Publicado originalmente na Revista Cult 188, de março/2014.
Respeitosamente vândala
Por Eduardo Nunomura
“Inocente, pura e besta”. É assim que a ensaísta e
professora Ivana Bentes diz ter chegado ao Rio de Janeiro, em 1980, família de
comerciantes, sem sobrenome para ostentar, nascida em Parintins, no Amazonas, e
tendo passado a juventude em Rio Branco, no Acre. Foi a entrada em uma
universidade pública, a Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, que mudou sua trajetória.
Segundo ela, frequentar um espaço que ainda forma uma elite
não foi uma inclusão, mas uma intrusão social, daquelas que fazem uma pessoa
dar um salto astronômico. Foi naquele ambiente universitário borbulhante de
oportunidades e desafios que Ivana foi traçando sua carreira profissional.
Primeiro como redatora e ensaísta no Caderno Ideias, do Jornal do Brasil, onde
teve a oportunidade de se conectar com centenas de escritores, intelectuais e
pensadores. E antes escrevendo sobre cinema na revista TABU,do Grupo Estação
Botafogo, o icônico cinema carioca, que deu a ela a chance de se formar
cinematográfica e culturalmente e mais tarde protagonizar polêmicas como a que
lançou em torno do filme Cidade de Deus e sua “cosmética da fome”. No Jornal do
Brasil, entendeu o jogo de influência cultural, política e de intervenção no
mercado da mídia e suas engrenagens.
No início dos anos 1990, engatou um mestrado e um doutorado
na ECO, mas foi com a formação em grupos de estudo de filosofia, onde mergulhou
no pensamento de Gilles Deleuze, Michel Foucault e mais recentemente Antonio
Negri, que pôde perceber o poder de mobilização dos conceitos. Na ECO, onde
entrou como aluna, se tornou professora da pós-graduação e diretora, tendo como
professores e depois colegas Muniz Sodré, Márcio Tavares d’Amaral, Emanoel
Carneiro Leão, Heloísa Buarque de Hollanda. Percebeu rapidamente que a
Universidade só faria diferença se fosse o ambiente para o surgimento de
formadores de opinião, críticos, pensadores e agentes de transformação e não formar
o profissional fordista substituível das redações. Entre 2006 e 2013, ela
assumiu a direção da ECO decidida a usar o grande laboratório universitário
para radicalizar práticas democráticas, estimulando os alunos a participarem de
ações de ativismo, movimentos culturais e sociais da cidade, redes de mídia e
cultura.
Nesta entrevista, Ivana Bentes discute as novas diretrizes
para os cursos de jornalismo, política e comunicação, o midialivrismo, a
sociedade em rede e as mutações pós-mídiasdigitais. Para ela, se o capitalismo
é comunicacional, a revolução terá que ser também midiática. Ciente da
importância do campo das Comunicações nos dias de hoje, para muito além dos
bancos universitários, a professora afirma que há momentos em que é preciso
sair do figurino acadêmico para poder se comunicar e falar para o público fora
da academia. Talvez por isso a jovem “inocente, pura e besta” topou posar para
a foto dessa reportagem numa pose que ela chama de “respeitosamente vândala”.
Qual a sua avaliação sobre os parâmetros curriculares
recém-instituídos pelo Conselho Nacional de Educação para os cursos de
jornalismo?
Um retrocesso e uma quase tragédia. Surge na contramão do
entendimento de pensadores e teóricos da comunicação que fizeram o movimento
opostodécadas atrás, procurando incluir o jornalismo como parte de uma formação
mais ampla.Foge ao contexto atual de convergência das mídias e de produção da
informação nas redes sociais que exige um profissional com múltiplas
habilidades, um analista simbólico, um ensaísta, um ativador e produtor de
desejos. Esse perfil não tem nada a ver com o profissional adestrado por uma
formação fordista e extremamente limitada, do “quê, quem, como, onde”, e que
passa longe de todos os clichês que construímos em torno desse personagem.
