Publicado pela veja.com.br, em 26 de maio de 2013.
Memória: Roberto Civita
“O leitor é o verdadeiro patrão”
Em 2008, quando Roberto Civita completou 50 anos na Abril,
uma publicação comemorativa trazia a seguinte entrevista - na verdade uma
colagem de discursos, palestras e depoimentos feitos a partir de 1968. Ela
resume o pensamento do editor sobre jornalismo e sobre o Brasil
Como o senhor definiria o Brasil? O Brasil é um fascinante,
exasperante e bendito país!
Qual a razão do otimismo? Nasceu em casa. Conto uma
historinha para ilustrar o que aconteceu pouco antes do golpe militar de 64. Um
jantar na casa do meu pai com uns oito ou dez amigos dele e os caras dizendo:
“Eu estou tirando o meu dinheiro do Brasil...”, “Estou vendendo a minha
fábrica...”, “Vou voltar a viver na Europa...”. O tom era esse. Eu calado
porque eram todos de outra geração. Então, meu pai disse: “Pois eu estou
comprando uma nova rotativa que custa 5 milhões de dólares”. Os amigos
reagiram: “Você está maluco?”, “O que é que deu em você, enlouqueceu?”, “Você
não está vendo o que é que está acontecendo neste país? O Brasil vai virar
comunista...”, “Acabou tudo e você está investindo...”. A resposta do meu pai
foi: “Se tomarem a minha empresa, pelo menos vão tomá-la com uma gráfica
decente... É melhor que fiquem com uma gráfica grande”.
O comunismo não veio, o Brasil não acabou e passou até a se
modernizar mais rapidamente... É como dizem os hindus: a sorte é metade do
sucesso. Mesmo assim, o que não falta é exasperação, certo? Era agosto de 1983.
Eu dava uma palestra na Abril e dizia: “O Brasil está cansado e frustrado com a
crise, com a corrupção, com a falta de perspectivas e com um governo que não
governa”. Felizmente, concluí a palestra com uma nota otimista, e da qual muito
me orgulho. Disse então: “Da mesma maneira que reencontramos os caminhos da
democracia e soubemos mergulhar na abertura sem perder o equilíbrio, tenho a
certeza de que — muito antes do que se possa imaginar — reencontraremos o
caminho do crescimento econômico. Para isso, vai ser preciso repensar e mudar
muitas coisas. Mas não tenho dúvida de que, juntos e com muita inteligência e
ainda mais trabalho, saberemos fazê-lo”.
Existe uma fórmula mágica para o sucesso? Sim. Eu a conheço
e já registrei com o nome de A Fórmula Mágica da Sorte e do Sucesso (ou — pelo
menos — da Sabedoria) em Alguns Minutos por Dia ou Seu Dinheiro de Volta.
Nossa! O senhor pode nos contar como ela funciona? Trata-se,
muito simplesmente, de LER.
Isso é uma sigla? Verbo. Ler o quê? Tudo o que cair em suas
mãos! Folhetos, folhetins, fascículos, panfletos e literatura de cordel.
Jornais (grandes, pequenos, nanicos e alternativos), revistas (gerais,
profissionais, técnicas... até da concorrência), boletins, fichas de receita,
anúncios, embalagens, bulas, enciclopédias, circulares, relatórios, o manual de
proprietário do seu carro, quadrinhos, dicionários, programas de teatro,
discursos, cartas de amor e — se possível — até alguns livros... Em qualquer
lugar. E especialmente no trânsito, no banheiro, no ônibus, no avião, na praia,
no elevador, no metrô, no intervalo do jogo no Estádio do Morumbi e — naturalmente
— na sala de espera do médico ou dentista. Onde quer que você esteja. Em
qualquer momento disponível. Quando não conseguir dormir, quando se encontrar
em qualquer fila, no café-da-manhã, na hora do almoço (ou — se estiver de
regime — no lugar do almoço), entre duas partidas de tênis no clube, durante os
comerciais... até em vez de assistir a uma novela! O importante é reservar
tempo para ler. Escolha a hora que quiser. Acorde mais cedo. Durma mais tarde.
Mude algum programa. Mas... leia!
