terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Entrevista com o jornalista Jon Lee Anderson


Publicado originalmente no site SESCSP, em 31/10/2018

Jon Lee Anderson

Escritor e jornalista da revista The New Yorker, Jon Lee Anderson foi correspondente de guerra no Oriente Médio, na África e na América Latina, zonas de conflito que ficaram impressas em publicações e na memória do repórter. “Não é como ir e voltar sem nenhum dano. Como os bombeiros: eles acabam sofrendo alguma queimadura, entende? Se você é um policial num bairro violento, mais cedo ou mais tarde, pode levar um tiro ou atirar em alguém. É assim que as coisas são”, desabafa. Cidadão do mundo, o norte-americano nascido na Califórnia também trabalhou em outros jornais e revistas, como The Nation, Harper’s Magazine e Life. Como escritor, publicou Che – Uma Biografia (Objetiva), A Queda de Bagdá (Objetiva), entre outros livros sobre controversos protagonistas da história. Em São Paulo, o repórter compartilhou todas essas experiências no seminário Jornalismo – As Novas Configurações do Quarto Poder, realizado em parceria com a revista Cult, no Sesc Vila Mariana, em agosto. Também falou sobre a metodologia para entrevistar nomes como o ditador Augusto Pinochet e o escritor Gabriel García Márquez, além de compartilhar perspectivas acerca do futuro do jornalismo. “Vivemos num momento em que a mídia tem mais poder do que em outras épocas. Você vê isso pela forma como ela é atacada hoje, mais do que nunca. No entanto, economicamente, a mídia passa por uma situação muito mais insustentável que antes”, pondera.

Você escreveu sobre Fidel Castro, Che Guevara, entre outros importantes nomes da história, mas foram poucas as mulheres. Como se dá essa escolha?

É verdade, escrevi sobre poucas mulheres. O fato é que a maioria das pessoas sobre as quais fiz um perfil eram pessoas com poder político e, por essa razão, a maioria era de homens. Além de serem homens associados à guerra ou à violência. Mas fiz um perfil, em 2006, sobre a então presidente da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf [a primeira presidente desse país e do continente africano]. O que me motiva a fazer um perfil é o interesse sobre certos tipos de pessoas. De uma forma ou de outra, elas fazem o mundo girar, não necessariamente para melhor. Sempre me interessei pelo poder político porque passei a acreditar na capacidade de um indivíduo mudar a história. Sei que há outras escolas com opiniões diferentes, que acreditam que as forças do mercado é que mudam a história. Eu diria: existe a era Obama e a era Trump. Não perfilei todas as pessoas que chamaram a minha atenção, mas escrevi sobre muitas. Tenho também muito interesse em como a violência pode ser uma arma política e como ela busca estabelecer a “legitimidade” de um governo em vez de torná-lo ilegítimo. Como você reivindica legitimidade se busca o poder com armas e sangue? Em que momento esse derramamento de sangue passa a ser visto como um problema? Há muitos governos supostamente legítimos que mantêm poder por meios ilegítimos como corrupção e violência de vários tipos. Acho que quando estou escrevendo o perfil de figuras políticas, busco a autenticidade da pessoa, mas também aquele ponto em que eu possa julgá-la. E, normalmente, julgo-as em pontos relacionados à humanidade delas.

Mas e quando seu perfilado é um escritor, a exemplo de Gabriel García Márquez?

Gabriel García Márquez foi uma exceção. Ele não era presidente, chefe de estado ou algo do tipo. O que me motivou a abordá-lo foi sua fascinação pelo poder. Esse foi o mote da narrativa que escolhi para escrever sobre ele. O poder o fascinava e tinha um papel na sua vida pessoal, como jornalista e como escritor, por sua longa relação com Fidel Castro e por mediar, nos bastidores, guerrilhas em seu país (Colômbia). Nos bastidores também fez mediações entre Cuba e Bill Clinton. Ele tinha um papel interessante e, provavelmente, foi o perfil que mais gostei de fazer. Passei sete meses me encontrando com ele. Conheci sua família, amigos, lugares onde ele viveu e cresceu. Conversei com pessoas que o conheciam e passei a gostar muito dele. De alguma forma, era mais um perfil como tantos outros que já havia feito. Há coisas no texto das quais ele não gostou, mas, em vários aspectos, esse foi o perfil menos crítico que já fiz.

O Brasil é muito mais do que um país.
É um mundo à parte

Como define a abordagem para escrever cada perfil?