As novas diretrizes respondem a uma crise de mediação. Mas o
jornalista não é mais o mediador privilegiado, o “gatekeeper”, o guardião do
que é ou não é notícia, do que é ou não noticiável. As corporações de mídia e o
jornalismo nunca foram tão questionados e buscam manter de pé uma mística da
excepcionalidade da atividade jornalística. Com ou sem formação especializada,
a mídia somos nós. O que não acaba com a necessidade de formação, mas a estende
para toda a sociedade. Ojornalismo é importante demais para ficar na mão de
corporações, cartórios e especialistas.
A sra. começou afirmando que vê um retrocesso e uma quase
tragédia…
É uma quase tragédia porque acredito que o paradigma das
redes, do midialivrismo, do jornalismo-cidadão, a comunicação pós-mídias
digitais, os estudantes, professores, ativistas e teóricos que lutam por uma
formação desengessada, todos eles vão canibalizar as diretrizes (do CNE) e
subvertê-las. Pode ter retrocesso, mas não tem volta. As novas diretrizes são
fruto de uma disputa por poder de um grupo de professores e especialistas a
quemchamo de “as viúvas de Gutemberg”, extremamente corporativos e que
funcionam no campo da Comunicação como a “vanguarda da retaguarda”, para sermos
gentis. O que está em curso é a tentativa de manter uma excepcionalidade para a
atividade jornalística e também uma manobra para a volta da exigência do
diploma de jornalista para exercer a profissão, que foi derrubado em 2009 e até
agora não fez a menor falta.
A sra.é contra o diploma de jornalista?
Sempre fui contra. O fim da obrigatoriedade não acabou com
os cursos de Comunicação, nem diminuiu a busca pela habilitação em Jornalismo,
campos que nunca foram tão valorizados. Os jornais sempre burlaram a exigência
de diploma pagando muitas vezes os maiores salários aos não-jornalistas,
cronistas, articulistas, vindos de diferentes campos. As universidades não
precisam formar os “peões” diplomados, mas jovens capazes de exercer sua
autonomia, liberdade e singularidade, dentro e fora das corporações. Não precisamos
de profissionais “para o mercado”, mas capazes de “criar” novos mercados,
jornalismo público, pós-corporações, produção colaborativa em rede.
O mais importante nenhuma entidade corporativa defendeu nem
pensou: uma seguridade nova para os freelancers, os precários, aqueles que não
têm e nunca terão carteira assinada. Essas são as novas lutas no
capitalismo.Aideia de que para ter direitos é preciso se “assujeitar” a uma
relação de patrão-empregado, de “assalariamento”, é francamente conservadora.
Sem a obrigatoriedade do diploma, qual o sentido de um jovem
ingressar em uma faculdade de Comunicação?
O capitalismo, as revoluções dentro do capitalismo e as
ações anti-capitalistas, a publicidade, a economia imaterial, tudo isso depende
desse domínio midiático e da posse dessas linguagens. O capital já entendeu
isso faz tempo. E se quisermos pensar jornalismo público, jornalismo do comum,
a produção de um midiativismo capaz de ativar os desejos por mudanças sociais,
tudo isso passa por um outro tipo de formação. A comunicação é central na
sociedade de redes. Se o capitalismo é comunicacional, a revolução terá que ser
também midiática. É um campo fascinante, que não para de mobilizar os jovens.
Há duas décadas, a sra. iniciou sua vida acadêmica. Já
formoucentenas de jornalistas que estão no mercado. Eles estão cumprindo seu
papel social?
A Escola de Comunicação da UFRJ formou e forma desde a
Fátima Bernardes, que até pouco tempo atrás dividia a bancada do Jornal
Nacional com William Bonner, até o Rafucko, que acabou de lançar um vídeo com
mais de 800 mil visualizações. Esse vídeo desconstruía, criticava e escrachava
um editorial da Globo sobre as manifestações e a liberdade de expressão.
