Legenda da foto: Amaral Cavalcante: um Ulisses em malandragem e sabedoria
Aritigo compartilhado do site JLPOLÍTICA, de 3 de julho de 2023
O ladrão de jornais, ou os bastidores da birra entre dois titãs da contracultura sergipana
Por Antônio Passos
Já disse antes, esta não é a primeira vez, que quatro figuras vindas do espaço sideral acamparam no meu imaginário juvenil como pilares da cultura ou da contracultura sergipana: Lu Spinelli, Amaral Cavalcante, Ilma Fontes e Joubert Moraes.
Primeiro, os avistei de longe, ouvi o barulho e vi a poeira levantada pela passagem dos quatro no mundo das artes e da agitação cultural. O tempo todo também não paravam de chegar sussurros sobre novas fronteiras abertas pelas atitudes do quarteto.
Tive, com o passar do tempo, a oportunidade de convivência ou aproximação, de modos diferentes, com todos eles. Mas, nem tudo são flores. Logo de cara me vi numa saia justa, no meio de um barraco armado entre dois desses titãs.
Corriam os descolados anos 1980 quando, após ler um texto que rabisquei para o Jornal Pipiri, Ilma Fontes me levou até o covil onde funcionava a redação da Folha da Praia e me entregou de mão beijada a Amaral Cavalcante.
Dias depois tive a carteira de trabalho assinada pelo periódico pirata. Entretanto, não demorou muito e bateu à minha porta a cobrança por aquele tão generoso ato que me abduziu como um relâmpago, da posição de fã para a de colunista do jornal da onda.
Da primeira geração da Folha, os que continuavam vivos em carne e osso viviam às turras. Todos queriam algo como uma participação acionária no bangalô jornalístico, com direito a dividendos, e acusavam Amaral de tê-los rebaixado de sócios fundadores a meros freelancers.
Ilma Fontes salivava acreditando que uma bufunfa entraria no bolso dela, além da honra lavada, se conseguisse provar na barra dos tribunais uma remota e decisiva participação nos primórdios do então semanário alternativo. Porém, precisava de provas!
Foi aí que eu “entrei de gaiato no navio”. Com a autoridade de minha madrinha no jornalismo, ela me encarregou de furtar, do amontoado de papéis que era o arquivo do jornal, guardado sob a sombra do bigode do gigante Amaral, pelo menos um exemplar de cada uma das edições, desde a primeira até a mais recente.
Inspirado na rainha persa Sherazade, intuí que havia uma estreita e perigosa possibilidade de engabelar os dois monstros sagrados até que aquilo tudo caísse no esquecimento, atropelado pelos solavancos da vida. Era preciso arriscar a difícil caminhada por cima do muro, pois, eu não queria atrair a ira de nenhum dos lados.
Ai, ai, meu Deus! Como diz a canção, “foi um tempo de aflição”. Em dias aleatórios, para reforçar o disfarce, eu inventava desculpas para ficar na redação sozinho, após o horário de expediente. Já à noite, saía desconfiado pela rua de São Cristóvão com bolos de jornais velhos embaixo do braço.
Em cada pacote traficado para Ilma, propositalmente eu deixava faltando algumas edições, alegando não tê-las encontrado, na esperança de ir ao mesmo tempo alimentando e cansando a cólera da reclamante sem que ela completasse a cobiçada coleção.
Acho que Amaral, esse que foi para nós um Ulisses em malandragem e sabedoria, desconfiava de alguma movimentação estranha pelos corredores do edifício da SCAS. Contudo, foi safo o suficiente para abafar o caso.
Felizmente, para o meu sossego, outras paixões e alegrias vieram e Ilma já não me cobrava mais os calhamaços de papel amarelado. Assim, sem nenhum dano maior, além do sufoco vivenciado, dei por encerrada a minha carreira de ladrão de jornais.
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* Antonio Passos - É jornalista e professor.
Texto e imagem reproduzidos do site: jlpolitica com br/articulista
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