Mas funciona mesmo? A “fórmula mágica” deve ser testada ao
longo de, digamos, 23 anos. Até lá não aceitamos reclamações. Falando sério,
estou convencido de que a leitura é a receita mais simples para o conhecimento,
a atualização permanente, o acesso ao mundo das idéias, a compreensão e a
sabedoria. Quanto mais você ler, mais surpresas como estas terá: “Em vez de ser
a condição natural do homem e da sociedade, a liberdade é algo que poucos
alcançaram, em poucos lugares, através de esforço, dedicação, autodisciplina e
engenhosidade social. A liberdade é a exceção da História, não a regra; é
aquilo que os homens buscam, não o que possuem”. (Arthur Schlesinger)
Ou, ainda, sobre liberdade: “Se uma nação espera ser
ignorante e livre ao mesmo tempo, espera ser algo que nunca existiu e que nunca
existirá”. (Thomas Jefferson)
Ler não envolve apenas a busca de verdades eternas ou
receitas universais. Ler é também diversão, entretenimento e bom humor.
Alexandre Dumas escreveu sobre o matrimônio: “A cruz do
casamento é tão pesada que são necessárias duas pessoas para carregá-la, às
vezes três”. E, finalmente, um velho provérbio chinês, aplicável a todos os
nossos planejamentos: “É muito difícil fazer profecias, principalmente com
relação ao futuro”.
Mas haja memória... Se me permitirem acrescentar mais uma
recomendação àquela básica, eu lhes diria: sempre que possível, leiam com um
lápis ou caneta na mão. Marquem os trechos que acharem importantes. Recortem
artigos de jornais e revistas. Colecionem as frases ou parágrafos de que
gostarem, como outras pessoas colecionam selos, figurinhas, autógrafos, conchas
ou chaveiros. Classifiquem seus achados, arquivem-nos, troquem-nos com seus
amigos... E voltem, sempre, para saboreá-los. Descobrirão que a sua coleção
através dos anos revelará muitas coisas importantes a respeito de si próprios.
Bem, se isso não trouxer sorte e sucesso, garanto que — no mínimo — trará
sabedoria e muita satisfação.
As revistas podem competir com esses autores fabulosos que o
senhor citou? Podem porque elas são o mais seletivo, segmentado, regionalizado,
brilhante, íntimo, aproveitável, portável, rasgável, eficiente, dramático,
inteligente, lindo, duradouro e maravilhoso veículo de comunicação que existe.
E com as novas tecnologias? A revolução iniciada por Gutenberg
foi tão importante que ainda não terminou, já passados 500 anos. E, na
essência, o que fazemos hoje em matéria de imprensa obedece aos mesmos
propósitos que levaram o nosso patriarca a construir a sua primeira prensa:
levar informação relevante (no caso dele, os ensinamentos da Bíblia) a um
número maior de pessoas, por um custo mais acessível. Na Era da Informação — e
apesar de tanta velocidade e diversidade — não podemos deixar de lado a
fundamental importância da verdade, da honestidade, da objetividade, da
solidariedade, e da “inteligência sensível”. Ou seja, daqueles princípios
fundamentais que alicerçam a civilização desde os seus primórdios e sem os
quais todo o resto será em vão.
Certas coisas não mudam, não é? O mundo das publicações está
mudando muito rapidamente (e vai continuar mudando ainda mais rapidamente). E a
Abril pretende não apenas acompanhar mas liderar essas mudanças.
O que não muda? Nossa credibilidade continua sendo nosso
principal ativo. Daí a fundamental importância da rígida separação entre
editorial e publicidade. É o certo a fazer, moral, ética e filosoficamente,
como também (e felizmente) o que convém fazer pensando a longo prazo. É o que,
afinal, transformou cada uma das nossas publicações na revista líder do seu
setor. E é o que vai mantê-las nessa posição e fazê-las crescer e continuar
contribuindo para o desenvolvimento do país no futuro.
