Emoções. O diretor celebra na redação o primeiro aniversário
do Jornal da Tarde. Ao fundo, à direita, o pai Julio. (Foto: Estadão Conteúdo).
Editorial
Funda melancolia
Lembranças dos tempos passados ao lado de Ruy Mesquita
Por Mino Carta — publicado 24/05/2013.
Certa noite do começo de 1964, tempos antes do golpe, Ruy
Mesquita foi o entrevistado de um programa da tevê precursor do Roda Viva. Lá
pelas tantas, falou longamente de meu pai, Giannino, tinha-o como seu mestre de
jornalismo além de amigo insubstituível. No dia seguinte, mandei uma carta para
o Estadão endereçada ao Ruy, quis deixar por escrito a minha comoção.
Ruy, segundogênito de Julio de Mesquita Filho, começou no
jornalismo como redator da seção Internacional do jornalão, comandada por meu
pai, que acumulava o cargo de diretor do arquivo por ele mesmo recém-criado.
Foi o começo da reforma do Estadão, que se completaria pela mão de Claudio
Abramo, anos depois nomeado redator-chefe. Eu ia visitar meu pai, ainda na sede
da Rua Barão de Duprat, no reduto árabe a cercar a baleia adernada do Mercado
Municipal em meio aos perfumes de cânhamo e gergelim. Ruy tinha 22 anos, eu 13,
meu pai 42.
A amizade nasceu ali, e nasceu meu afeto por Ruy e sua
família, a despeito das reviravoltas da vida. Dezessete anos depois, mudei-me
da Editora Abril, onde dirigia a Quatro Rodas, para o Estadão, chamado a
chefiar a pequena equipe de uma Edição de Esportes. Saía nas noites de domingo
e permanecia nas bancas até a segunda-feira. Foi lançada no começo de setembro,
meu pai, doente havia meses, morreu no fim de outubro, aos 59. Sei que Ruy
sofreu muito com a perda, assim como sei que a memória do meu pai foi decisiva
para a minha autonomia de voo na feitura do Jornal da Tarde, enfim lançado em
janeiro de 1966.
Aludo à liberdade de ação de que gozei do ponto de vista
formal, em um vespertino destinado a inovar graficamente e a conferir qualidade
literária ao texto. No campo das ideias políticas, valiam obviamente as da
família, e eu as respeitei com lealdade, embora deste ponto de vista nosso
pensamento não coincidisse. Mas os melhores patrões da minha vida de jornalista
mereciam. Quando deixei o Jornal da Tarde para assumir a direção da equipe
fundadora de Veja, Ruy deixou sobre a minha mesa um bilhete. “Você poderá
voltar sempre como o filho pródigo”, escrevia. Ele também preferiu deixar no
papel a emoção daquele momento.
O jornal atingiria o ponto de fervura anos depois, quando eu
já não estava lá. De minha parte, parti para uma temporada áspera e ao mesmo
tempo exaltante, a me permitir liberdade de ação também política enquanto a
forma era em Veja nitidamente influenciada pelos newsmagazines americanos. Os eventos
nos distanciaram, mas eu nunca esqueci aquele Ruy.
Foi cidadão íntegro e inquieto, de forte temperamento, nele
cantava, entre o fígado e a alma, sobretudo a emoção. Foi também entre os
representantes de famílias proprietárias aquele mais empenhado e mais dotado,
na minha visão, para a prática do jornalismo. Capaz de empolgar--se com a
Revolução Cubana nos seus primeiros momentos, foi o único entrevistador
brasileiro de Fidel Castro, recém-vitorioso ao descer a Sierra Maestra. Em
companhia de Claudio Abramo, cobriu com inteligência e isenção a Conferência
Econômica da OEA de 1961, realizada em Punta del Este. Ali brilhou Che Guevara:
à testa da delegação cubana, fez um discurso notável enquanto tomava Coca-Cola.
E ao Che, assassinado na Bolívia seis anos depois, o Jornal da Tarde dedicou
uma edição memorável. Explícita, em Ruy, a inclinação romântica.
Lula não deixou de interessá-lo como líder sindical inédito,
na qualidade de antídoto ao peleguismo. De todo modo, prefiro lembrá-lo, neste
momento de funda melancolia, como aquele que me visitou em Turim em 1957,
quando eu trabalhava na redação de La Gazzetta del Popolo. Recordo-o moço, no
vão da porta. Acenava. No dia seguinte, fomos juntos a Milão, onde eu expunha
minhas telas brasileiras. Na volta de carro cantamos com perfeita afinação.
Além de tudo, ele era então um notívago conhecedor do melhor samba.
Foto e texto reproduzidos do site: cartacapital.com.br
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