No caso do García Márquez, já havia lido muitos dos seus livros, outros reli. Entrevistei não somente ele, mas amigos e família. Fui à cidade natal e visitei outras residências; conversei com pessoas de diferentes países, amigas ou não. Nos perfis que escrevo para a revista The New Yorker, entrevisto, em média, 40 pessoas, mas não cito todas elas. Normalmente, cito apenas seis desse total. E são poucas aquelas que vou descrever. É como construir uma galáxia em volta de uma estrela. Você tem um universo já conhecido e outro desconhecido, por isso precisa saber quais são esses limites e qual é o seu objetivo. Parece bastante com o processo de criação de uma biografia. Nos perfis mais densos que já fiz, senti que, se continuasse, poderia escrever um livro. Foi assim com García Márquez, entre outros. Trata-se de, essencialmente, compreender o perfilado. Normalmente, eu o abordo sob uma perspectiva tendenciosa, mesmo que eu seja crítico. Tento achar tudo que posso a seu respeito. E, normalmente, tento encontrar uma coisa em especial da vida pessoal do perfilado. Não me refiro a detalhes íntimos, mas algo na vida dele que esteja à margem da política e pelo qual ele também é conhecido. Algo que possa me guiar.

Que metodologia utiliza nesse processo?

Minha metodologia é a seguinte: abordagem, diplomacia, acesso, entrevistas. Mas você nunca pode escrever um perfil baseado apenas em entrevistas. O entrevistado pode ficar no controle. Por isso, para fazer um perfil você precisa construir até quatro dimensões. Não apenas conversar com a pessoa que está do outro lado da mesa, mas andar em volta dela, observá-la de costas, de lado. Você precisa sair das quatro paredes e ver como a sociedade olha para aquela pessoa. A ideia é poder viajar com o entrevistado para ver como se move na própria cidade ou em outros países; ver como reage com as pessoas e como reagem a ele. Aí, sim, pode-se ver o verdadeiro poder que exercem. Se for apenas para um perfil, você pode parar em um determinado momento. Todos têm uma vida pública, uma vida privada e uma vida secreta. Talvez você não consiga saber qual é a vida secreta daquela pessoa e talvez você não precise saber. Depende de sobre quem você está escrevendo. Se for alguém que tem muitos segredos, e não é uma boa pessoa, então você precisa saber o máximo de segredos que puder. Mas, por exemplo, quando eu estava com Gabo, não precisava saber da vida secreta dele. Não era ético compartilhar esse lado porque ele estava sendo generoso comigo ao se mostrar em outros aspectos. Eu aprendi algo, sempre aprendemos algo, mas não necessariamente incluo tudo [no perfil]. Até chegar a um ponto em que começo a escrever. No caso do García Márquez, levei sete meses. Mas, normalmente, são um ou dois meses apurando, três ou quatro semanas escrevendo e este mesmo tempo editando. Se fizesse somente perfis, seriam três por ano. 

Repórteres de guerra, os poucos que existem,
desejam não ter visto muitas das coisas que veem

Você foi um dos poucos jornalistas a entrevistar o ditador Augusto Pinochet. Como foi esse episódio?

Foi um perfil difícil de fazer porque, primeiramente, ele desprezava jornalistas. Mas, por vários fatores, consegui, de maneira diplomática, que ele me conhecesse. Na primeira entrevista, tinha consciência de que tudo poderia cair por terra. Ele veio com dois militares como seguranças, sentados lado a lado dele, que me olhavam como se quisessem me matar. Então, eu tinha que ter muito cuidado com o que iria dizer. Já tinha feito várias pesquisas sobre Pinochet e descobri que ele tinha uma fundação que buscava perpetuar seu legado. E esse legado é de um homem que fez grandes obras. Ele tinha, particularmente, muito orgulho de uma estrada que construiu chamada Carretera Austral. Então, conversei com ele sobre essa estrada. Isso acabou se conectando a outra fascinação: os romanos. Tanto que Pinochet batizou dois filhos com nomes de imperadores romanos. Além disso, ele tinha uma coleção particular de objetos que pertenceram a Napoleão: livros, espadas, chapéus... E, na época da entrevista, ele havia inaugurado um museu militarista, o que me deu várias pistas: tratava-se de um homem que tinha uma compreensão amoral sobre governo e poder. Tivemos ainda outras três entrevistas. O mais revelador foi que, certa vez, Pinochet, que na maioria das vezes só respondia “sim” e “não”, revelou ser um admirador de Mao Tsé-Tung [ditador da República Popular da China entre 1949 e 1976]. Ele já havia visitado o túmulo dele na China duas vezes. Perguntei como era possível que ele o admirasse, sendo anticomunista. Ao que ele respondeu: “Eu não acho que Mao era comunista. Ele tinha que ser, mas era, de fato, um nacionalista”. Perguntei o que passava pela cabeça dele quando estava diante do túmulo de Mao. Ele me disse: “Aqui está o homem que eliminou milhões de pessoas”. E ele falava aquilo com devoção. Respondi: “Eu só o compreendi agora, senhor Pinochet”. Ele realmente olhava Mao Tsé-Tung com admiração, como um homem que teve um poder que ele jamais teve. Pinochet se julgava pequeno e desejava ter sido um imperador romano, Mao Tsé-Tung ou Napoleão.

