Otavio Frias Filho, em imagem de arquivo de maio de 2013
Foto: Nilton Fukuda/Estadão Conteúdo/Arquivo
Publicado originalmente no site G1/blog/Helio Gurovitz, em 22/08/2018
As lições de Otavio Frias Filho
Ele teve papel crucial para a consolidação do jornalismo
profissional no Brasil
Por Helio Gurovitz
Quis o destino que Otavio Frias Filho morresse uma semana
depois de Claudio Weber Abramo, ambos cedo demais, ambos levados pelo câncer,
maior inimigo da humanidade depois dos males do coração.
Claudio, ex-matemático que se tornara editor da primeira
página e que eu conhecera graças a meu interesse por matemática, foi o primeiro
a me levar à redação da Folha de S.Paulo, recém-assumida por Otavio. Naquele
momento, no início dos anos 1980, ia apenas entrevistar um jornalista para um
trabalho de escola. Queria estudar matemática e jamais imaginaria que, dali a
poucos anos, começaria a trabalhar como jornalista naquele lugar.
“Não entendo como você foi parar lá”, me perguntou Claudio
mais de dez anos depois, quando tentava me tirar do jornal para outro emprego
(na ocasião, recusei a proposta). A redação erguida e comandada sob o tacão de Otavio
na Folha era conhecida como péssimo lugar para trabalhar.
O regime de óbvia inspiração stalinista criava uma tensão
permanente, um clima de eterna paranoia. Não havia horários nem limite, além
dos biológicos, para quanto alguém podia ou devia trabalhar. “Na Folha, é
assim”, era um argumento suficiente para encerrar qualquer discussão sobre
qualquer assunto, da ortografia à astrofísica.
Chefes eram avaliados não tanto por talento jornalístico,
conhecimento ou capacidade intelectual quanto pela disciplina no cumprimento
das ordens superiores, emanadas em última instância dos memorandos ou
comunicados assinados com as iniciais de Otavio, “OFF”.
“Se houvesse naquele tempo denúncias por assédio moral,
estaríamos respondendo a processos até hoje”, comentava ontem um ex-secretário
de redação com outro depois da cerimônia de cremação de Otavio.
Paradoxalmente, derivava desse clima a qualidade do
jornalismo, preocupado obsessivamente em ser correto no relato dos fatos –
notas na seção “Erramos” eram motivo de vergonha –, em ouvir o famigerado
“outro lado” em todas as reportagens e em respeitar o padrão de texto imposto
pelo Projeto Folha, nem sempre correto segundo a gramática, nem sempre belo
segundo a estilística – mas sempre claro e objetivo segundo a “jornalística”.
O modelo crítico – notícia era sempre má notícia, tanto que
criaram uma seção “boa notícia” para compensar –, pluralista, independente e
apartidário imposto pelo Projeto Folha deu forma ao jornalismo profissional
que, depois da redemocratização, espalhou-se pela imprensa no Brasil.
Embora o país já tivesse registrado várias iniciativas de
manter distância das fontes e independência editorial – com destaque para O
Globo de Roberto Marinho e O Estado de S. Paulo de Júlio de Mesquita Filho –,
elas eram exceção. Foi a Folha dos anos 1980 que transformou as práticas que
definem o jornalismo no mundo todo em padrão no mercado brasileiro.
Depois do Projeto Folha, não haveria mais jornais
flagrantemente partidários, como a Última Hora de Samuel Wainer ou a Tribuna da
Imprensa de Carlos Lacerda. O responsável pelo passo pioneiro na consolidação
do jornalismo profissional no Brasil foi Otavio – e isso bastaria para lhe
garantir um lugar na nossa história.
As ideias essenciais, ele aprendera com Claudio Abramo, o
pai de Claudio Weber, preceptor de Otavio como jornalista na Folha dos anos
1970. Claudio (o pai) fora responsável por implementar o padrão de jornalismo
no Estado no final da década de 1950. Trazido para a Folha, transformou-a no
jornal sério que Otavio levaria ao auge. Apresentou-o às melhores redações do
mundo, como o New York Times, para prepará-lo a assumir a direção da Folha.
Uma vez no cargo, em 1984, Otavio promoveu a campanha das
Diretas Já e, apesar da derrota, tornou a Folha, dali em diante, o veículo mais
lido e temido em Brasília. Era o jornal que líamos em casa naquele início dos
anos 1980, quando pela primeira vez entrei numa redação, e em cuja primeira
página aparecemos, meu pai e eu, em meio à multidão que exigia democracia no
comício do Vale do Anhangabaú. Foi também o jornal onde aprendi o ofício de
jornalista.
Uma lição basta para entender o estilo de Otavio. Nos anos
1990, com menos de um ano de jornalismo, fui designado para cobrir uma reunião
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), uma das obsessões
de Otavio. O então presidente da SBPC, Aziz Ab’Sáber, atacara o ministro da
Fazenda, Rubens Ricúpero, em entrevista que publicamos no primeiro dia da
reunião.
Diante dos microfones, depois da abertura em Vitória, ele
soltou um palavrão diante da reação de Ricúpero (me lembro de, incrédulo, ter
conferido antes de publicar os termos exatos com Ricardo Lessa, naquela época
repórter do Estado, hoje no comando do Roda Viva). Ab’Sáber ligou a Otavio não
apenas para contestar a publicação do palavrão, mas para negar que tivesse dado
a declaração original em “on”.
A entrevista estava gravada. Por determinação de Otavio,
tive, no fim de semana, de transcrever novamente toda a fita, anotar todos os
pedidos de “off” e marcar a extensão exata de tempo transcorrido entre eles e a
declaração sobre Ricúpero. Perdi horas preparando um relatório detalhado, que
considerava àquela altura uma mera formalidade para justificar minha demissão.
Depois de entregue e lido pelo secretário de Redação e pelo
editor-executivo, fui chamado à sala de Otavio. Meu relatório e a fita comprovavam
que Ab’Sáber tinha mentido. Em seu tom de voz baixo e pausado, o olhar
determinado atrás dos óculos de aro escuro, a gravata também escura sobre a
camisa alvíssima, o jeito metódico a girar o lápis para o alto e catá-lo com a
mão esquerda (ele era canhoto), sem errar uma única vez, Otavio me deu parabéns
pelo relatório. E proferiu uma lição que depois repeti a vários jornalistas que
chefiei:
– Não é porque alguém, em tese, está do “lado do bem”, que
deixa de mentir quando se trata de defender o próprio interesse. O importante é
descobrir a verdade.
Mesmo tendo recusado a oferta de Claudio, decidi deixar a
Folha algum tempo depois. Otavio ligou para minha casa (não havia celular).
Disse que estava chateado, mas entendia a decisão. Respondi que jamais
esqueceria tudo o que havia, apesar de todas as dores, aprendido naqueles anos.
Foram minha escola.
Uma escola cujos mestres, como Otavio ou Claudio, aos poucos
se vão, vítimas do câncer ou de outros males, enquanto os que restam se veem às
voltas com os desafios urgentes da era digital, o desmoronamento de negócios
editoriais antes sólidos e campanhas difamatórias contra o jornalismo
profissional promovidas por calhordas, escondidos sob o anonimato das redes
sociais.
Uma escola cujas lições foram resumidas do modo preciso e
feliz pelo pai comum a Claudio (biológico) e Otavio (profissional), Claudio
Abramo, ao definir o jornalismo como “o exercício diário da inteligência e a
prática cotidiana do caráter”. Cabe a nós e às futuras gerações preservá-las.
Texto e imagem reproduzidos do site: g1.globo.com/blog/helio-gurovitz
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