Publicado na Revista Carta Capital, em 30/09/2013.
A alegria da banca de revista.
Aos 80 anos, a jornaleira Caterina Abbatepietro dá
continuidade a uma tradição familiar de mais de um século.Por Miguel Martins
Primeiro, as laterais abertas dos bondes deram lugar aos
vidros levantados dos automóveis, afastando boa parte dos vendedores
ambulantes. Veio a televisão e roubou das bancas a posição de vitrine dos
acontecimentos diários. Agora, poucas teclas separam um leitor de qualquer
publicação do mundo. Nunca foi tão difícil vender jornais e revistas na rua.
Mas em uma banca abrigada em uma loja do supermercado Pão de
Açúcar na Avenida Santo Amaro, uma das mais movimentadas vias de São Paulo, uma
família resiste no ramo desde 1901. Quando o século XX mal começava, Luiz
Abbatepietro circulava entre os bondes de uma ainda residencial Avenida
Paulista a vender exemplares do Fanfulla, um dos primeiros jornais dedicados à
comunidade de imigrantes italianos no Brasil. Mais de um século depois,
Caterina, de 80 anos, dá continuidade à tradição jornaleira da família na
revistaria que leva o sobrenome de seu falecido marido, Antonio, neto de Luiz.
Embora criada na mesma rua dos Abbatepietro, na pequena
cidade de Conversano, no sul da Itália, Caterina só conheceu Antonio quando
desembarcou no Brasil, em 1952. Com ele aprendeu o funcionamento da
distribuição de periódicos e abriu a banca. Após a morte do marido, em 1981,
assumiu o negócio com os filhos Fernando, Francisco e Fontina. Jornaleira
orgulhosa, ela não esmorece ao lembrar que vendia até cem jornais por dia há
duas décadas. Hoje são, no máximo, dez exemplares da Folha de S.Paulo e dez de
O Estado de S. Paulo. A venda de revistas caiu de 150 para 40 por semana.
Para sua sorte, um jornaleiro não depende apenas do comércio
de periódicos. Assim como o padeiro, seu ganha-pão não é exatamente o pão, mas
tudo que está ao redor. No caso, quadrinhos e romances gráficos, álbuns e
envelopes de figurinhas, chocolates e chicletes, livros religiosos e de autoajuda. E, claro,
as publicações responsáveis pela clientela mais assídua da banca. “Alguns vêm
todo santo dia comprar palavras cruzadas. Quando você se aposenta, precisa
fazer algo para colocar o cérebro em prática.”
Aposentadoria não está, por sinal, nos planos da jornaleira.
Seus tempos de tricô ficaram para trás. Até os 40 anos, entrelaçar fios e
cuidar da família eram suas principais ocupações. O marido, à moda antiga, não
considerava o ambiente de trabalho lugar apropriado para as mulheres. “Sempre
que eu queria acompanhá-lo até a banca, ele me perguntava: ‘Lhe falta alguma
coisa?’”
Antonio, a exemplo do avô e do pai Francisco, trabalhou
desde jovem com publicações. Em 1961, deixou a gerência da distribuidora de
revistas Intelectual e montou sua primeira banca no supermercado Peg-Pag, na Rua
Joaquim Floriano. Após firmar um contrato de exclusividade com a rede, ele
chegou a administrar com o apoio dos irmãos João e José 13 revistarias em
diferentes filiais. Com a compra do grupo pelo Pão de Açúcar, em 1978, a
família manteve os pontos, mas foi obrigada a reduzir o número de lojas por
problemas econômicos. Hoje resta apenas a da Avenida Santo Amaro.
Em seus primeiros anos, a Abbatepietro original estampou na
entrada jornais com manchetes sobre o domínio do Vale do Paraíba pelo 2º
Exército e as barricadas de Carlos Lacerda em frente ao Palácio da Guanabara.
Caterina não costumava frequentar a banca à época. Foi seu marido quem lhe
trouxe as notícias do golpe de 31 de março de 1964. “Ele falava: ‘Está
acontecendo algo muito triste, vamos ver no que vai dar’. Achamos que não seria
tão forte, mas depois vieram notícias ruins.” Os negócios beneficiaram-se,
porém, do clima. “Como não havia tanta televisão, estava todo mundo alvoraçado
na banca. Vendemos muitos jornais e revistas.”
Caterina também recorda quando, no início dos anos 1980,
algumas bancas tornaram-se alvo da repressão por vender publicações da chamada
imprensa alternativa, contrária à ditadura. Blindada em um supermercado e fora
da lista negra dos militares, a Abbatepietro escapou ilesa. “Vários colegas
sofreram esse tipo de ataque. Algumas bancas foram muito danificadas.”
Se nos anos de censura a demanda por publicações impressas
superava a oferta oficial, a chegada da tecnologia digital inverteu essa
relação. Em tempos de internet, o encalhe dos periódicos aumenta e as editoras
de revistas cancelam títulos. Caterina embriaga-se de nostalgia ao se lembrar
das revistas O Cruzeiro, suspensa em 1975, e Manchete, em 2000. “Eu tinha
pôsteres de capas de O Cruzeiro como a do papa João Paulo I e da rainha
Elizabeth com Pelé. Eram grandes revistas, marcaram época.”
Apesar da crise do impresso, Caterina não maldiz a
tecnologia responsável pelas vendas tímidas de hoje.
“Lógico, atrapalha o
negócio, mas você vê o outro lado do mundo. Falei com a minha neta enquanto ela
pegava o metrô em Londres. E foi de graça.” Ela conforma-se com os caminhos
trilhados pela nova geração. “Um dos meus netos cursa informática, nem quer
saber da banca”, diz, para ser interrompida por Fontina. “E vai ter revista no
futuro, mãe? Nem vai ter mais.” Caterina apenas sorri.
Foto e texto reproduzidos do site: cartacapital.com.br/revista/768
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