Publicado originalmente no site do Observatório de Imprensa
Sérgio Augusto e o jornalismo cultural
"Precisamos democratizar o elitismo"
Por Fabrício Marques *
O jornalista Sérgio Augusto nasceu em 25 de janeiro de 1942,
no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Publicou sua primeira crítica de
cinema, profissionalmente, na Tribuna da Imprensa, em novembro de 1960. Com
mais de meio século de atividade como crítico, repórter, redator e editor,
participou, não por acaso, dos momentos mais importantes das mais importantes
publicações do país, como os jornais Correio da Manhã, Jornal do Brasil e Folha
de S. Paulo,nas revistas O Cruzeiro e Veja e nos semanários alternativosPasquim
e Opinião. Não se pode esquecer, ainda, suas colaborações para a Senhor (a
revista das revistas),Diner’s e Leia Livros. Desde 1996 escreve para o Estado
de S. Paulo.
Em todas essas publicações o jornalista deixou a marca de
uma inteligência sofisticada, entendendo a cultura de um modo ampliado, sem que
nenhuma fronteira o impeça de falar de livros, filmes, discos, acontecimentos,
enfim, tudo aquilo que levou certa vez o poeta Fernando Pessoa a afirmar a
necessidade da arte em um mundo civilizado, pois “só a vida não basta”.
Dá prova desse interesse expandido o amplo arco de assuntos
que perpassam esta entrevista, feita pore-mail. A maioria das perguntas é
motivada pelos ensaios de jornalismo cultural reunidos em Lado B(Record, 2001)
e As penas do ofício (Agir, 2006). No primeiro, Sérgio Augusto escolheu textos
lançados anteriormente, entre 1997 e 2001, em duas publicações, a — em suas
próprias palavras — “séria, chique à beça, mensal e paulista” Bravo!, e a
“anárquica, escrachada, semanal e carioca” Bundas. O segundo livro reserva
espaço apenas para textos da revista de São Paulo, de 2001 a 2005.
Com exceção de Botafogo – entre o céu e o inferno (Ediouro,
2004), seus outros livros também são voltados para momentos luminosos do
universo cultural: Este mundo é um pandeiro (Cia das Letras, 1989),Cancioneiro
Jobim (Casa da Palavra, 2000), Cancioneiro Vinicius de Moraes/Orfeu (Jobim
Music, 2003) e O Melhor do Pasquim (Desiderata (2006-2009). O mais recente é E
foram todos para Paris (Casa da Palavra, 2011).
No final do ano passado você lançou E foram todos para
Paris(Casa da Palavra), em torno dos pontos turísticos da capital francesa
relacionados à cena artística e cultural. A França exerceu uma influência
marcante sobre a cultura brasileira (especialmente a literatura) nas primeiras
décadas do século passado. A partir de determinado momento, contudo, a cultura
americana se impôs, com sua rica diversidade (negros, judeus, latinos, árabes e
orientais), o que prevalece até hoje. Para você, como essas influências
afetaram o jornalismo cultural praticado no país?
Sérgio Augusto– No mundo inteiro essas prevalências
ocorreram. Na Belle Époque, a cultura francesa ditava as modas, impunha gostos,
com mais intensidade em países periféricos como o Brasil. O colonialismo
cultural então falava francês. O Rio de Janeiro modernizou-se seguindo
paradigmas parisienses. O prefeito Pereira Passos foi o Barão Haussmann
carioca. Ele não apenas limpou e saneou a cidade como fez dela uma
Paris-sur-Mer, uma miragem de progresso e civilidade. Nossas elites imitavam os
franceses—e também os ingleses—em quase tudo: nas escolas, nos clubes fechados,
no interesse por corridas de cavalo, as crianças aprendiam francês, às vezes
antes mesmo do português, liam livros impressos em Paris, tinham lições de boas
maneiras ministradas por governantas inglesas, nossos escritores devoraram a
literatura francesa e as publicações culturais e mundanas impressas em Paris.
