seus tratamentos. Sempre com uma paciência sem limites, ajudando o
quanto pode a sua cura. Será o cúmulo que Deus não recompense tanto sacrifício
da parte de um coitadinho de 8 anos. Tem feito sucesso na ginástica por causa
de seus já célebres olhos. Ontem havia lá três moças encantadas com ele.
Disse-me na volta que isso o aborrece, porque de repente ele gosta de uma e o
que será então das outras coitadas! O convencimento é um fato..."
Ruy guardou boas lembranças dessa primeira passagem forçada
pela Europa.
"Foi um exílio até agradável para nós, meninos. Logo
que chegamos a Portugal, fomos para o colégio. Eu estava começando o curso
primário e Júlio, meu irmão, estava no terceiro ano. Fomos todos juntos - os
primos Luís, Juca e Cecília, e o meu outro irmão, o Carlão (Luís Carlos
Mesquita). Tinha um monte de exilados brasileiros lá. Ficamos todos
amigos."
Voltaram todos, menos de dois anos depois, quando Getúlio
Vargas acenou com promessas de liberalização e nomeou Armando de Salles
Oliveira, cunhado de Julio de Mesquita Filho, interventor de São Paulo. Eleito
em seguida governador, Armando Salles encarregou Julio de Mesquita Filho de
coordenar a criação da Universidade de São Paulo (USP), um orgulho para a
família. A trégua, no entanto, durou pouco.
Com o golpe e a instituição do Estado Novo em 1937, Julio de
Mesquita Filho voltou ao exílio. Depois de ser preso 17 vezes, foi embarcado
para Lisboa, de onde se mudou para Buenos Aires. Ruy e seus irmãos permaneceram
em São Paulo. "Papai não tinha recursos para nos levar. Minha mãe o
acompanhou e nos deixou na casa do tio Francisco, que era como meu pai. Fomos
tratados igualzinho a nossos primos. Estávamos estudando aqui, o Julio quase
entrando na universidade."
Ruy, que iniciara o primeiro ano ginasial no Colégio São
Luís em 1935, foi expulso e se transferiu para o Rio Branco em 1938. Motivo da
expulsão: a insatisfação dos padres jesuítas do São Luís com a família
Mesquita, por causa da oposição do Estado ao general Franco, quando tropas
franquistas atacaram o governo republicano na Espanha.
Após o colegial, Ruy se matriculou na Faculdade de Direito
do Largo de São Francisco. Estudou até o terceiro ano, mas não concluiu o
curso. Estudou Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia da USP, mas sua
formação foi mais a de um autodidata. "Eu fui educado primeiro na leitura
de Tucídides, depois de Fustel de Coulanges e, depois, de Alexis de
Tocqueville", disse Ruy Mesquita, apontando os autores que
fundamentalmente contribuíram para o ideário até hoje mantido, com as necessárias
adaptações, pelo Estado.
Em 1944, participou como ator da peça Heffman, escrita e
dirigida por Alfredo Mesquita e encenada no Teatro Municipal. Ao seu lado, a
escritora Lygia Fagundes Telles, colega no Largo São Francisco. "Ele se
revelou um ator muito esforçado e teve boa presença em cena", relembra a
autora, que fazia parte do Grupo de Teatro Experimental, dirigido por Alfredo
Mesquita.
Com três atos, Heffman era uma comédia ligeira sobre um
grupo de jovens que, reunidos em uma casa, recebem a visita de um refugiado da
guerra, que vai modificar sua rotina. Ruy vivia Antonio Augusto, enquanto Lygia
interpretava Nair. Também estudou piano por 2 anos.
Em 1948, aos 23 anos de idade, foi trabalhar no jornal.
Começou pela Editoria Internacional, então chamada de Seção do Exterior, sob o
comando do italiano Giannino Carta, seu mestre e amigo. Quando Giannino voltou
para a Europa, em 1956, Ruy assumiu a chefia da seção. Assumiu também a coluna
De um dia para outro, que assinou até maio de 1961. Comentava notícias
internacionais.
"De Gaulle é um homem de opinião e calado",
escreveu na estreia, em 12 de julho de 1958, quando também falou da política
externa da então União Soviética. "A Rússia não deseja criar dificuldades
para o marechal Tito nem para seu governo." Sobre os rumos da Revolução
Cubana, escreveu já em 9 de janeiro de 1959: "Se os atuais líderes
revolucionários não estiverem à altura da tarefa que se impuseram, Cuba viverá,
num futuro próximo, momentos ainda mais dramáticos que o atual".
