terça-feira, 29 de julho de 2025

'Somos presos políticos' - Perfil: Parte 3

Sinval com Tancredos Neves, naquela época, Governador de Minas Gerais

Artigo compartilhado do site PORTAL IMPRENSA, de 19 de agosto de 2024 

Somos presos políticos

Perfil: Parte 3

Isis Brum e Alexandra Itacarambi* 

Em dezembro de 1969, Sinval de Itacarambi Leão foi transferido para a cela 7 do Presídio Tiradentes

Levado com Paulo de Tarso Venceslau e Frei Tito, Sinval de Itacarambi Leão partiu para a nova carceragem. Todos os três feridos. Ao chegarem no presídio, Paulo de Tarso orientou-os a não se mostrarem intimidados porque os presos comuns costumavam abusar dos recém-chegados.

Havia um corredor imenso pelo qual a travessia dos prisioneiros ocorria sempre com insultos, gritaria e provocações. A cela deles, temporariamente, era a última. O presídio estava improvisando um novo local para acomodar os “terroristas”.

Antes, contudo, do início do corredor, Paulo de Tarso bradou a plenos pulmões:

- Nós somos presos políticos e estamos aqui para lutar por vocês. 

Houve um silêncio respeitoso enquanto caminhavam para o novo cárcere. Ao chegarem à cela, Frei Tito se apoiou em algo para ficar mais alto e declamou os versos de “Modinha”, de Geraldo Vandré, para um vão:

- Rosa, Hortência, Margarida / Tudo tem nome de flor / Passou pela minha vida / Foi mulher, tem meu amor.

Sinval lembra que o frade conhecia o presídio e sabia que a ala feminina estava acima da deles. Recorda também que as mulheres responderam, cantando “Bella Ciao”, uma canção italiana, entoada como um hino à liberdade e à resistência antifascista. 

Quando as mulheres finalizaram, um grupo do Partidão entoou a Intentona Comunista. Em seguida, Tito puxou um samba e os presos comuns fizeram a percussão.

Parecia um sopro de humanidade. Um modo de sobreviver, àquela altura, quase digno. Cantaram até às 22 horas quando foram silenciados pelo toque de recolher. A isso, Sinval estava habituado. Os anos na abadia o talharam para a disciplina.

No outro dia, e por ainda 18 meses, a realidade era sempre um choque. Apesar de não voltar a ser submetido à violência, estar preso, sem saber se seria solto um dia, era um tipo de tortura diária, lenta e contínua.

Cela 7

A planta do Presídio Tiradentes possuía seis celas masculinas. O local, porém, abrigou sete – esta última arranjada de improviso, para onde Sinval foi levado com os outros presos, no último andar da unidade. Antes, o espaço era ocupado pelo almoxarifado.

A cela 7 era espaçosa. Para lá, foram levados 25 beliches, mas nunca atingiu a capacidade máxima, enquanto o jornalista esteve preso. Para ele, a mudança isolou o grupo do restante da cadeia, como se ficassem em uma bolha, desconectados das outras celas.

Apesar de todos ali estarem presos por oposição ao regime militar, os grupos não se misturavam graças às discordâncias ideológicas, uma herança, aliás, que a esquerda brasileira continua a carregar.

Sinval não queria ser visto como ex-monge, embora todos os anos anteriores à vida que estava apenas começando, passou-os dentro do mosteiro. A pouca experiência com a militância, com a política e a vida, levou à alcunha de “cururu” que, na gíria dos presos, é uma pessoa “boba”, “trouxa”. 

Ele reconhece, hoje em dia, que realmente não tinha conhecimento profundo da obra comunista e aprendeu um pouco durante a prisão com quem se designava a conversar com ele, como o jornalista e artista Sérgio Sister, do então PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), de quem se tornou amigo e admirador. 