Nossa ligação com a França e sua cultura vem desde meados do
século 16 e atingiu seu ápice com a Inconfidência Mineira, alimentada pelos
ideais libertários dos Enciclopedistas franceses, com o Romantismo, o
Positivismo, o Modernismo, o Existencialismo, e estendeu-se até a Nouvelle
Vague, inspiradora do Cinema Novo. Houve um tempo em que as livrarias, as
confeitarias, as casas noturnas e as salas de cinema tinham nomes franceses.
Uma de nossas primeiras revistas de cultura, Nytheroy, lançada em 1836, era
editada em Paris pelo poeta carioca Gonçalves de Magalhães, Visconde do
Araguaia.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a cultura americana, com
toda sua modernidade, sua diversidade, seu charme, mais a força econômica do
dólar e o status de lingua franca que o inglês adquiriu, ocupou o que lhe
parecia de direito após a derrota do nazismo. Os soviéticos também foram
fundamentais para a destruição do 3º Reich, mas nunca conseguiram impor sua
cultura em escala mundial porque não tinham as mesmas armas de sedução dos
americanos. Os russos não tiveram Hollywood, não usufruiram de um melting pot cultural
com negros e judeus, não produziram um Cole Porter, um Hemingway, um Armstrong,
um Sinatra, uma Marilyn, um Elvis Presley, nem revistas como Time, Esquire e
New Yorker, e foi com esses trunfos que os americanos varreram os franceses de
nosso horizonte cultural.
O sociólogo Zygmunt Bauman definiu nosso tempo como
“inóspito à educação”. Em 2001, ao definir o Brasil como “uma nação de
videotas”, você prescreve que, para para compensar essa lavagem cerebral e
espiritual imposta pela TV há um caminho: “Educar, inocular ou pelo menos
atenuar os efeitos do soma [isto é, o soro da alegria de O Admirável Mundo
Novo, de Aldous Huxley], popularizar outras formas de entretenimento e fontes
alternativas de prazer e oxigenação cerebral, e estimular o seu consumo, para
que a fleixibilidade mental não seja um privilégio de poucos”. Você arremata
com essa frase definitiva: “Precisamos democratizar o elitismo”. Mas, de modo
prático, como se pode fazer isso? Já se percebe um movimento das TVs pagas de
privilegiar filmes dublados em detrimento do legendado, por exemplo.
S. A. – Na verdade, a única coisa que se democratizou por
aqui desde a implantação do Plano Real, e com maior ímpeto a partir do governo
Lula, foi o acesso das classes C e D aos bens de consumo cultural. Isso é bom
do ponto de vista social e econômico, mas configura uma evolução meramente
quantitativa, boa para as vendas e índices de audiência, mas nociva para uma
efetiva evolução mental e espíritual da população, na medida em que, para usar
uma metáfora gastronômica, a presuntada se impõe ao patê cultural. Chamei
atenção para esse pacto faustiano com o mefistófeles do consumismo 15 anos
atrás, quando, em plena era FHC, a cultura, já órfã de gênios, emasculada pela
supremacia mercadológica e desassistida por uma mídia submissa aos mais
rasteiros interesses da indústria cultural, começou a ser amplamente dominada
pelo pagode, pela vulgaridade, pela cretinice satisfeita, tendo como paradigmas
a Carla Perez e o Tiririca. Só os paradigmas mudaram, substituídos por avatares
de igual perfil populista. A TV Globo virou uma Record com mais recursos e mais
telespectadores cativos. A ordem, lá e por toda parte, é baixar o nível. A
televisão a cabo é uma vergonha, da programação aos pacotes fechados impostos
aos clientes, dos intervalos entupidos de comerciais aos filmes dublados, que,
em certos dias, tomam conta dos canais. O filme dublado é o suprassumo do
nivelamento por baixo, da subserviência ao analfabetismo, do desrespeito à
criação alheia—e também, não nos esqueçamos, aos deficientes auditivos.