O que mais não muda? Quanto mais reflito, e quanto mais
tempo sou editor, mais me convenço de que jornalista não precisa de diploma de
jornalista, mas sim de uma boa e sólida formação que começa em casa, passa pela
escola básica, e pode até chegar à universidade. Um jornalista precisa de
escolas, sim — escolas sem rótulos, que ensinem história, literatura, economia,
ciência, filosofia, direito... o universo! Um jornalista precisa aprender a
pensar, analisar, questionar, usar a cabeça. Um jornalista precisa ler muitos
livros, precisa ser curioso, querer saber sempre o porquê das coisas, todas as
coisas. E precisa gostar de contar o que descobre, de contar histórias...
Além de querer tem de saber também... Alguém com esse perfil
acima vai ter apenas de aprender o ofício, a técnica, o “como fazer”. Eu não
apenas acredito nisso, como pratico há mais de trinta anos.
Quando o senhor sabe que uma publicação está no caminho
certo? Existem muitas variáveis, mas a infalível é quando os jornalistas de uma
revista acreditam que o leitor é o seu verdadeiro patrão. Quando eles trabalham
unicamente para atender às necessidades desses leitores, por meio de um
jornalismo sério, bem pautado, bem apurado, bem escrito, bem editado —
resultando em revistas honestas, bonitas, úteis e surpreendentes.
Talvez nunca a imprensa tenha sido tão mal avaliada como
agora, o senhor concorda? Imprecisão, arrogância parcialidade (decorrente da
defesa de interesses próprios em detrimento do interesse público), desprezo
pela privacidade, insensibilidade, glorificação do bizarro, trivial e banal são
queixas mais ou menos comuns atribuídas à imprensa em todos os tempos. Mais do
que um elenco de pecados capitais da nossa imprensa, esses itens constituem um
roteiro dos males a evitar, um vade-mécum do que não deve ser feito.
Como evitá-los? Primeiro, e principalmente, é preciso
respeitar o público leitor. O público não é burro. No máximo ele é mal
informado, ocupado com outras coisas, facilmente distraído, muitas vezes por
culpa nossa. Os jornalistas devem conhecer melhor seu público. Temos a
obrigação de entender que o processo de comunicação envolve não apenas
transmitir mas também verificar o que foi captado e entendido do outro lado. E
que a compreensão das notícias pelo público é parte essencial do processo. Ou
seja, devemos prestar muita atenção no que nossos leitores pensam, acreditam,
sentem, escrevem e dizem. Nesse contexto, vale a pena considerar a declaração
de William Broyles Junior, ex-editor de Newsweek, quando disse: “Todo
jornalista deveria ser entrevistado, analisado e dissecado por outros jornalistas
durante certo tempo. Essa simples experiência contribuiria mais para melhorar o
jornalismo do que todas as escolas de jornalismo juntas”.
O senhor mesmo gosta de dizer, citando Thomas Jefferson, que
apesar de todos os defeitos é melhor ter imprensa imperfeita do que nenhuma,
certo? Aos críticos, nunca é demais repetir: não criamos os fatos, não
inventamos a natureza humana, não somos deuses com o poder de alterar o curso
dos acontecimentos. Não podemos mudar por muito tempo a verdadeira imagem de
personagens ou sufocar as naturais repercussões dos eventos. Não podemos passar
as 24 horas do dia ao lado de todas as figuras importantes ou acompanhar a
evolução de todos os eventos significativos e significantes; por isso, somos
obrigados a selecionar e trabalhar esse material com uma lente de aumento.
Nesse processo de seleção, síntese e magnificação, tornam-se mais gritantes
certos traços que, de outra forma, ficariam diluídos se porventura tivéssemos o
dom da onipresença, ubiqüidade e onisciência — e nossos leitores não fizessem
outra coisa que não nos ler o dia inteiro. Nosso Rui Barbosa definiu bem a
necessidade da imprensa ao afirmar que ela é “a vista da nação. Através dela a
nação acompanha o que se passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem,
devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam ou roubam, percebe
onde lhe alvejam ou nodoam, mede o que lhe cerceiam ou destroem, vela pelo que
lhe interessa e se acautela do que a ameaça”.
Para finalizar, se fosse preciso escolher um único indicador
de qualidade da imprensa, qual seria? Quanto mais independente do governo,
maior será a contribuição da imprensa e da livre-iniciativa ao desenvolvimento
do país.
Foto e texto reproduzidos do site: veja.abril.com.br
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