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sábado, 22 de fevereiro de 2020

A história da Censura na Imprensa Brasileira


Publicado originalmente no site da revista Aventuras na Historia, em 01 de abril de 2010

A história da Censura na Imprensa Brasileira 

A censura patrocinada pelo governo restringiu a imprensa brasileira desde a colonização. Seus agentes só abandonaram definitivamente as redações em 1978

Por Wagner Gutierrez Barreira 

Em 1935, o jornalista Rodolpho Felippe dava expediente na cela 8 do Presídio Político Paraíso. Detido em "caráter preventivo" pela polícia de Getúlio Vargas, o redator-chefe do periódico anarquista A Plebe sacou de lápis, caneta azul e papel almaço e publicou o manuscrito A Cana, que, em tom satírico, relatava as condições da cadeia paulista. O exemplar único foi recolhido e rendeu ao profissional um processo no Tribunal de Segurança Nacional. A apreensão do texto é um microscópico exemplo de afronta a uma verdade universal: "Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras". É o que diz o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948).

Censurar a imprensa é traço de união entre governos totalitários desde a Antiguidade. "O controle do pensamento vigorou no mundo antigo, grego, romano, na Idade Média, Moderna, mas foi no século 20 que alcançou seu maior vigor", afirma a historiadora Anita Novinsky no livro Minorias Silenciadas. A história do Brasil mostra que a liberdade de expressão que prevalece hoje (leia o quadro na pág. 50) é um hiato num mar de censura. Do Descobrimento à chegada da família real portuguesa, em 1808, se proibia não apenas a circulação de jornais. Livros, tipografias e até a criação de cursos superiores eram rigorosamente vetados. Mas, desde que se inventou a restrição, surgiram também maneiras de driblá-la. O português Isidoro da Fonseca, perseguido pela Inquisição, emigrou para o Brasil e fundou a primeira tipografia local, em 1746. Fonseca teve seus bens sequestrados e incinerados e acabou deportado para Portugal. Herança do estado português e da Igreja, nem Luís de Camões e Gil Vicente, baluartes da literatura lusitana, escaparam da mão pesada dos censores, lá e aqui. Durante o período colonial, agentes do Santo Ofício, os "visitadores de naus", vasculhavam navios atrás de livros contrabandeados - nem sequer a leitura da Bíblia por leigos era permitida. Não por acaso, o primeiro jornal brasileiro foi criado em... Londres. O Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa, foi remetido clandestinamente ao país de 1808 a 1822, ano da última edição.

A chegada da corte portuguesa e a abertura dos portos não reduziram o controle sobre as publicações. Criou-se a Imprensa Régia para a divulgação dos atos do governo. Títulos independentes continuaram proibidos. E o rei agregou um personagem que duraria até quase o fim do século 20: o burocrata encarregado de decidir o que poderia ou não ser lido. Na ocasião, trabalhava na Mesa do Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro. A Independência tampouco trouxe alívio. Dom Pedro I usou o Poder Moderador para censurar jornais e reprimir qualquer ideia contra o Império. Em 1830, o jornalista Líbero Badaró (que hoje dá nome à rua em que foi assassinado, em São Paulo) foi morto por um suposto amigo de dom Pedro.

Se o pai jogava na linha dura, o filho praticava a bonomia. Sob dom Pedro II, o Brasil viveu sua primeira fase de liberdade de informação e pensamento. Jornais se multiplicaram: abolicionistas, liberais e até republicanos, como A Província de S. Paulo, depois chamado O Estado de S.Paulo. A Proclamação da República, em 1889, levou outra vez a imprensa ao paredão. Um mês após a instauração do novo regime, foi criada uma lei de imprensa autorizando uma junta militar a julgar "abusos da manifestação do pensamento" - o chamado Decreto Rolha durou quase um ano. Na República Velha, vários jornais foram empastelados - com danos materiais e agressões aos autores.

A Revolução de 1930 viu surgir a primeira cadeia noticiosa do país, os Diários Associados, mas também mandou jornalistas para a cadeia. De anarquistas a fascistas, todas as publicações passaram pelas mãos de censores e policiais, mais dos últimos que dos primeiros. Quem personificou o controle da mídia no período foi o escritor sergipano Lourival Fontes. Intelectual fascista, dirigiu o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC) e, mais tarde, o Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP. Com o golpe do Estado Novo, em 1937, o DPDC, numa clara ironia, ocupou o Palácio Tiradentes, onde antes funcionava a Câmara dos Deputados - fechada por Getúlio. Publicações estrangeiras foram proibidas e, numa manobra do governo, a imprensa brasileira ganhou isenção de impostos na importação de papel. Mas só gozava dos favores fiscais quem seguisse a cartilha do regime. Havia ainda a Agência Nacional, que distribuía, de graça, reportagens chapa-branca.