Muito embora os jornalistas tenham hoje à disposição todo o
acervo acumulado em séculos, assistimos a um rebaixamento do nível de
conhecimento. Há uma perda de parâmetros, de referências. Quando morreu o
diretor John Hughes, um repórter da Folhaclassificou seu filme “Curtindo a vida
adoidado” de obra-prima, por exemplo. Como você avalia essa situação? Você
mesmo escreveu: “Sou de um tempo em que nenhum repórter, por mais jovem e
tímido que fosse, deixaria passar em brancas nuvens tolices ditas hoje
impunemente até mesmo de reconhecido valor”. Para exemplificar, você fala do
caso de Carlinhos Brown, que numa entrevista recusou-se a reconhecer Mozart
como um clássico pelo simples fato de conhecer apenas uma parte de sua obra.
S. A. – É constrangedor. Qualquer filme com mais de 20 anos
agora é tachado de “clássico” ou “obra-prima”. Quando, faz tempo, o filme
Desirée, o Amor de Napoleão passou pela primeira vez na televisão, o “Caderno
B” do Jornal do Brasil referiu-se ao abacaxi como “uma obra-prima com Marlon
Brando”. Putz! Nem a mãe de Henry Koster, diretor do filme, o tinha em tão alta
conta. Volta e meia, quando morre um figurão do cinema, seus obituários nos
agridem com distorcidas observações do gênero, supervalorizando o que nunca
teve mérito. Não sei o que é pior, se a reverência descabida, ditada pela
ignorância e a insegurança, ou a detonação gratuita, falsamente iconoclasta, de
filmes antigos só por serem antigos, também típica das novas gerações. A culpa
maior é dos editores que aceitam trabalhar com mão de obra pouco qualificada. O
cinema sofre mais por ser a casa-da-mãe-joana das artes ou do entretenimento.
Como todo mundo vê filmes desde criancinha, acredita-se que qualquer um esteja
apto a criticar um filme. Com a ópera, a música erudita e o balé, o buraco é
mais embaixo, os amadores, os curiosos e os aficionados tout court não têm vez.
Carlinhos Brown, numa entrevista à Playboy, disse que se
recusava a reconhecer Mozart como um clássico por ter ouvido apenas uma parte
de sua obra. Mesmo que só tivesse ouvido duas peças de Mozart na vida, o
percussionista baiano não tinha por que submeter um conceito universalmente
aceito—Mozart é um clássico—ao arbítrio de sua insuficiente cultura musical.
O advento de sites como o Youtube, que fornece uma
infinidade de informação visual disponível a qualquer um que tenha acesso à
internet, cria uma nova relação com a memória. Posso ler uma crítica sobre um
CD e imediatamente acompanhar essas músicas, saber mais sobre quem a compôs.
Hoje é possível acessar o passado de uma maneira sem precedentes. Antes, o
passado estava em lugares específicos – bibliotecas, coleções de revistas
antigas, microfilme, as informações eram mais difíceis de se conseguir, tal
como observa o crítico britânico Simon Reynolds Retromania (faber & faber).
Para você, quais as implicações desse acesso facilitado ao passado?
S. A. – Entre outras coisas, a obsolescência de elefantes
como eu, que agora também posso me dar ao luxo de não me lembrar de nada que
não esteja ao alcance de qualquer um na internet. Passamos a exercitar menos a
memória, o que é cômodo mas não é saudável; ganhamos espaço em nossos arquivos
“analógicos”, jogando fora recortes e outros papéis que agora são armazenados
de maneira mais econômica, e até nas nuvens. Mas a informação pura e simples
pouco ou nada vale se você não sabe como utilizá-la, vale dizer, relacioná-la
com outras de forma eficaz, inteligente, produtiva. É preciso saber transformar
a informação em conhecimento, em saber. O Google, a Wikipédia e o IMDB
facilitaram nossa vida, agilizaram nosso trabalho, transformaram qualquer um de
nós em sabichão, em polímata, aliviaram a barra dos estudantes (que agora
dispõem de cola digital, online), mas, a exemplo da substituição da pena pela máquina
de escrever, não melhoraram a qualidade da nossa produção intelectual.