Seis meses após a vitória dos guerrilheiros de Fidel Castro,
foi conferir em Havana, onde já estivera em 1956, os primeiros passos do novo
governo. Subiu ao palanque das autoridades na primeira comemoração do 26 de
Julho. "Eu fui apresentado à multidão na Plaza de la Revolución como o
jornalista que mais tinha defendido a revolução de Sierra Maestra. A revolução
de Sierra Maestra foi uma brincadeira que deu certo, porque eram 21 ou 22
malucos que desembarcaram nas costas de Cuba e ficaram lá. Não houve grandes combates,
não houve tiroteio nem nada. O Batista acabou de podre..."
Quase 50 anos depois, quando Fidel renunciou à reeleição, em
fevereiro de 2008, Ruy Mesquita traçou dele um perfil crítico em que deixava
clara sua decepção com o que ocorreu depois. Sua avaliação, depois de confessar
que havia acompanhado "a saga revolucionária de Fidel Castro" com
grande entusiasmo: "O regime castrista, que já dura 49 anos, é a maior
tragédia política da história moderna, como está sendo demonstrado hoje, pois,
49 anos depois, a economia cubana está pior do que no momento em que Castro
assumiu o governo. É o que se pode chamar de hibernação econômica de um país
que durou quase 50 anos."
O noticiário internacional sempre mereceu especial atenção
de Ruy Mesquita. Mesmo quando dirigia o Jornal da Tarde - um vespertino ágil e
moderno lançado sob sua responsabilidade em janeiro de 1966 - ele monitorava a
antiga Seção do Exterior do Estado, cobrando falhas e sugerindo temas.
"Quem é essa Sônia Cristina que está escrevendo no Estado?",
perguntou, ao ler um artigo sobre os 30 anos da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan) que não combinava com a linha do jornal. Não gostou do
artigo, mas recebeu a redatora, quando ela bateu à sua porta para defender o
texto. Manteve sua opinião e respeitou a divergência. Tanto que aconselhou
Sônia a continuar escrevendo.
Ruy Mesquita podia discordar, mas respeitava seus
profissionais. Quando Gilles Lapouge, correspondente em Paris, avisou em 1964
que não escreveria para um jornal que havia apoiado o golpe militar, foi ele
quem o fez mudar de ideia. Garantia que, se a Revolução de 31 de Março se
desviasse de seus objetivos, o Estado retiraria o apoio - o que, de fato,
acabaria acontecendo.
"Meu caro Ruy, seu telegrama comoveu-me e perturbou-me
ao mesmo tempo. Não me surpreendi: já sabia que suas decisões são sempre
tomadas com base nos mais nobres motivos", respondeu Lapouge numa longa
carta, reproduzida na íntegra, em que revia sua posição. Continuaram amigos.
Divergiam em questões importantes, mas nem por isso o jornal deixava de
publicar o que Lapouge escrevia. Mesmo que tivesse de discordar dele
explicitamente em editorial.
Ruy Mesquita não gostava de Getúlio Vargas e tinha razões
para isso. Depois de mandar prender e exilar os proprietários do Estado, por
causa da resistência deles à ditadura, o governo interveio no jornal e ocupou
suas instalações durante mais de cinco anos - de março de 1940 a dezembro de
1945.
A polícia do interventor Ademar de Barros alegou que os
Mesquitas estocavam metralhadoras para derrubar o governo. Mandado para Lisboa,
de onde foi para Buenos Aires, Julio de Mesquita Filho se arriscou a voltar em
1943. Não tinha como sobreviver. Foi confinado na fazenda da família em
Louveira, onde ficou isolado até a queda de Getúlio.
Quando ocorreu o atentado da Rua Tonelero contra Carlos
Lacerda e, em consequência dele, o suicídio de Getúlio, em 1954, Ruy Mesquita
estava dirigindo temporariamente a sucursal do Estado no Rio. Fez a cobertura
da crise que, como diria 50 anos depois, foi "muito facciosa", embora
"não deliberadamente facciosa", porque a reportagem se deixou levar
"pela atmosfera que reinou naquela ocasião".
Adversário, mas não inimigo de Getúlio, "o Estado
rendeu as homenagens que se rendem, de praxe, numa situação como essa, dizendo
que ele teve um gesto digno". Quando Getúlio foi eleito em 1950, lembrou
Ruy Mesquita, o jornal o tratou como presidente democrático. "Com a má
vontade de sempre. Mas, para o que houve de bom no governo, particularmente na
área econômica, o Estado fazia editoriais, aprovando."