Sobreviveu. Propunha jogos de futebol, abrindo espaço entre os beliches que sugeriu desmontar. Segundo ele, foi o primeiro a assumir o desejo de ter uma televisão para assistir aos jogos da Copa de 70. Para os marxistas, era o futebol, como a religião, o ópio do povo. Sinval saiu com o argumento de que o esporte, na verdade, era “o pio do povo”, pois, nesse momento, podia extravasar sem medo de ser preso. Não enfrentou resistência. Ele acredita que só faltava um bom argumento para ajustar as convicções mais diletantes ali presentes. 

Liberdade vigiada

Conseguiu a liberdade em 24 de março de 1971, respondendo a processo do Estado por ser membro da ALN.

Continuou a ser monitorado depois de sua saída até ser novamente detido, 4 meses depois, pela Oban. Desta vez, a denúncia foi contra sua esposa, Ruth, que fazia parte da militância no POC (Partido Operário Comunista). Sinval só foi preso à noite ao chegar em casa, na volta da Editora Abril.

O jornalista passou 30 dias sob tortura diária, ainda piores que da primeira vez, sem que nenhuma nova acusação fosse comprovada. Teve de ser liberado no dia 22 de agosto para comparecer à Justiça, onde seria julgado. Sinval conta que foi levado para um hospital militar para ser “consertado” e apresentar-se adequadamente ao juiz. Grávida do primeiro filho do casal, Ruth foi liberada antes do Natal a pedido do arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns.

Não se tratava de um tribunal isento. O julgamento ocorria diante do Conselho Permanente da II Auditoria de Guerra, uma vez que os indiciados eram apontados como terroristas e comparsas de Marighella na tentativa de tomar o poder no Brasil.

A defesa foi realizada, nas palavras dele, com brilhantismo pelo resultado, e com verdadeiro terror pela linha adotada pela advogada Rosa Maria Cardoso da Cunha. Com Sinval, foram julgados o filósofo dominicano Roberto Romano e a jornalista e amiga Rose Nogueira Clauset, presos à mesma época. “Nós três tivemos a mesma advogada. Ela fez uma defesa fantástica sobre o nazismo. Ficamos com medo, mas nós fomos absolvidos”, recorda.

Ainda viva, Rosa Maria se tornaria uma das grandes vozes em defesa dos presos políticos e dos direitos humanos. Foi a quarta coordenadora da Comissão Nacional da Verdade (CNV), da qual é membro desde 2012.

O jornal Diário Popular (hoje Diário de S.Paulo), datado de 15 de setembro de 1971, publicou a decisão em uma nota, com destaque para a condenação de 4 anos de detenção dos freis Carlos Alberto Christo, Yves do Amaral Lesbaupin e Fernando de Brito. O frade João Antônio Caldas Valença foi penalizado com 6 meses de prisão. Nesta nota, o jornal cita nominalmente a absolvição de Sinval de Itacarambi Leão por unanimidade do tribunal “por carência de provas”.

Após ser absolvido, Sinval procurou manter o foco no trabalho e no sustento da família que estava começando. Mesmo absolvido, ainda era difícil conseguir emprego com seu histórico. 

Sobrevivência e recomeço

Em 1971, foi repórter nas revistas Realidade e Visão e passou rapidamente pela Folha de S.Paulo. No ano seguinte, foi contratado como chefe do Departamento de Pesquisa de Mídia da Lintas Publicidade pela Fátima Pacheco Jordão, nas palavras de Sinval, “a maior especialista de pesquisa de mídia deste Brasil”. 

Seguiu para a DPZ para exercer o mesmo cargo, ganhando mais, época em que conheceu o publicitário Carlito Maia. Permaneceu na agência por mais um ano até os militares reaparecerem para buscá-lo. O erro foi o local. Os agentes tinham o endereço de trabalho na Lintas. Os amigos o avisaram e, dessa vez, não esperou ser capturado. Retirou o dinheiro do banco, pegou a família e “saiu de férias”.