Formamos a elite que reproduz o poder e os que lutam por mudanças radicais e se
arriscam e inovam. Essa disputa é feita dentro da universidade.Somos criticados
por formarmos editorialistas, jornalistas que colocam sua inteligência a
serviço do capital ou nos entretendo com perfumaria. E, ao mesmo tempo, um blog
da Veja, me acusou de ser uma “blackblocteacher”, de formadora de blackblocs e
ativistas radicais, em um texto ressentido e equivocado, mas que não deixa de
ser um elogio.
Quais são as implicações do surgimento da chamada nova
classe média do ponto de vista comunicacional?
As periferias são laboratórios de mundos e a riqueza do
Brasil. Não mais os pobres assujeitados e excluídos de certo imaginário e
discurso, mas uma ciberperiferia, a riqueza da pobreza (disputada pela Nike,
pela Globo, pelo Estado) que transforma as favelas, quilombos urbanos
conectados, em laboratórios de produção subjetiva. A carne negra das favelas,
os corpos potentes e desejantes, a cooperação sem mando, inventando espaços e
tempos outros (na rua, nos bailes, lanhouses e lajes), estão sujeitos a todos os
tipos de apropriação.É que as favelas e periferias são o maior capital nas
bolsas de valores simbólicas do país, pois converteram as forças hostis máximas
(pobreza, violência, Estado de exceção) em processo de criação e invenção
cultural.Além disso, o midialivrismo ganha força na periferias, em projetos
como a ESPOCC, Escola Popular de Comunicação Crítica da Maré, Viva Favela,
Agência Redes Para a Juventude, que formam comunicadores populares e
midiativistas.
Isso tudo é muito novo no Brasil.
O Rio de Janeiro serve de exemplo. É um termômetro da
difícil e paradoxal tarefa de calibrar essa euforia pós-Lula, do presidente
Macunaíma que turbinou a periferia, e os retrocessos no governo Dilma, que
trouxe os “gestores de subjetividade”, que revertem e monetizam a potência das
favelas e periferias para o turismo, corporações, bancos e para o consumo.O que
vemos na publicidade das UPPs, da Copa do Mundo e dos shoppings é o que chamo
de inclusão visual dos jovens negros ou da cultura da periferia. Mas os mesmos
jovens são mortos pela polícia como elementos “suspeitos” nas favelas ou
impedidos de entrar nos shoppings para dar um rolezinho.
A ascensão social de jovens das periferias tem deixado parte
da sociedade em transe. Eles estão no centro da profunda transformação social…
Aí vem a reação da Casa Grande, e a mídia em geral amplifica
esse discurso, colocando travas e controle na mobilidade urbana e no direito de
ir e vir da juventude popular. A juventude negra e periférica vira uma “classe
ameaçadora”, que não é bem-vinda nos espaços de consumo da classe média branca.
Ao estado de exceção e à violência contra os pobres se acrescenta uma polícia
que reprime o funk e osrolezinhos. Essa incapacidade de entender as novas
formas de sociabilidade e mobilidade dos jovens traz à cena o velho horror das
classes populares e o apartheid racial, social e cultural.A ascensão social
expôs a crise das cidades, a privatização dos espaços públicos e o
desinvestimento nos equipamentos de lazer. O esquema de segurança dos
shoppings, revistando e controlando os pobres, é a ostentação do fracasso do
Estado e da sociedade na partilha da cidade.
As maiores publicações do país, como Veja, Folha de S.Paulo,
Estado de S. Paulo, TV Globo, vieram a público explicitar seus critérios
editoriais. Trata-se de uma resposta às inúmeras críticas que a imprensa vem
recebendo da população?
A mídia no Brasil parece querer substituir o Estado de
direito, se vê como braço do Estado, podendo, inclusive, colocá-lo em crisea
qualquer momento. Negocia denúncias, pessimismo e otimismo, reputações.Mal
disfarça a editorialização dos fatos. Mas o mais preocupante é quando infundem
o medo das ruas, da política, dos pobres, da juventude, da “esquerda”.