Em março de 1940, tropas do Exército invadiram a redação de O Estado de S.Paulo para combater uma suposta conspiração armada. A família Mesquita, controladora do jornal, havia apoiado a Revolução Constitucionalista de 1932. Os militares plantaram armas no forro da sede da empresa e prenderam o diretor Francisco Mesquita. O jornal foi mantido sob intervenção por cinco anos. O Estadão voltaria a ter problemas com a censura (como quase toda a mídia brasileira) durante a ditadura militar. No dia 13 de dezembro de 1968, horas antes da promulgação do Ato Institucional No 5, que escancarou de vez o regime de exceção, o jornal publicou o editorial Instituições em Frangalhos, sobre o discurso do deputado Marcio Moreira Alves (o pretexto dos militares para fechar o Congresso). A sede da empresa, que no início apoiara o golpe, recebeu a visita de agentes da Polícia Federal e os exemplares foram apreendidos (inclusive do Jornal da Tarde, do mesmo grupo).

Protestos irônicos

Sob censura prévia entre 1972 e 1975, o Estadão marcou época substituindo as matérias vetadas por versos de Camões. Na noite da edição do AI-5, cinco militares também "visitaram" a redação do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro. O editor Alberto Dines isolou-os em sua sala e tramou com os colegas a resposta. No alto da primeira página, um quadrinho anunciava: "Ontem foi o Dia dos Cegos" (e havia sido mesmo). Outra caixa, à esquerda, trazia a previsão meteorológica: "Tempo negro. Temperatura sufocante. O país está sendo varrido por fortes ventos. Mínima - 5 graus, no Palácio Laranjeiras. Máxima = 37, em Brasília". Também as legendas tratavam as fotos de forma ambígua. A ousadia trouxe de volta os militares e o jornal não circulou no dia seguinte.

Antes do AI-5, telefonemas e bilhetes (às vezes apócrifos) informavam os temas proibidos. Essa mesma sistemática nebulosa era aplicada nas redações onde nunca houve agentes de plantão. Obscura também era a legislação que tratava da censura prévia. O decreto-lei 1077, de 26/1/1970, era exemplo disso. Autorizava a vigilância antecipada, mas contrariava o artigo constitucional que pretendia regulamentar. Antes do decreto, sem ater-se à censura, desde fevereiro de 1967 a Lei de Imprensa já determinava prisão e penas específicas para jornalistas que atentassem contra a "moral e os bons costumes", e outras irregularidades.

Foi por meio de uma dessas ordens nebulosas que o JB, em 1973, acabou proibido de publicar uma manchete sobre o presidente chileno Salvador Allende, que acabara de ser derrubado por um golpe militar. Dines criou uma primeira página inteira só com texto, sem título. O periódico acabou apreendido. "A história da censura é a história do Brasil’, diz ele, hoje diretor do Observatório da Imprensa, site e programa de TV sobre a mídia. Prisões de jornalistas eram comuns. Mais de 100 processos foram abertos na Justiça Militar contra jornalistas - 15 só sobre o exercício da profissão. Wladimir Herzog dirigia a TV Cultura quando foi preso e morto em 1975 (qualquer alusão à sua morte, vendida na versão oficial como suicídio, foi vetada).

A diretoria do anárquico Pasquim, o semanário carioca que reuniu Henfil, Jaguar, Ziraldo, Tarso de Castro e Paulo Francis, foi inteira em cana numa ocasião. O jornal era submetido à censura prévia. Várias redações, sem o censor a postos, mas sob os olhos vigilantes das autoridades, assumiram a autocensura. O Pasquim fez isso de forma irônica. Numa antológica entrevista com Leila Diniz, os muitos palavrões da atriz foram substituídos por cifrões e asteriscos.