Você já escreveu sobre guerras e conflitos em países como Síria, Iraque, Afeganistão. Como separar razão de emoção nessas coberturas jornalísticas?

Algumas vezes não é fácil, mas a experiência ajuda. Foi muito difícil, no começo, manter qualquer tipo de imparcialidade e até mesmo escrever a respeito desses eventos. É claro que você paga um preço por isso. Não é como ir e voltar sem nenhum dano. Como os bombeiros: eles acabam sofrendo alguma queimadura, entende? Se você é um policial num bairro violento, mais cedo ou mais tarde, pode levar um tiro ou atirar em alguém. É assim que as coisas são. Repórteres de guerra, os poucos que existem, desejam não ter visto muitas das coisas que veem.

Houve algum momento em que pensou em desistir da profissão?

Não, porque essa não é a única coisa que faço. Mas há momentos em que tudo fica muito escuro. Como explicar... É um sentimento ou algo psíquico cujos sinais já consigo perceber. Quando algo fica muito obscuro, quando começo a ficar com raiva o tempo todo e fico obcecado por coisas que vi ou por amigos que foram mortos – o que aconteceu bastante –, tento fazer outra coisa por um tempo. Já fiz isso conscientemente pelo menos três ou quatro vezes, nos últimos três anos. Por isso voltei para a América Latina. Porque no período de dois anos perdi seis amigos. O que foi muito duro para mim. Se você lida com a morte o tempo todo, isso se torna parte do seu mundo. Como havia dito, uma das coisas que me interessam nessa estrutura da violência é o fato de que sei que parte disso existe em mim. Então, sempre tive curiosidade em saber como se dá esse gatilho. Vou te contar uma história. Passei muito tempo no Iraque e, na volta para casa, passava alguns dias na Jordânia. Chamávamos o rei de lá de Boredom (Tédio, em inglês), porque ele era um tédio e o país também. Era exatamente o que precisávamos depois de tanta adrenalina no Iraque. Não tínhamos noção de como estávamos vivendo no limite. Então, a gente precisava da Jordânia para fazer esse tipo de “despressurização” antes de voltar para nossas famílias e amigos. Eu fazia isso para não carregar raiva comigo. Mesmo assim, cheguei a brigar fisicamente com algumas pessoas. Foi aí que percebi: se você vive num meio em que falta respeito, como acontece com prisioneiros, há uma transformação na hora. Você pode controlar sua reação se você tiver consciência dela, e até levar uns dias para “despressurizar”, mas, muitos soldados, como nós sabemos, passam por isso. Alguns conseguem controlar, outros ficam loucos. A sociedade não sabe exatamente como ajudá-los. E o mesmo acontece com o jornalista de guerra. Tenho uma família, animais de estimação, amo a natureza... Por causa de tudo isso eu consigo relaxar e me curar.

Minha metodologia é a seguinte:
abordagem, diplomacia, acesso, entrevistas

Ainda assim, você acredita no lado bom dos seres humanos ou se tornou pessimista?

Sim. Não sou cínico. Vi o lado ruim, ele existe, mas o lado bom também. A natureza humana é frágil. Alguns de nós temos ambos os lados. Eu tenho os dois. Muitas sociedades coexistem com a violência ou têm uma relação de cúmplice com ela. Esse é um tipo de dualidade moralmente danosa, que afasta a sociedade da possibilidade de ser plena ou feliz. O estado de direito é essencial. É a chave. Mas a guerra é capaz de acabar com isso. Foi desse embate que surgimos e por isso estamos sempre a um passo de voltar a esse percurso. Mas não sou amargo, nem cínico.