Interferem e direcionam fatos e investigações, produzem histeria coletiva e
ódio a grupos e movimentos sociais inteiros. Ao mesmo tempo são espaços de
controvérsias e disputas necessárias e estratégicas, por isso repito sempre,
critica a mídia? Odeia a mídia? Torne-se mídia!
A morte do cinegrafista Santiago Andrade e a posterior
perseguição de parte da imprensa aos blackblocs são um sintoma de um discurso
midiático perdido ou, ao contrário, posicionado estrategicamente?
Já vimos essa historia da construção de inimigos: os
comunistas, os subversivos, maconheiros e agora os blackblocs, a ameaça que vai
destruir a democracia, a Copa, a moral e os bons costumes. É redutor demais.
Vidas são demolidas nesse jogo de demonização, como vimos na repressão brutal
da polícia aos manifestantes, nas prisões arbitrárias e mortes, nas capas sensacionalistas
da Veja e primeiras páginas e editoriais de jornais e televisões.O nível de
manipulação dos fatos foi grosseiro depois da morte do cinegrafista da TV
Bandeirantes. A lei que tipifica terrorismo, que querem votar a toque de caixa,
e a pauta do medo buscam esvaziar e mudar foco das justas reivindicações para o
comportamento dos manifestantes. E a mídia vem legitimando a desproporcional
repressão policial, pouco questionada nos noticiários corporativos.Temos uma
polarização das ruas contra a associação Mídia-Estado-Polícia, um confronto que
produz avanços e retrocessos.
A Mídia Ninja, que podemos chamar de filha pródiga do
movimento Fora do Eixo, nasceu e ganhou muita evidência durante as
manifestações de junho de 2013. A sra. vê a Mídia Ninja e suas derivações como
o futuro da comunicação?
Um dos efeitos dos protestos de 2013 no Brasil foi a
explosão das ações midiativistas. A Mídia Ninja fez essa disputa de forma
admirável, amplificando a potência da multidão nas ruas. Ela passou a pautar a
mídia corporativa e os telejornais ao filmar e obter as imagens do
enfrentamento dos manifestantes com a polícia, a brutalidade e o regime de
exceção. O papel dos midialivristas e dos coletivos e redes de mídias autônomas
não pode ser reduzido ao campo do jornalismo, mas aponta para um novo fenômeno
de participação social e de midiativismo (que usa diferentes linguagens,
escrachos, vídeos, memes, para mobilizar). A cobertura colaborativa obtém picos
demilhares de pessoas online, algo inédito para uma mídia independente. Nesse
sentindo a comunicação é a própria forma de mobilização.
E o Fora do Eixo?
O Fora do Eixo é um laboratório de experiências culturais e
de invenção de tecnologias sociais radicais, que conseguiu transformar
precariedade em autonomia. Ele inventou uma forma de viver coletiva e restituir
o tempo que o capital nos rouba de uma forma que me toca e mobiliza. As causas
políticas que defendem são as minhas e as de muitos: mídia livre, governança,
democracia direta, combate a desigualdade e aos preconceitos, defesa da vida,
potencialização da autonomia, da liberdade, economia colaborativa, invenção de
mundos.
O Fora do Eixo possibilita que jovens dispensem empregos
“escravos” ou precários na mídia tradicional, em produtoras comerciais,
agências de publicidade, ou qualquer emprego fordista, e passem a inventar a
sua própria ocupação. Conheço o Fora do Eixo desde 2011. Na prática,são uma
rede de mais de mil jovens que revertem seu tempo e vida para um projeto comum
com um caixa coletivo único que paga comida, roupa e casa coletiva, sem salário
individual e um projeto comum. Eles não têm medo de dialogar com os poderes
instituídos, ao contrário de um certo discurso midiático que procura criar um
grande horror à política, que só afasta os jovens e muitos de nós das disputas.
E isso tem muito a ver com as suas pesquisas não se
intimidam em enxergar novos dispositivos, conceitos e instrumentais, redes
sociais. Qual é a resposta que a sra.procura?
