Publicado originalmente no blog Dois Pontos.
Francisco Ucha - 05|02|2014.
Lúcio Flávio Pinto: “Minha arma é a informação”
Criador do Jornal Pessoal há 25 anos, Lúcio Flávio Pinto
esteve em São Paulo no final de outubro de 2012 para receber o Prêmio Especial
Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, justa homenagem a um jornalista
inquebrantável. Em seu discurso de agradecimento – publicado na íntegra no
Jornal da ABI 384 –, Lúcio Flávio explicou os motivos pelos quais decidiu
lançar o seu bravo jornal: publicar uma matéria sobre o assassinato do
ex-Deputado Paulo Fonteles, “um dos crimes políticos mais graves que já ocorreu
no Pará” e que exigiu três meses de investigação.
A matéria fora recusada pela diretora do jornal O Liberal
por incriminar “dois dos maiores anunciantes da empresa”. Por causa dessa
vergonhosa negativa, o Jornal Pessoal nasce e chega às bancas de Belém do Pará
no início de setembro de 1987, trazendo o que o bom jornalismo pode oferecer:
matérias apuradas com precisão e muito bem escritas, que privilegiam a verdade,
numa publicação independente e totalmente sem anúncios.
É claro que isso lhe trouxe problemas. Grandes problemas.
Lúcio Flávio é o jornalista mais perseguido e censurado do País. E também um
dos mais premiados. Sua coragem para escrever temas espinhosos que os jornais
não publicam, e sua coerência em não se alinhar com nenhum grupo, o colocam
como alvo de violentos ataques pessoais e da censura de juízes que se acham
acima da Constituição e tentam amordaçar o verdadeiro jornalismo, pouco
praticado nos dias de hoje.
Foi para conhecer um pouco mais do pensamento de Lúcio
Flávio Pinto, que o Jornal da ABI o encontrou em São Paulo. “Nós somos
paladinos da verdade. E ela é um dever de ofício, não é um elemento
distinguidor do herói e do covarde. Se você é jornalista, você é um sacerdote
da verdade. E se você não é o sacerdote da verdade, não é digno de ser
jornalista”, disse-nos com entusiasmo na entrevista que pode ser lida a seguir:
Entrevista publicada originalmente no Jornal da ABI 386, de
janeiro de 2013.
“O compromisso do jornalista é socializar a informação”
O jornalista mais perseguido do País diz que a verdade está
proibida em plena democracia e ressalta a importância da verdadeira imprensa.
• • •
Entrevista concedida a Francisco Ucha
Publicada no Jornal da ABI em janeiro de 2013
É possível fazer cobertura da Amazônia sem estar lá?
Não.
Então os grandes jornais têm que ter jornalistas lá de
qualquer maneira?
E não têm! O Estado de S.Paulo tem, mas é um colaborador,
não é funcionário do jornal. O Estadão já teve uma sucursal lá, com cinco
pessoas na sede, e correspondentes em todas as capitais. Nós não tivemos
nenhuma evolução na cobertura da Amazônia, tivemos uma involução grande. A Veja
teve uma sucursal, a Manchete teve uma sucursal. Hoje ninguém tem. No máximo,
um colaborador. A Folha de S.Paulo tem um correspondente, que fica lá.
Houve realmente uma involução do jornalismo diário em todos
os setores, porque diminuíram as equipes e aumentaram a pressão por produção de
matérias. Dá para formar um jornalista assim?
Há duas coisas terríveis. Como é que se forma o grande
jornalista? Ele se forma nas viagens, como enviado especial. Clóvis Rossi é o
exemplo mais acabado do jornalista formado como enviado especial. Hoje, quase
não há viagens e as que existem são patrocinadas por alguém interessado, mesmo
que o jornal dê essa informação, que viajou a convite de fulano. Mas as viagens
espontâneas, que não são de cobertura oficial, as matérias criadas, são muito
poucas. Então, há uma deficiência de formação porque o jornalista é um homem de
rua. Se ele tiver background e acrescentar à sua capacidade a forma de agir na
rua, ótimo! Mas sem a base não adianta ter toda essa informação de retaguarda.