Quando o Chico Buarque lançou seu disco mais recente, falou:
“Eu achava que era amado, porque as pessoas iam ao show, me aplaudiam e, na
rua, me cumprimentavam. Descobri, na internet, que sou odiado. Agora entendi as
regras do jogo”. Quais são as regras do jogo agora, na sua opinião?
S. A. – A internet é um território sem lei, logo sem regras,
onde as vaias, os insultos e as bravatas podem se proteger no anonimato, se
esconder atrás de pseudônimos. Chico, como todo artista de sucesso, sempre
despertou inveja e ressentimentos, só que os invejosos e ressentidos não tinham
coragem de extravasar seus baixos sentimentos às escâncaras. Quando passaram a
dispor de um dispositivo como a internet, abriu-se a caixa de pandora.
Você trabalhou no Correio da Manhã. Era chegar à redação e
deparar-se, em pessoa ou em textos, com Otto Maria Carpeaux, Carlos Heitor
Cony, Carlos Drummond de Andrade... Dessa geração, quem você considera
importante para sua formação? Vale dizer que você escreveu sobre o Carpeaux
chamando-o de nosso “último renascentista”. O poeta Affonso Ávila disse que o
Brasil deve ser considerado Antes e Depois de Carpeaux.
S. A. – Faltou acrescentar à lista Antonio Callado, José
Lino Grünewald e Antonio Houaiss. Trabalhavam todos numa sala chamada de Petit
Trianon, que ficava a uns 3 metros da minha mesa, à direita de quem entrava na
redação. Eu não saía de lá. Era um noviço com 19 para 20 anos de idade, imagine
o que aquela convivência significou para mim. Meus três ou quatro anos de
Correio da Manhã valeram por um curso universitário. Se juntarmos todas as
redações de jornal ou revista de hoje ainda ficaremos a anos-luz daquela. A
figura mais importante para minha formação, embora não citado por você, foi o
crítico de cinema Antonio Moniz Vianna, meu guru desde os 15 anos, quando o li,
por acaso, pela primeira vez. Mesmo sem entender a maior parte do que li, dada
a minha falta de repertório, fiquei fascinado, e disse para mim mesmo: é isso
que eu quero ser na vida. Herdei a coluna do mestre quando ele assumiu a chefia
de redação do Correio, e me senti como se sentiria um pároco de aldeia
subitamente convidado pelo papa para tomar seu lugar na Santa Sé.
Carpeaux foi a pessoa mais culta que eu conheci e que mais
coisas me ensinou. Só não entendia de futebol e música popular. Fazíamos testes
de brincadeira, para avaliar sua erudição, e ele passava em todos. Ainda
trabalhei com ele, Callado e Houaiss nas enclopédias Barsa e Mirador. Foi uma
figura fundamental para o nosso processo civilizatório.
Você foi preso pela ditadura uma vez, em 29 de fevereiro de
1972 (ano bissexto como este agora). Sete anos depois, foi enquadrado na Lei de
Segurança Nacional por conta de “Mar de lama”, reportagem sobre casos de
corrupção no governo Geisel. Você depois descobriu que os órgãos de segurança
mantinham um dossiê a seu respeito desde novembro de 1965, quando trabalhava no
Jornal do Brasil. Você pode falar um pouco dessa experiência? De que modo ela
te afetou (ou não)?
S. A. – Foi chato, mas não tirou sangue. A turma do Pasquim
vivia debaixo de censura e sob constante ameaça de uma temporada nos porões da
ditadura, e vários de sua equipe original passaram dois meses na cadeia, na
Vila Militar, sem uma acusação formal, sem processo. Minha prisão, em fevereiro
de 1972, justo no aniversário do Jaguar, resultou de um acúmulo de equívocos e
coincidências. Preparávamos uma edição especial sobre Ipanema, Miguel Paiva
fora escalado para entrevistar Ricardo Amaral em seu bunkerna Lagoa Rodrigo de
Freitas, e Bruno Barreto faria as fotos. Bruno, estagiando como fotógrafo do
jornal, tinha só 17 anos. Como fazia um dia lindíssimo e eu, cuidando da edição
do número, não tinha nada para fazer naquele início de tarde, resolvi
acompanhá-los. Fomos no Opala branco que o Paulo Francis vendera ao jornal
antes de se mudar para Nova York, no ano anterior. Miguel Paiva ao volante.