Ao lado do pai, Ruy Mesquita foi um dos articuladores do
movimento de 1964. Mais do que o medo do comunismo - "um risco real e
iminente" -, o que, em sua opinião, levou à derrubada do presidente João
Goulart foi a quebra da hierarquia militar. O jornal apoiou o golpe - ou
melhor, contragolpe ou contrarrevolução, como preferia dizer -, mas rompeu com
o regime após a promulgação do Ato Institucional n.º 2 (AI-2). Pagou caro por
sua resistência à arbitrariedade.
"O preço que pagamos foi, em primeiro lugar, a vida de
meu pai", disse o jornalista em março de 2004, referindo-se à morte de
Julio de Mesquita Filho, que morreu sete meses após a edição do AI-5. "Meu
pai caiu doente, quando parou de escrever o primeiro editorial, que escrevia
diariamente. Era um homem de saúde muito boa, mas era um psicossomático. Todas
as suas contrariedades tinham reflexos fisiológicos imediatos."
O Estado passou seis anos sob censura. Foi apreendido em 13
de dezembro de 1968, por causa do editorial Instituições em Frangalhos, no qual
Julio de Mesquita Filho denunciava a falência do regime. Durante a vigência do
AI-5, o jornal não se submeteu à censura prévia que os militares impuseram à
imprensa. O governo escalou censores para as oficinas, onde as matérias
proibidas eram cortadas, porque também a autocensura seria inadmissível.
Como não se permitia que ficasse espaço em branco,
decidiu-se publicar poemas (Estado) e receitas de bolos e doces (Jornal da
Tarde). Em 1972, Ruy Mesquita protestou, em telegrama ao então ministro da
Justiça, Alfredo Buzaid, contra a proibição de que fossem publicadas notícias,
comentários e editoriais sobre uma série de assuntos. Era proibido falar, entre
outros itens, de abertura política e democratização.
"Senhor Ministro, ao tomar conhecimento dessas ordens
emanadas de V. Sa., o meu sentimento foi de profunda humilhação e
vergonha", dizia o telegrama.
Em junho de 1978, portanto ainda na época do AI-5, Ruy
Mesquita recebeu em sua casa o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, a
pedido de Luís Carta. "Ruy Mesquita, repórter de Senhor Vogue entrevista
Lula, o metalúrgico", dizia a chamada de abertura do texto da revista.
Resultado de quase quatro horas de conversa, a entrevista - que foi mais um
bate-papo descontraído, com a participação da família - teve grande
repercussão, pelo inusitado e pelo conteúdo do encontro.
Mais de uma vez, Ruy Mesquita foi processado e intimado a
depor na Polícia Federal, por causa de matérias proibidas. Assim como Julio
Neto, no Estado, ele não se curvou às imposições da ditadura. E, quando
repórteres e redatores do jornal foram presos, saiu em defesa deles. Em abril
de 2004, o jornalista Paulo Markun agradeceu ao vivo, na abertura do programa
Roda Viva, da TV Cultura, a solidariedade que recebeu em maio de 1976.
Desempregado havia oito meses, depois de ter sido preso e acusado de ser
comunista, Markun procurou Ruy Mesquita e foi contratado.
Preso pelos órgãos de segurança, o repórter de polícia
Antônio Carlos Fon recebeu apoio dos Mesquitas, nos dois meses que passou atrás
das grades. Seus colegas e amigos Percival de Souza e Inajar de Souza foram
procurá-lo em nome do Jornal da Tarde, enquanto ele era interrogado e
torturado. Fon sempre foi grato por essa solidariedade.
"Quando fui solto, procurei Ruy Mesquita para agradecer
e me explicar. Ele disse que eu não tinha que explicar nada, porque, se a
polícia não tinha apurado nada contra mim, não era ele quem ia me punir. Meu
salário estava depositado na conta."
Outros dois jornalistas do Grupo Estado foram amparados por
Ruy Mesquita, em outubro de 1975. Não havia mais censura, mas a prisão de
Vladimir Herzog, torturado e morto num quartel da Rua Tutoia, no Ibirapuera,
acirrou a repressão contra a imprensa.
"Luiz Paulo Costa, que era correspondente em São José
dos Campos, deve a vida a Ruy Mesquita", afirmou o então coordenador das
sucursais, Raul Bastos, em depoimento para o livro Mordaça no Estadão (edição O
Estado de S. Paulo, reportagem de José Maria Mayrink), lançado em dezembro de
2008.Torturado nas mesmas dependências do Exército onde Herzog morreu, Luiz
Paulo foi libertado depois de um telefonema de Ruy Mesquita ao ministro Armando
Falcão, da Justiça.