Antes de tudo, viver e lutar por uma vida não fascista,no
sentido colocado por Michel Foucault, de lutar contra o “fascismo que nos faz
amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”. Quero
experimentar uma vida menos “normopata”, uma erótica do contato que restitua o
prazer de vivermos juntos.Sou fascinada pelos dispositivos e a forma como
coevoluímos com eles, reinventando o social, produzindo novos prazeres e angústias,
sem deixar de perceber como também expropriam o nosso tempo, nossa libido,
nossa energia e nos colocam para trabalhar num novo regime de exploração da
vida, brutal.
Tudo isso está provocando uma mutação antropológica.
Acompanho e vivo de dentro esses atravessamentos.Recuso transformar os
conceitos em juízes das experiências, o intelectual “justiceiro” que se vê ao
largo, acima, distante dos fenômenos que analisa e estuda. Não tenho mais
objetos de estudo, mas parceiros que me estimulam. Fiz a passagem para o que
chamo deteoriativismo ou o tédio da erudição. No que faço está implicado todo o
meu corpo e a minha vida. Como diria Nietzsche, ignoro o que sejam problemas
puramente intelectuais.
Não lhe preocupa a difusão generalizada de manifestações rancorosas,
preconceituosas, de baixíssima qualidade nas redes sociais?
As redes sociais têm tudo o que a sociedade tem: discursos
de ódio, racismo, preconceito, desinformação, mas trazem a possibilidade veloz
e massiva de combate e de embate. Não vejo os jornais e a mídia
supereditorializada como “mais qualificada”. Ao contrário, um erro, uma
distorção de análise, a manipulação de fatos, o sensacionalismo são
questionados nas redes e não nas redações… Se esse novo ambiente produz
venenos, ele cria com a mesma velocidade os anticorpos.
Há pouco, a sra. tangenciou o tema da Copa do Mundo no
Brasil. Qual a sua opinião sobre esse tema? #NãoVaiTerCopa é algo a ser
defendido?
O #NãoVaiTerCopadeixa irada a direita, a esquerda clássica e
o governo ao seu simples enunciado. Eles e a mídia corporativa vão errar de
novo, como erraram feio no inicio das manifestações em junho de 2013, com a
histeria repressora e condenatória. O #NãoVaiTerCopaalarga o campo da
democracia ao explicitar o dissenso, ao arriscar pensar diante de um fato
consumado e de um processo que colocou os interesses empresariais, lobbystas e
midiáticos acima dos direitos básicos. Vai ter Copa sim, mas não vai ter a Copa
sonhada pela polícia de ordenamento e pelo ufanismo e desenvolvimentismo
ultrapassado.
Os “idiotas da objetividade”, como dizia Nelson Rodrigues,
são os que não conseguem ver que pós-junho de 2013 o Brasil provou que não
existe incompatibilidade entre torcer pelo Brasil no futebol e fazer política.
Ou seja,Vai Ter Copa e Não Vai Ter Copa. Particularmente vou torcer e
participar para que ocorram manifestações e vou torcer pelo Brasil em campo.
Essa é uma das formas de consolidar e aprofundar a jovem e provocativa
democracia brasileira.
Tivemos um beijo gay numa novela global, casamento entre
homossexuais é defendido abertamente por jornais, novas formações familiares
passaram a ser aceitas. Já podemos comemorar ou ainda falta muito para termos
uma sociedade mais tolerante?
O beijo gay na novela global faz parte das expressões da
luta por direitos e narrativas afetivas novas. Em terra de Marco Feliciano, o
beijo gay é político, é “fashion”, mas ainda estamos muito aquém de uma cultura
não homofóbica, não racista, menos patriarcal e machista, ou que aceite a
autonomia e liberdade das mulheres.O gay família, a lésbica fashion, o traveco
amigo, os homens, as mulheres, os jovens, só têm um destino: o amor romântico
em casal. Tabu é ter um relacionamento livre e autônomo.Está faltando um Nelson
Rodrigues, mas um Lars von Trier também serviria, para fazer a narrativa dos
novos tempos e nos atualizar de nós mesmos.