Quase no estacionamento da Lagoa, fomos parados por uma blitz. A polícia
buscava um Opala branco envolvido num assalto a banco pela manhã, no centro da
cidade. Assalto por militantes da luta armada. Talvez nos tivéssemos livrado da
blitz se os documentos do carro estivessem no porta-luvas e Miguel não
trouxesse em sua bolsa uma carteira falsa de estudante, que usava para pagar
meia entrada nos cinemas. Resultado: fomos levados para a 14ª Delegacia, no
Leblon, e depois para o DOPS, onde ficamos presos até o fim da noite. Havia no
DOPS um dossiê a meu respeito, por ter assinado um manifesto contra a prisão
dos “18 do Glória”, em 1965, mediado um debate sobre o filme Terra em Transe,
no Museu da Imagem e do Som, em 1967, e constar da caderneta de endereços do
Fernando Gabeira, que havia sido meu colega no Jornal do Brasil, participara do
tal debate sobre o filme do Glauber, e, last but not least, ajudara a raptar o
embaixador americano. Por uns tempos precisei da autorização da Polícia Federal
para viajar ao exterior. O enquadramento na Lei de Segurança Nacional me levou
a um tribunal militar, mas afinal não deu em nada. O veredito demorou tanto a
sair que acabei beneficiado pela Lei da Anistia. Resumindo: sofri apenas
apreensão e constrangimentos durante a ditadura. Ali por volta de 1974 era
censurado previamente nos três veículos para os quais escrevia: Pasquim, Veja e
Opinião. Cheguei a brincar com o Millôr, que escrevia nos dois primeiros, mas
não no Opinião: “Sou eu, não você, o jornalista mais censurado do país”.
Em um de seus textos você lembra o coronal Darci Lázaro, que
ameaçou: “Se essa história de cultura vai-nos atrapalhar a endireitar o Brasil,
vamos acabar com a cultura durante trinta anos”. Qual o tamanho do estrago que
o regime militar provocou na cultura brasileira?
S. A. – O estrago foi enorme, como é sabido e está
exaustivamente documentado em livros, como também é fato que quando chegamos a
1994 pudemos olhar para trás e dizer: “Já se passaram os 30 anos dados pelo
coronel Darcy Lázaro e sua ameaça não se cumpriu”. O único Darcy daquele tempo
que entrou, gloriosamente, para a história do Brasil foi o Darcy Ribeiro,
odiado por seu xará fardado, que hoje é apenas um estande de tiro em Brasília,
preito irrelevante de que só tomei conhecimento consultando o Google.
Escrevendo sobre Art Spiegelman, você lembra que ele levou
ao editor da New Yorker, David Remnick, uma série de quadrinhos sobre a
experiência de se viver numa cidade ameaçada simultaneamente por Bush e Osama
bin Laden (no Brasil, saiu com o título À sombra das torres ausentes, pela
Companhia das Letras). Na sequência, Art pediu demissão e publicou a série em
outro jornal. A partir desse episódio, pergunto: qual o papel e a importância
de um editor quanto aos critérios e valores que norteiam uma publicação? Lembro
ainda aquela história do Paulo Francis, que publicou um texto criticando
atuação da atriz Tônia Carrero. Depois, afirmou que, se o editor tivesse
conversado com ele, talvez não publicasse a crítica.
S. A. – O editor é ou deveria ser o superego de qualquer
publicação, seja ele o dono do negócio ou apenas seu mais graduado
intermediário. O ideal é que seja o mais capacitado, experiente e sensato da
redação ou ao menos dê essa impressão. Afinal, são desses atributos que deriva
sua ascendência. David Remnick é um excelente editor mas é difícil julgar se
exagerou na dose de cautela ao vetar os quadrinhos do Spiegelman. Todo editor
tem seu dia de censor; faz parte da função. No Brasil houve e continua havendo
editores que, se trocados pelo contínuo, ninguém notaria a diferença.