A revista VEJA, da Editora Abril (que também publica AVENTURAS NA HISTÓRIA), teve edições apreendidas - a primeira tratava do AI-5 -, padeceu sobre censura prévia e quase foi inviabilizada. O governo ameaçou obrigá-la a mandar os originais a Brasília (como fez com outras publicações, o que as transformaria em "geladeira de notícias"). Num exercício de resistência, passou a deixar um buraco nas matérias vetadas para evidenciar a truculência. O regime, claro, proibiu a manobra. Censurava até espaço em branco (outros títulos, como o jornal carioca Tribuna de Imprensa, também escancaravam as restrições sem colocar nada no lugar dos vetos). A revista contra-atacou com imagens de anjos e demônios, mais tarde também proibidas. Em 1974, começou a aparecer o logotipo da Editora Abril (a árvore). Um dos alvos da censura era a coluna de Millôr Fernandes. Em maio, a ilustração Millôr e os Canais Competentes irritou o governo e levou os censores de volta à redação por dois anos. Antes disso, intercalaram-se intervalos de "censura branca" - ordens repassadas por telefone ou bilhete - e prévia, com os agentes na sede.

O controle da mídia visava matérias políticas, mas descambou logo para o vago campo da "moral e dos bons costumes". A circulação de títulos como Destino e Amor, da Rio Gráfica e Editora, foi suspensa. A TV Globo não pôde exibir a novela Roque Santeiro (ela chegaria às telas apenas em 1985). A Divisão de Censura e Diversões Públicas fiscalizava a produção artística. Criada em 1946, só seria extinta após a Constituição de 1988. A revista REALIDADE, também da Abril, foi ameaçada de apreensão por um juiz carioca em agosto de 1966 caso publicasse as conclusões de uma pesquisa sobre a sexualidade entre os jovens. Em 30 de dezembro, uma edição dedicada à mulher brasileira acabou apreendida pela Justiça sob o argumento de que as reportagens eram "obscenas e profundamente ofensivas à dignidade e à honra da mulher". O confisco atingia toda a tiragem, 475 mil exemplares, parte já nas bancas. Cerca de 200 mil foram vendidos clandestinamente por jornaleiros. Roberto Civita, presidente do Conselho Editorial da Abril, à época diretor de redação do título, relembra que a revista trazia "um retrato ousado, porém fidedigno, de como as mulheres brasileiras da época viviam, trabalhavam, amavam e pensavam. Mas certamente não obsceno e muito menos atentatório a seja o que for, com exceção do obscurantismo e da censura".

A sanha dos censores atingiu inclusive as notícias sobre a epidemia de meningite, nos anos 1970, típico caso em que a informação ajuda a salvar vidas. A chaga durou até o fim do mandato do presidente Ernesto Geisel. O jornal O São Paulo, da arquidiocese paulistana, foi o último a ver o censor sair da redação para não voltar mais. Isso aconteceu só em 1978.

A censura hoje

Legislação ainda permite distorções

A censura institucional acabou com a ditadura, mas o Brasil ainda convive com restrições determinadas pelo Judiciário. Até o fechamento desta edição, O Estado de S.Paulo estava proibido havia quase 300 dias de publicar notícias sobre Fernando Sarney, filho do presidente do Senado e indiciado pela Polícia Federal por crimes como formação de quadrilha na operação Boi Barrica. O jornal aguardava o julgamento do mérito da ação proposta (depois retirada) pelo empresário. José Simão, famoso por suas colunas de humor na Folha de S.Paulo, também enfrentou cortes. Não pôde citar o nome da atriz Juliana Paes, que foi à Justiça, incomodada com adjetivos usados por ele durante a exibição de Caminho das Índias. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal acabou com a Lei da Imprensa, promulgada em 1967, mas agora há um vácuo legal que contribui para que juízes decidam antecipadamente o que o leitor ou o espectador podem ou não saber. "A norma tinha dispositivos constitucionais. É preciso criar uma legislação que proteja a liberdade de expressão, como defende a Associação Nacional dos Jornais", diz Guilherme Doring Pereira, professor de direito da comunicação do master em jornalismo para editores. Hoje, as restrições estão amparadas no direito à privacidade e proteção contra calúnia e difamação. "Temos ainda no governo atitudes de ranço do autoritarismo e riscos para a imprensa livre", afirma a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, citando versão do Plano Nacional de Direitos Humanos. Já a América Latina assiste a um movimento oficial de punição à mídia. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, fechou a maior emissora de TV de seu país e aprovou leis restritivas à imprensa. Ações parecidas ocorreram no Equador, na Nicarágua e na Argentina. A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) identifica prejuízos à democracia na região.