A sra. citou a necessidade de uma sociedade menos patriarcal
e machista. A mulher continua tendo muito mais obrigações do que direitos.
Os homens continuam em pânico com a autonomia das mulheres.
Um dia sexo vai ser considerado modalidade esportiva e prostituição (masculina
e feminina), serviço e profissão de utilidade pública. Essa era uma das causas
da Gabriela Leite, mulher e ativista admirável que criou a ONGDavida e a grife
Daspu e morreu aos 62 anos. Moça de classe média que escolheu ser puta.O
deputado Jean Wyllys apresentou no Congresso o projeto dela, que regulamenta a
atividade dos profissionais do sexo. Uma causa que vale uma vida. E além dos
evangélicos e cristãos ainda tem feminista que é contra regulamentar a
profissão.
Tomo esse exemplo para dizer que as lutas das mulheres
passam por aceitar essas diferenças. Admiro as meninas do funk que
ressignificaram o feminismo nas favelas, ao fazerem a crônica sexual a quente
da periferia de forma explícita, como Tati Quebra Barraco, que considero uma
Leila Diniz dos novos tempos. Há os que pensam que ao se colocarem como
protagonistas da cena sexual, as meninas do funk só ocupam o lugar de poder dos
homens. Na verdade, é um discurso radical de autonomia e de liberdade que,
vindo das mulheres, subvertendo o sentido de “cachorras” e “popozudas”, coloca
o preconceito e o machismo de ponta cabeça. Vivemos um tempo difícil, mas
apaixonante.
A educação no Brasil melhorou ou piorou durante a administração
petista?
Melhorou e muito. Não tem comparação os investimentos que
foram feitos na educação pública e nas universidades públicas no governo do
PSDB e na administração do PT. Fiz concurso público e comecei a dar aulas na
UFRJ no governo de FHC e foram 8 anos de sucateamento com as universidades à
míngua. O governo Lula reinvestiu nasuniversidades públicas criando 14 novas
universidades federais e 100 campi pelo interior do país e também investiu
fortemente nas Escolas Técnicas e Institutos Federais. O programa do Reuni de
reestruturação do espaço físico, expansão das vagas e criação de novos cursos
foi vital para as universidades federais. Só a Escola de Comunicação ampliou em
mais de 30 o número de professores por concurso público, ampliou vagas, contratou-se
técnicos etc. Claro que existem problemas nessa expansão, mas foi decisiva e
mudou o cenário radicalmente.
Outras duas ações decisivas foram o Prouni (que abriu 700
mil vagas para jovens nas universidades particulares) e as cotas raciais e
sociais, que trouxeram novos sujeitos sociais, vindos das camadas populares,
para dentro da universidade. Ao contrário dos que temiam os defensores de uma
abstrata “meritocracia”, que o nível de ensino iria “cair”, que iria se
“nivelar por baixo” para atender aos pobres, os cotistas surpreenderam e o que
estamos vendo é o contrário. Adisputa na produção do conhecimento feita por
novos sujeitos políticos. Poderia ainda falar do Enem que articulou a entrada
unificada para a rede de universidades públicas. Hoje recebemos na ECO
estudantes de todo o Brasil.
Sobre o ensino básico e fundamental acompanhei alguns
debates e desafios enormes que precisam ser enfrentados, entre eles o fato da
escola fordista e disciplinar, a “creche da tia Teteca”, o ensino sem corpo,
sem desejo, sem participação dos estudantes ter se tornado obsoleto e ineficaz.
O desafio de diminuir drasticamente o analfabetismo no país passa não só por
mais investimento na carreira e salário dos professores, mas por uma mudança de
mentalidade, não dá mais pra insistir no modelo da decoreba e do “vovô viu a
uva” num contexto de ampliação de repertórios e de universalização da cultura
digital, em que oralistas dominam, sem passar pelo letramento, a cultura
audiovisual e digital.