O capitalismo global cometeu um erro fatal: modelar as
diversas economias mundiais por um único padrão, sem levar em conta suas
diferenças econômicas e culturais. Essa é uma avaliação de John Gray, no livro
Falso Amanhecer(Ed. Record, no original, “False Dawn”), sobre o qual você
escreveu. De que maneira essa estandardização se faz presente no jornalismo
cultural praticado no Brasil hoje?
S. A. – Nosso jornalismo cultural já foi um dos melhores da
imprensa mundial. Nos anos 80, Matinas Suzuki Jr., que então editava a
“Ilustrada”, o caderno cultural e de variedades da Folha de S. Paulo, ousou
proclamar essa excelência nas páginas do jornal. O “Caderno B” do Jornal do
Brasil, desde que surgiu, no final dos anos 50, até os anos 80, foi um farol de
inteligência e inventividade. O mesmo se diga do “Quarto Caderno” do Correio da
Manhã, editado pelo Francis na segunda metade dos anos 60. Nas duas últimas
décadas, todos os “segundos cadernos” ficaram parecidos, excessivamente
caudatários da indústria cultural, como se pautados por uma central de
divulgadores. O “Caderno 2” do Estado de S. Paulo é, hoje, uma honrosa exceção.
E não sou só eu que assim pensa.
Ao mencionar o Instituto Moreira Sales, com ações no Rio, em
São Paulo e em Poços de Caldas, você pergunta: “Quantos institutos e fundações
culturais patrocinados por sobrenomes ilustres existem aqui?” Por que os nossos
ricos não são como os ricos dos EUA, que fazem filantropia pelo menos para
conquistar status?
S. A. – Faltam-lhes tradição nessa forma de acumulação do
chamado capital prestígio. A formação socioeconômica do país nos condenou a ter
mais empresários e argentários que preferem guardar quadros em cofres e comprar
cavalos e jatinhos particulares do que obras de arte para usufruto público.
Contam-se nos dedos os que nos legaram coleções, museus, bibliotecas e
fundações. Nossas leis de incentivo fiscal, além de recentes em relação às de
outros países, nasceram cheias de furos, permitindo que determinadas
instituições criassem fundações que funcionam mais como apêndices do
departamento de marketing daquelas corporações.
Não mais do que 10 ou 15 gigantes da mídia decidem o que
vamos ver e ouvir. São eles que dominam a indústria do entretenimento e da
informação. Como resistir à homogeneização cultural?
S. A. – Não sei. Talvez se os editores de jornais e revistas
fizessem um pacto para enfrentar juntos a tirania da mesmice, repudiando a
homogeneização, alguma mudança poderia ocorrer. Mas isso é umwishful thinking,
uma utopia. A concorrência ficou muito acirrada, sempre uma ou mais publicações
romperiam o acordo para obter algum tipo de vantagem sobre as demais, e assim
iludir-se de que terão mais tempo de vida. Para enfrentar a homogeneização é
preciso, antes de mais nada, ter ousadia e condições para ser heterogêneo.
George Orwell cunhou a expressão “Thought Police” (polícia
do pensamento), a propósito do controle de ideias nas ditaduras comunistas.
Parece que eclodiu uma nova era desse controle, através do “politicamente
correto”. Para você, o politicamente correto de hoje têm o mesmo sentido das
patrulhas ideológicas dos anos 70?
S. A. – O politicamente correto é o primo rico e estrangeiro
da patrulha ideológica; é um fenômeno globalizado, uma pestilência mundial
propagada pelos americanos, sem prazo de validade, portanto mais daninho.
Sei que você trabalhou com editor no segundo caderno do
Correio da Manhã. Em outra(s) publicação(es) também exerceu esse ofício? Pode
falar um pouco dessa experiência? Você se sentia melhor como repórter, ensaísta
ou editor?