Como as redes sociais afetaram o jornalismo?

Uso o Twitter, mas não gosto. Não vi o porquê do Facebook, apesar de ter tido um perfil por poucos anos. Parece um espaço para exercitar a vaidade. Também não vejo qual o objetivo de fazer parte do Instagram se posso postar fotos no Twitter. Agora as pessoas estão tomando mais consciência dos efeitos das redes sociais. É uma Torre de Babel que torna esse mundo virtual cada vez mais narcisista. Olhe para as pessoas para as quais estamos dando poder político. Elas são os maiores narcisistas. Mas aí tem o lado positivo: as redes tornam tudo mais fácil. Você pode pegar um táxi em segurança, por exemplo. Em vários aspectos, as redes tornaram a vida mais fácil.

Que análise faz desse impacto?

No final, é tudo uma questão de escolha: como queremos viver a vida. Então, como isso repercute nos veículos de informação? Isso criou um mundo como o dos Estados Unidos: impossível assistir a um canal como a Fox, pela caricatura que se tornou. Da mesma forma, se você assistir à CNN, o canal ficou cada vez mais medíocre e não há mais notícias. Agora vamos à mídia impressa: para tentar sobreviver, ela busca formas na era digital e todos participamos disso. Por enquanto, sou sortudo por ainda ter um espaço na The New Yorker, que de alguma forma existe porque há pessoas dispostas a ler, comprar e manter a revista. Mas também me sinto forçado e obrigado a tuitar ou comentar e escrever em blogs de vez em quando como uma forma de participar disso. Se você me fizesse essa pergunta há oito anos, eu seria diplomático. Diria que tudo ficou mais democrático e que, se você não tem um emprego e é jovem, você poderia fazer um blog e dão a própria opinião. Agora, todos dizem o que isso não ajudou em nada. Ainda temos esse fenômeno – eu odeio esse nome – das fake news. Vivemos num momento em que a mídia tem mais poder do que em outras épocas. Você vê isso pela forma como ela é atacada hoje. No entanto, economicamente, a mídia passa por uma situação muito mais insustentável que antes. Ela caminha na corda bamba: com o máximo de poder e com as maiores chances de extinção ao mesmo tempo. 

O que me motiva a fazer um perfil é o interesse sobre certos tipos de pessoas.
De uma forma ou de outra, elas fazem o mundo girar, não necessariamente para melhor

Se pudesse escolher um tema relacionado ao Brasil sobre o qual escrever, qual seria?

Anos atrás, escrevi sobre a relação entre favelas e asfalto no Rio de Janeiro. Estive com traficantes. Tudo aquilo abriu meus olhos e me mostrou quão precária é a sociedade. Um dos mais poderosos traficantes que conheci tinha mais ou menos a minha idade. Perguntei-lhe por que ainda estava fazendo aquilo. Ele me respondeu: “Estou pagando a faculdade de Direito da minha esposa”. Hoje, escreveria novamente sobre a Amazônia. Iria para o Vale do Javari [região com a maior concentração de indígenas vivendo em isolamento voluntário no mundo, uma das áreas mais conservadas da Amazônia]. Porque amo a floresta e o que é selvagem. Dois ou três anos atrás, fiz uma matéria sobre uma tribo isolada. Fiquei fascinado pelo que encontrei. O fim do homem em seus primórdios logo ali na fronteira entre o Brasil e o Peru: 70% das últimas pessoas que existem sem nenhuma proteção. É o Velho-Oeste. Muito do Brasil e do interior da América do Sul é assim. Pessoas costumam ler sobre cowboys e índios nos Estados Unidos, mas isso acontece hoje e aqui. Nem parece 2018, mas é 2018 e também 1873. Eu vejo isso como algo fascinante. Há tantas histórias para contar sobre o Brasil. Talvez para a população urbana essas histórias soem clichês do país. Mas sou consciente de quão estratificada é a vida aqui também. Porque, se você vive no meio urbano brasileiro, talvez nunca conheça esses lugares. Nem precisa, porque você já tem sua zona de conforto. Talvez vá ao litoral, mas não até esses lugares onde “coisas assustadoras” acontecem. O Brasil é muito mais do que um país, é um mundo à parte.

Texto e imagem reproduzidos do site: sescsp.org.br

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