Também ameaçado de prisão no episódio Herzog, o jornalista
Marco Antônio Rocha pediu socorro ao diretor do Jornal da Tarde. "Ruy
Mesquita me acolheu em sua casa e de lá ligou ao ministro Armando Falcão para
avisar que eu estava sob sua proteção", relatou Marco Antônio. Se os
agentes da repressão quisessem pegar o jornalista, advertiu Ruy Mesquita,
teriam de invadir sua casa ou a redação do jornal, onde ele continuaria
trabalhando.
Liberal e democrata, como sempre se definiu, Ruy Mesquita
atribuía o sucesso do jornal à coerência e fidelidade que vem mantendo ao longo
de sua história, "à custa de sacrifícios materiais sofridos pela empresa e
de sacrifícios pessoais sofridos pelos seus diretores". Conforme lembrou
na comemoração dos 130 anos de fundação, em janeiro de 2005, "O Estado de
S. Paulo nunca pôs os interesses empresariais antes dos interesses políticos -
da defesa dos interesses nacionais." Era uma trajetória, acrescentou,
marcada por Julio Mesquita e "seguida fielmente pelos seus filhos, netos e
bisnetos".
Se não fosse a manutenção dessa separação rigorosa entre o
interesse comercial e os ideais políticos e culturais, o Estado não teria
chegado até onde chegou, afirmou Ruy Mesquita, ao receber o Prêmio
Personalidade da Comunicação 2004.
"Infelizmente, é esse tipo de jornalismo que sofre hoje
uma terrível ameaça e pode ter sua vida interrompida, daqui para a frente, pelo
que chamo de ‘murdochização’ da imprensa, ou seja, a subordinação dos
interesses da política editorial aos interesses de marketing dos jornais",
disse, numa alusão ao empresário Rupert Murdoch, que "escolheu o setor da
mídia porque achou que daria mais dinheiro do que fabricar salsichas".
Estava atento à ameaça da internet. "Ninguém lê jornal
para se distrair ou se entreter", advertiu o jornalista, prevendo que
"só sobreviverão, no futuro, os jornais que se tornarem leitura
indispensável de certos setores da sociedade, as classes dirigentes - os
empresários, os intelectuais, os políticos - sem a pretensão de concorrer em
termos de números de circulação com as audiências da internet ou mesmo da
televisão".
Havia mais de 30 anos que Ruy Mesquita falava em se
aposentar, mas não era para levar a sério. A realidade do dia a dia confirmava
que, ao contrário, ele pretendia continuar trabalhando enquanto Deus lhe desse
força. Dirigiu seu carro automático até alguns meses atrás e, se não dava para
viajar à fazenda que comprou no Triângulo Mineiro, administrava a propriedade a
distância.
Plantou seringueiras, gostava de cultivar a terra, mas sua
paixão mesmo era pescar. "Tudo o que se refere a mar e peixe me
fascina", dizia. Para ele, todas as pescarias são emocionantes, "até
mesmo as que não produzem resultados, porque um dos prazeres da pesca é a
eterna expectativa do peixe maior de todos". No seu caso, foi um marlim
azul de 177 quilos, capturado em dezembro de 1975, a 40 milhas da Ilha Rasa, no
litoral fluminense.
Ruy Mesquita estava internado no Hospital Sírio-Libanês,
onde se submeteu a cirurgia cardíaca para a implantação de um marca-passo,
quando comemorou os 83 anos, em 16 de abril de 2008. Impaciente e só falando em
voltar logo para casa, estava feliz e bem-humorado, quando recebeu a família
para festejar o aniversário.
"Agora vou funcionar melhor com esse relógio no
coração", brincou. Quando recebeu alta, fez questão de subir sozinho as
escadas de sua casa, dispensando a ajuda de uma enfermeira. Duas semanas
depois, já dava expediente no jornal. Passava o dia sentado ou de pé, diante da
mesa sempre entupida de papéis, lendo artigos e editoriais. Queixava-se da
saúde, porque estava difícil manter o ritmo, mas parecia estar sempre de bom
humor.
Continuou trabalhando, sempre a mesma rotina, na medida de
suas forças. No dia de seu aniversário de 85 anos, em 2010, emocionou-se com a
festa de aniversário que uma centena de amigos, funcionários e ex-funcionários
lhe prepararam, com participação da família, no Salão Nobre do 6.º andar do
prédio do Estado. Ao lado do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um dos
convidados, confessou a emoção, uma reação incomum, ele explicou, para seu
temperamento arredio a esse tipo de comemoração.
Casado com Laura Maria Sampaio Lara Mesquita, tinha quatro
filhos - Ruy, Fernão, Rodrigo e João -, 12 netos e um bisneto. / Colaborou Ubiratan Brasil.
Foto e texto reproduzidos do site: estadao.com.br
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