S. A. – Fui alçado à condição de editor quando o Correio da
Manhã passou a ser estrangulado economicamente por ter-se voltado contra o
regime militar depois do primeiro Ato Institucional, em 9 de abril de 1964. Só
uma situação anômala como aquela pode explicar a entrega do “Segundo Caderno” a
um menino de 22 anos de idade e apenas quatro de redação. Foi maravilhoso
enquanto durou. Minha liberdade era total. Não havia, naquele tempo, a
obrigação de cobrir todos os eventos culturais da cidade; se o show ou o filme
estreante era bom, ganhava matéria e crítica; se não era, dava-se outra coisa.
Não nos submetíamos à agenda da semana, nem as editoras de livros impunham as
datas em que seus grandes lançamentos tinham de ser resenhados, como há tempos
acontece. Não havia o servilismo de agora. Até por isso os segundos cadernos
dos jornais não pareciam clones ou covers uns dos outros, como os de hoje. Uma
vez gastei a primeira página com cinco fotos espetaculares sobre leões na
África, sustentadas por um texto meu sobre tudo que sabia e aprendi correndo
sobre o rei dos animais, sem exclusão de Androcles e o leão da Metro, claro, e,
à falta de um título que me satisfizesse, declinei na vertical o substantivo
leão em latim: “Leo, leonis, leoni, leonem, leo, leone”. Fez o maior sucesso,
sobretudo pelo inesperado.
Em O frenesi do furo, você afirma que, por volta de 1985, “a
Folhadeu ao caderno de cultura o mesmo status jornalístico da política e da
economia. Foi sem dúvida um avanço, mas algumas deformações ocorreram. Nenhuma
tão desatinada quanto o culto ao furo, à exclusividade” (2000). Você acha que
ainda hoje essa seja a principal deformação?
S. A. – Acho. E talvez tenha até piorado. Sei de escritores
que morrem de medo que algum jornalão publique uma resenha ou uma matéria, mesmo
favoráveis, sobre seu livro, antes dos concorrentes, pois isso, quase
certamente, é uma sentença de morte, uma condenação ao silêncio ou, na melhor
hipótese, a um cantinho de página.
No Pasquimvocê tinha uma página de crítica da mídia duas
vezes por semana. Há um episódio em que, nesta seção, você criticou o próprio
jornal e foi demitido. Pode falar sobre isso? O que aconteceu realmente? Qual
foi a sua crítica?
S. A. – A página, intitulada “É isso aí”, só saía uma vez
por semana porque o Pasquim era um semanário. Tomei as dores do Mino Carta,
que, por causa de uma reportagem maldosa do Wagner Carelli sobre a esquerda
festiva de Ipanema, publicada na IstoÉ, dirigida pelo Mino, foi ferozmente
criticado e gozado noPasquim pelo Ziraldo, pelo Ivan Lessa e não sei mais quem.
Ora, se eu criticava o resto da imprensa, por que haveria de livrar a cara do
Pasquim? Jaguar me demitiu. Por carta! Alegou que eu “não estava vestindo a
camisa” do jornal. Ziraldo alegou que ele, Jaguar, estava de porre quando me
demitiu; tentaram voltar atrás, mas não cedi e saí, no final de 1979. Depois
fizemos as pazes, mas nunca aceitei voltar ao jornal.
Quando você saiu da Folha, em 1996, o Francis disse que sua
saída marcava o fim de uma época do jornalismo cultural. E terminava assim:
“Acabou o asfalto”, tal como registrado em entrevista para o livro Pós-tudo, 50
anos de cultura na Ilustrada(Publifolha). Curiosamente, essa sua saída coincide
com a ascensão das mídias digitais, possibilitada pelo avanço da internet.
Nesses quase quinze anos, quais as principais mudanças que afetaram o
jornalismo cultural, em sua opinião?