A sra. votou em Dilma Rousseff? Qual a sua avaliação do
primeiro governo dela?
Votei na presidenta Dilma esperando uma radicalização e
aprofundamento das políticas iniciadas no governo Lula, mas o círculo virtuoso
se rompeu em diferentes pontos. Tivemos retrocessos absurdos nas políticas
culturais, enfraquecimento do Programa Cultura Viva, que deu protagonismo à
produção dos Pontos de Cultura, vinda das bordas e periferias, retrocesso no
diálogo com os movimentos sociais e culturais. O Brasil que estava na vanguarda
de alguns processos, com a estabilidade econômica e emergência de novos
sujeitos sociais e políticos pós-redistribuição de renda, apresenta uma
reconfiguração do campo conservador, minando todo um capital simbólico e real
construído.
Estou falando de projetos engavetados como a Reforma da Lei
dos Direitos Autorais, os retrocessos no Marco Civil para a Internet, a Lei
Geral das Comunicações, obsoleta e concentracionista, que continua intocável, o
plano de barateamento e universalização da Banda Larga pífio, o retrocesso no
Código Florestal, a inexistência de propostas para a legalização do aborto e
legalização das drogas.
O projeto nacional-desenvolvimentista, fordista, da
presidenta Dilma, que investe em automóvel, hidrelétrica, petróleo, passando
por cima da maior riqueza brasileira, que é seu capital cultural, ferindo
direitos, destruindo o meio-ambiente, é insustentável. O maior paradoxo do
desenvolvimentismo é querer transformar a cosmovisão indígena, a produção da
periferia, em “commodities”, faturar a riqueza cultural, vender as favelas e
sua cultura como pitoresco, os indígenas como exóticos, a carne negra como
produto desejável e fashion, mas deixar isolados e sem autonomia esses mesmos
sujeitos políticos, destituídos dos seus direitos, assujeitados, ou tornados
corpos dóceis.
Nesse momento, continuo filiada ao PT, partido para onde
entrei em 2011, no auge da crise do Ministério da Cultura, com a nomeação
catastrófica da ministra Ana de Hollanda. Entrei para criticar e disputar de
dentro avanços nas políticas públicas e para discutir as novas relações de
poder nas cidades, a emergência do trabalho informal e do precariado em
diferentes campos, a produção social que é a nova força de transformação dentro
do próprio capitalismo e para pensar a cidade e a sociedade que queremos.
O governo Dilma é sustentado hoje por uma coalizão
conservadora. Então oscilo entre o hiperativismo pessimista (não vai avançar,
mas vamos tensionar ao máximo) e o otimismo crítico, que vai guinar para
esquerda, sob a pressão das ruas.
É com angústia que vejo o PT, partido com a maior base
social do Brasil, abandonar pautas e avanços históricos. Por isso, estou no PT
criticando de dentro, mas, ao mesmo tempo, faço parte do conselho do mandato do
deputado Jean Wyllys, parlamentar extraordinário. E votei em Marcelo Freixo,
ambos do PSOL. Acredito cada vez mais em frentes suprapartidárias em torno das
pautas e questões que nos interessam e na transformação dos partidos e do
Estado em redes de colaboração e num Estado-Rede, co-gerido pela sociedade.
Vejo a democracia direta e participativa como horizonte da
política, mas enquanto isso, luto para que o atual sistema partidário,
inclusive o governo Dilma, incorpore as pautas e questões urgentes que
emergiram nas ruas. Temos que sair do infantilismo político e purista que é o
compromisso atávico com o inviável, pois a governança e a democracia direta vão
brotar da remediação e ruptura com o atual sistema partidário. Votando ou não
votando no PT, as ruas são ingovernáveis e temos que lutar contra a
financeirização da vida.
Foto e texto reproduzidos do site: revistacult.uol.com.br/home/2014/03/respeitosamente-vandala
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