A situação melhorou a partir de 1974, quando assumiu como diretor de Serviços de Marketing na Rede Globo, posto que exerceu até 1982, período que trabalhou com Carlito. O Exército chegou a ir atrás dele. “Mas o doutor Roberto Marinho dizia que dos comunistas dele, ele cuidava”, conta Sinval. Em seguida, completa a frase: “O doutor Roberto nunca falou esta frase. Quem inventou foi o meu amigo, Otto Lara Resende”. Se não acalentava pela mentira, ao menos, gerava certa empatia pela situação ou risos pelo temperamento cínico-afetuoso de Lara Resende.

No período em que trabalhou na Globo, criou e editou a revista Mercado Global, em 1974. Em 1977, estagiou na ABC Network de Nova York e, no ano seguinte, criou e coordenou o Prêmio Profissionais do Ano, que reconhece o talento dos profissionais de marketing no Brasil até hoje. No final do ano passado, foi realizada a 45ª edição.

Em 1982, foi transferido para a Globo Minas para ser diretor Comercial. “Aí, o clima já era outro. Tancredo Neves era governador do estado mineiro e negociaria, depois, a transição para a redemocratização. Ao mesmo tempo, as fissuras no governo ditatorial cresciam e os movimentos pelas Diretas Já ecoavam em todo País”, recorda. Ficou no cargo até 1986.

No mesmo ano, tornou-se sócio da Interscience Serviços de Marketing e, em 1987, fundou a Revista IMPRENSA, com os jornalistas Paulo Markun, Dante Matiussi e Manoel Canabarro, da qual foi o único a permanecer como diretor e editor.

À frente da IMPRENSA, resistiu, tal como aprendeu com a vida, ao enfrentamento dos processos jurídicos, às crises financeiras, às mudanças tecnológicas ou políticas. Sinval ressalta com orgulho o trabalho de digitalização completa da publicação, antes com exemplares antigos faltantes. O atual acervo digital foi construído como forma de preservar a história da imprensa brasileira das últimas décadas, disponível ao interesse público.

O exercício contínuo de valorização da vida e dos direitos humanos, a promoção de debates e a criação do Prêmio Líbero Badaró de Jornalismo (em 1989), pró-mártir da liberdade de imprensa, e do Troféu Mulher Imprensa, o primeiro a reconhecer o trabalho feminino no jornalismo, são exemplos dos valores que sustentaram a sua conduta. 

A lista de prêmios recebidos reafirma a contribuição ao jornalismo e à sociedade. Em destaque, recebeu dois Prêmios Esso de Jornalismo, em 1987 e 1994, e dois prêmios Aberje, em 2005 e 2006. Em 2013, foi consagrado com a Medalha Juscelino Kubitschek por serviços prestados à cultura de Minas Gerais.

“Nomen est omen”

Minas Gerais foi importante em sua vida, era o local de seus ancestrais indígenas. 

O Presídio Tiradentes, que por contradição tinha o nome do inconfidente mineiro, começou a ser desativado, devido a uma forte chuva em São Paulo, no mesmo dia do nascimento de seu primogênito, Carlos, em homenagem a Marighella.

“Nomen est omen”. Sinval acreditava no destino do nome. Na redação de IMPRENSA, repetia máximas como “mate o homem, mas não erre o nome”, ou outras em latim “quot abundat, non nocet”, em tradução livre “o que é de mais, não prejudica”, exceto os adjetivos. 

No processo do Estado era identificado como Valdo. Companheiros da cela 7 o chamavam de Capitão Ipanema, por ter sido preso por lá. Já no monastério, Sinval de Itacarambi Leão era Dom Teodoro.

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*A jornalista Isis Brum entrevistou o Sinval de Itacarambi Leão entre novembro e dezembro de 2023. O texto teve a colaboração e edição de Alexandra Itacarambi.

Texto e imagem reproduzidos do site: portalimprensa com br

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