S. A. – Exagero do Francis. Mas a frase é maravilhosa como
epitáfio para o modelo de jornalismo no qual Francis e eu fomos criados. O
computador foi, para mim, um bálsamo; a humanidade deveria ter saltado do
cinzel direto para o computador sem passar pela máquina de escrever. A internet
é um luxo, agiliza o serviço, mas a qualidade do jornalismo cultural não
melhorou depois do seu advento. Como podia melhorar com tantos palpiteiros sem
qualificação (e sem um superego) online? Se e quando inventarem um programa com
várias opções de lead para qualquer texto, a qualidade cairá ainda mais, aí,
sim, teremos sacramentado a homogeneização.
Nos jornais impressos europeus e americanos predomina a
publicação de suplemento ou revista semanal de cultura. No Brasil, ganhou forma
o caderno diário. Por que acha que o modelo americano não vingou aqui?
S. A. – Como gostava de dizer Antonio Houaiss, discrepo.
Temos um histórico farto de cadernos culturais: o “Suplemento” do Estado de S.
Paulo; o também legendário SDJB (“Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil),
que apesar do nome saía aos sábados; o suplemento literário da Tribuna da
Imprensa, editado por Mário Faustino; e, mais recentemente, o “Folhetim”,
“Mais!”, “Leia Livros”, “Prosa e Verso”, “Sabático”.
Destaco duas observações suas. 1) “Assim como no resto do
mundo, temos produzido bons e maus filmes, sendo que os maus continuam
sobrepujando os bons, ainda que a nossa crítica especializada, no geral
complacente e paternalista, tente nos convencer do contrário”; e 2) “O moderno
cinema brasileiro não teria chegado aonde chegou senão fosse a participação
ativa, entusiástica e, não raro, benevolente da imprensa, vale dizer, da crítica
de 30 e tantos anos atrás [essa escrita em 1998]”. Quero contrapô-las à
afirmação de Antoine de Baecque, crítico francês que chefiou os Cahiers du
Cinéma: em Cinefilia, ele diz que nunca se escreveu tanto sobre filmes quanto
agora, e nem tanta bobagem. Vivemos um momento difícil em relação à crítica de
filmes?
S. A. – Fecho inteiramente com de Baecque. Existem hoje
milhões de críticos de cinema na internet, muitos até são bons, mas cadê a
Pauline Kael, o Jean Douchet da era digital?
Como você mesmo registrou, “as maiores emoções que o cinema
já proporcionou ao público ocorreram em 1895 (quando chegou), em 1927 (quando
falou) e em 1953 (quando agigantou-se)”. Poderíamos acrescentar aí o uso da
cor, em 1935. Você incluiria o 3D como um desses marcos? No lançamento de A
Invenção de Hugo Cabret, Scorsese se disse encantado com essa técnica, e
criticou o clichê segundo o qual o 3D“só deve ser usado se tiver a ver com a
história”. Qual sua opinião a esse respeito?
S. A. – Até prova em contrário, o 3-D é um gimmick
perfeitamente dispensável, como o Cinerama. Wim Wenders usou-o inventivamente
em Pina, mas gostaria de rever o filme em dimensões normais para testar sua
imprescindibilidade. Se de fato veio para ficar, só daqui a alguns anos
saberemos. Como o cinema hoje hegemônico é dirigido prioritariamente ao público
infanto-juvenil, é provável que fique.
Em 2004, você disse que os documentários têm, “em sua dieta
cinematográfica, o mesmo valor que, na alimentar, dá às saladas e legumes
cozidos. Sei que fazem bem à saúde – do cinema e da gente – mas é quase por
obrigação que deles me sirvo”. Contudo, de lá pra cá o país viu um certo boomdo
gênero, com novos filmes de Eduardo Coutinho, o Santiago, do João Moreira Sales...
Há alguma razão para que esse tipo de narrativa – que tem um parentesco com o
jornalismo, de certa forma – tenha esse destaque?
S. A. – Há. É muito mais fácil rodar um documentário do que
fazer um filme narrativo, de ficção. Mas criar um documentário original, com os
de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles, exige um talento especial, não é
para qualquer bico. Ou seja, rodar um documentário ruim é bem mais fácil do que
fazer um filme de ficção medíocre.
* Fabrício Marques é jornalista e diretor do SLMG
Texto reproduzido do site: jornalggn.com.br/blog/luisnassif
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