E a outra grande coisa mais nociva foi a que os grandes nomes do jornalismo
passaram a ser empresas individuais, por imposição das empresas que os
contratam. E quando eles passaram a ser empresas individuais, com todo o ônus
de uma pessoa jurídica, começaram a pensar duas vezes antes de se arriscar.
Tornaram-se cautelosos, e alguns ficaram covardes. E também o custo social da
empresa do jornal passou para a empresa individual do jornalista. Para
compensar, ela projeta o jornalista, faz grande propaganda, publica foto,
imagem, e ele passa a ganhar dinheiro num circuito que não é jornalístico,
fazendo palestras em circuito fechado, palestra para empresários, para grupos
de pressão, mas não para o público. Muita informação circula nesse circuito de
jornalistas palestrantes, que cobram 15 mil, 20 mil, 30 mil por palestra. Ele passa
a ser empresário, perde a identidade com o leitor, com a opinião pública. O
primeiro grande exemplo dessa tendência nociva foi o Plano Collor. Ninguém
furou o Plano Collor. Ninguém! O jornalismo econômico sabia do Plano! Eles
tinham o compromisso com quem? “Não, eu vou deixar para dar essas informações
exclusivas no circuito de minhas palestras porque isso aumenta o meu valor”.
Ele está cobrando 40 mil porque esse jornalista tem informações exclusivas e só
dá para quem paga as palestras. Isso é terrível! A par do corporativismo
empresarial, do comprometimento político, o jornalista é uma empresa. Alguns
dos maiores jornalistas do País viraram empresas. Por isso que o Mário Sérgio
Conti, no posfácio da segunda edição do livro dele, Nos Bastidores do Planalto,
cita os jornalistas que naquele ano, em 1992 – vinte anos atrás – combatiam e
denunciavam o Collor, e hoje prestam serviços de imagem para políticos. Eu acho
que esse é um problema sério. Poucos jornalistas hoje se arriscam, e isso faz
que a qualidade da informação, em plena época de democracia, tenha decaído. Em
parte pela Justiça perseguindo, ou os patrões com os seus interesses, mas em
boa parte por pecado individual dos jornalistas, que não estão mais com
compromissos éticos com a sua profissão. Nem diria “ético”! É um compromisso de
ofício! Qual é a nossa função? Nós somos auditores populares. Nós somos os
auditores mais importantes porque nós auditamos o poder em nome da sociedade,
que também é um poder.
Certa vez, o Jarbas Passarinho era Presidente do Senado e
estava com uma briga com o Passos Porto, que era do mesmo partido, o PDS. E
juntou um grupo de jornalistas para entrevistá-lo, aquele amontoado de gente, e
o Passarinho, que gosta de fazer piadas, disse: “Poxa, devíamos ter contratado
jornalistas logo depois de revolução, porque eles iriam conseguir arrancar das
pessoas que foram presas, os subversivos, informações que nós não conseguimos”.
Aí eu disse: “Senador, e não ia precisar torturar ninguém para fazer isso”.
Então, o jornalista é isso, ele não tem arma nenhuma a não ser a busca da
verdade. O compromisso dele é socializar a informação e emitir o máximo
possível para a opinião pública. E esse compromisso está cada vez mais diluído.
É um número cada vez menor de profissionais comprometidos com isso. Nosso poder
– porque realmente é um poder – só é legítimo se for mediado pelos interesses
da sociedade, senão é abusivo. Esse jornalismo investigativo de dossiês é
terrível! As pessoas pensam que esse é o jornalismo investigativo e não é, porque,
na verdade, já está pronto. Ele passa a ter o compromisso para quem dá o dossiê
de assumir aquilo como verdade. Eu recebo dossiês, mas para mim dossiê é pauta,
jamais uma matéria pronta! Há um elemento que distingue o jornalista do
cientista político, do psicólogo, do sociólogo, de qualquer outro profissional
das ciências humanas: é o contato direto com a realidade. O jornalista, por
exemplo, investigando um caso de corrupção… Ele tem que ir falar com as
pessoas, tem que enfrentar todos os lados, tem que ser capaz de quebrar as
barreiras. Eu fiz matérias sobre o tráfico de drogas em Belém, em dezembro de
1991, quando foi feita a maior apreensão até então de cocaína no Brasil: uma
tonelada. