quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Gay Talese > Reflexões de um ícone do jornalismo

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 17 de fevereiro de 2025

Reflexões de um ícone do jornalismo

O jornalismo de qualidade exige cobrir os fatos. Não as nossas percepções subjetivas. Analisar e explicar a realidade. Não as nossas preferências. Carlos Alberto Di Franco para a Gazeta do Povo:

No finzinho de janeiro, o jornal O Estado de S.Paulo brindou seus leitores com uma saborosa entrevista com uma lenda do jornalismo norte-americano: Gay Talese. Prestes a fazer 93 anos, autor de falas polêmicas e raciocínio afiado, está mais ativo do que nunca. O jornalista e escritor planeja terminar em 2027 o livro A Non-Fiction Marriage, sobre os 60 anos de casamento com a famosa editora Nan Talese.

A repórter Luciana Dyniewicz fez uma sugestiva e competente entrevista por e-mail. Talese espraiou-se sobre muitos assuntos: suas histórias sobre Nova York, sua rotina e método de trabalho, Donald Trump e, sobretudo, sua visão a respeito da imprensa atual. Suas reflexões e conselhos são de grande atualidade.

Ao fazer a defesa da reportagem, Talese não esconde uma ponta de melancolia: “Acredito que os repórteres têm um trabalho mais difícil hoje do que quando eu trabalhava como jornalista diário. Hoje, o trabalho é muito técnico, movido por computadores, remoto. Eu costumava insistir em estar fisicamente presente com o meu entrevistado. O que eu fazia tomava tempo, exigia mais confiança entre mim e meus entrevistados – o que diferenciava o meu trabalho. Até hoje você sabe como era o meu contato com as pessoas sobre as quais escrevia. É por isso que histórias que escrevi há 40 ou 50 anos ‘resistem’ até hoje e sempre parecem frescas e novas”.

O jornalismo tinha cheiro de asfalto. Era olho no olho. O repórter rompia o ar rarefeito da redação e ia ver a vida real, com suas grandezas e suas misérias. O conteúdo transpirava vida. E isso atraía o leitor com uma força insuperável.

“A imprensa hoje tem mais viés do que quando eu era repórter de rua em meados do século 20. Na minha época, nós, repórteres, tentávamos ser ‘objetivos’, tentávamos manter nossas preferências e aversões fora das matérias que estávamos escrevendo”, comenta Talese.

O enviesamento das coberturas e a substituição do factual por narrativas representam, a meu ver, uma das principais causas da crise do jornalismo atual. O leitor não quer contrabando opinativo na informação. Quer o fato apurado com competência e isenção.

A sociedade está cansada do clima de radicalização que tomou conta da agenda pública. Sobra opinião e falta informação. Os leitores estão perdidos num cipoal de afirmações categóricas e pouco fundamentadas, declarações de “especialistas” e uma overdose de colunismo militante. Um denominador comum marca a superficialidade que invadiu o espaço outrora destinado à informação qualificada: a politização.

Em tempos de ansiedade digital, a reinvenção do jornalismo reclama revisitar alguns valores essenciais: amor pela verdade, paixão pela liberdade e uma imensa capacidade de sonhar e de inovar. Eles resumem boa parte da nossa missão e do fascínio do nosso ofício. Hoje, mais que nunca, numa sociedade polarizada e intolerante, precisam ser resgatados e promovidos.

O jornalismo transformador é substantivo. Insisto. Sua força não está na militância, mas no vigor persuasivo da verdade factual e no equilíbrio de uma opinião fundamentada.

A democracia reclama um jornalismo vigoroso e independente. Comprometido com a verdade possível. O jornalismo de qualidade exige cobrir os fatos. Não as nossas percepções subjetivas. Analisar e explicar a realidade. Não as nossas preferências, as simpatias que absolvem ou as antipatias que condenam. Isso faz toda a diferença e é serviço à sociedade.

O grande equívoco da imprensa é deixar de lado a informação e assumir, mesmo com a melhor das intenções, certa politização das coberturas. Cair na síndrome das narrativas. Os desvios não se combatem com o enviesamento informativo, mas com a força objetiva dos fatos e de uma apuração bem conduzida.

As redes sociais e o jornalismo cidadão têm contribuído de forma singular para o processo comunicativo e propiciado novas formas de participação, de construção da esfera pública, de mobilização da sociedade. Suscitam debates, geram polêmicas (algumas com forte radicalização) e exercem pressão. Mas as notícias que realmente importam, isto é, as que são capazes de alterar os rumos de um país, são fruto não de boatos ou meias-verdades disseminadas de forma irresponsável ou ingênua, mas resultam de um trabalho investigativo feito dentro de padrões de qualidade, algo que deve estar na essência dos bons jornais.

Como os jornais tradicionais podem competir com as redes sociais pela atenção do leitor? Talese não duvida: “Acredito que ‘qualidade’ vende. Os jovens repórteres precisam se tornar bons escritores, assim como são os escritores e poetas. Se conseguirem isso, encontrarão um público. O público está lá, esperando pelo surgimento de algo digno de ser apreciado, algo extraordinário, algo envolvente e cativante. Boa escrita – se for realmente boa – encontrará leitores”. Num mundo horizontalizado, muitas vezes banal, Talese aposta na qualidade.

É fácil? Não. Mas a pressão das audiências, compreensível e inescapável, não pode silenciar reflexões profundas e verdadeiras.

Precisamos fazer a autocrítica sobre o nosso modo de operar. A crise é grave. Mas a oportunidade pode ser imensa.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

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