domingo, 5 de março de 2017

O jornalista Zeca Déda



Publicado originalmente no Facebook/Amaral Cavalcante, em 4 de setembro de 2017.

O jornalista Zeca Déda
Por Amaral Cavalcante.

Ele publicou no seu jornal - “A Semana”- o meu primeiro poema, “Elegia a Cristina”, dedicado a uma menina fatalmente morta pelo irmão que brincava com uma espingarda. Doloroso poema juvenil, meio que plagiado dos grandes sonetistas que nutriam minha incipiente criatividade numa antologia de cabeceira. Era a coletânea “Os mais Belos poemas de Amor” organizada por J.G. de Araújo Jorge que me fora presenteada, aos 16 anos, por mamãe Corina. Seiscentas páginas contendo os melhores sonetos já escritos, desde Petrarca aos irmãos Campos.

O jornal “A semana” saía aos sábados. Cândida Candhão, a hiper- plus fofoqueira municipal, chegou lá em casa pela manhã com o jornal já recortado, transtornada e tilintando os berloques de ouro 14 nos peitões descomunais: Corina, que coisa linda! E toca a declamar pra mamãe o trágico soneto que o filho dela, eu, tinha publicado no jornal de seu Zeca, sobre a morte da Cristina, filha do prefeito Nelson Pinto.

Mas pensa que foi fácil publicar no “A Semana”? Não com o casmurro Zeca Déda. Ele tinha oficina e escritório na Rua do Comércio, onde se abriam três portas. Minto! Uma delas, a do seu birô de chefe político, estava sempre fechada. Quem quisesse entrar que arrodeasse. Lá dentro, um mundo incompreensível, mas fascinante: caixas tipográficas, a monstruosa prensa manual do arco da velha em seus claps- claps ritimados, uma temerária guilhotina encostada na parede frontal e papéis -muitos papéis - derramados pelo chão.

Eu costumava chegar de mansinho - moleques invisíveis que éramos as crianças do interior, com direito a entrar em qualquer casa e ali ficarmos sem que ninguém se importasse - eu ficava encostado na parede sem ser percebido, vendo aquele homem de faina diferente - o terno cáqui manchado de tinta - a comandar as doidas engrenagens. Ele não me via, nem nunca conversava comigo.

Um dia, cheguei com o poema manuscrito e ele me disse: vou publicar

Conquistar a aprovação daquele monstro sagrado, foi, para o menino encabulado que eu era, o maior incentivo que eu já encontrai na vida; afinal, o jornalista Zeca Déda era a maior expressão cultural que eu conhecia e uma espécie de dignidade moral na minha cidade.

O Grêmio Estudantil “Padre Mário Reis”, do Ginásio Carvalho Neto, promoveu um Júri Simulado sobre Calabar e o Dr. Zeca Déda indicou o filho, Arthur Oscar, recém formado bacharel, como seu opositor na tribuna. Era o velho rábula debicando da Academia.
O evento, promovido pelo Grêmio, deu-se na sede do Caiçara Club e foi um sucesso de público: Zeca Déda acusava o réu com brilhante e convincente oratória justificada na história oficial, aqueles argumentos de traição à Coroa portuguesa difundida nos compêndios escolares; enquanto Arthur Oscar defendia a opção política do Réu pela colonização holandesa.

Durou dois dias o embate entre aqueles titãns da oratória, mas Arthur tornou-se logo o ídolo da meninada descrente da história colegial. Calabar foi absolvido, mas ficou, do episódio, o meu inesquecível encontro com o vigor poético da oratória, com o poder de transformação que ela exerce sobre a imutabilidade das nossas frágeis certezas e com o poder da palavra dita no contexto certo, com entonação precisa e prenha de emoção.

Amaral Cavalcante - 2008.

Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Amaral Cavalcante.

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