Por uma imprensa livre

O controle dos jornais no regime militar: características e ecos que se mantêm

Há dois momentos de censura explícita e prévia no Brasil republicano (desde 1889 até hoje): durante o primeiro governo Getúlio Vargas (1930-1945) e no regime militar (1964-1985). Sob a ditadura Vargas, principalmente a partir da segunda metade da década de 1930, o controle das notícias cabia ao Departamento de Imprensa e Propaganda. No regime militar, a censura sempre existiu, mesmo que por telefonemas para as redações, informando o que poderia ou não ser divulgado.

Chamamos aqui de censura prévia a atuação do censor dentro da redação, analisando o material pronto para ser publicado (nas TVs e rádios também houve controle, mas há pouca documentação a respeito). Houve uma ambiguidade no regime militar até que se chegasse à conclusão sobre qual órgão exerceria a função. No caso da Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, o dono, Hélio Fernandes, relata que, inicialmente, veio até a sede do jornal um coronel do Exército, sempre muito educado e gentil, mas sem deixar de agir para evitar que chegassem às bancas reportagens consideradas prejudiciais ao governo. Quando ficou claro que não haveria acordo, o coronel sumiu e o controle passou a ser exercido pela Polícia Federal, cujos prepostos atuavam de forma mais ríspida. Outra característica perversa das restrições estava no esforço dos censores de não permitir espaços em branco. Os cortes deveriam ser substituídos por outras matérias para não evidenciar os vetos. Assim, de última hora, com o jornal já diagramado. Isso foi um dos grandes motivos de fechamento de pequenos jornais que floresceram naquele momento sob a alcunha de Imprensa Alternativa. Esses periódicos, como Movimento e Opinião, pretendiam ser uma opção à grande imprensa. Acolhiam jornalistas que não encontravam mais espaço para atuar nos veículos maiores, tinham formato e inclinação diferentes, menos sujeitos à influência dos anunciantes. (A extinção desse modelo, aliás, foi um dos piores legados da censura. Merece ser recuperado num esforço conjunto da sociedade e dos profissionais da área.)

A proibição dos "espaços em branco" rendeu jogadas de gênio, como as de O Estado de S.Paulo e do Jornal da Tarde, com a publicação de poesias (seleção variada, depois Os Lusíadas) e de receitas culinárias.

Constatei uma diferença enorme entre o tipo de matéria mais vetado no Estadão e no Movimento, o que me fez concluir que tolos são aqueles que consideram os censores ignorantes. Sempre me pareceu que sabiam muito bem o que queriam e assim agiam no seu papel destrutivo. Num primeiro momento, o governo não tinha clareza sobre quem deveria recair o ofício de censor. E acaba encarregando membros das Forças Armadas. Com o passar do tempo, entretanto, a função é alocada à Polícia Federal, sem que existissem funcionários concursados para isso. O padre Aparecido Pereira, autor de uma tese sobre a censura ao jornal O São Paulo, da Arquidiocese Metropolitana de São Paulo, relata que os censores variavam e, por um bom tempo, quem assistia às reuniões do jornal era um estudante de medicina. No Rio, uma figura ativa nos diários cariocas era ninguém menos do que Alfredo, um dos craques da seleção de 1950 e, nas horas vagas... censor!

Algumas crises políticas ocorreram após a ditadura. Uma das últimas envolveu a poderosa família Sarney, revelando sua face (real?) ligada ao velho coronelismo. Sem dúvida, a função da imprensa é informar e a liberdade para isso é um dos pilares mais poderosos de qualquer democracia. Mas não na nossa democracia, incompleta e imperfeita. A decisão da Justiça de proibir o Estadão de veicular notícias sobre a operação da PF que atinge Fernando Sarney é um exemplo dessas distorções. A ordem judicial não surpreende e alimenta epítetos como "política é tudo a mesma coisa, não muda nada, não vale nada". Não se depender de nós. Se dermos o salto necessário da real inclusão - o que contém a diminuição drástica da desigualdade social - que faz com que o indivíduo participe da política como uma atividade que faz parte da vida de todos. Compete a nós dirigir os rumos do país na direção de uma democracia efetiva e completa.

*Maria Aparecida de Aquino Professora de História (USP) e autora de Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978)

Texto e imagem reproduzidas do site: aventurasnahistoria.uol.com.br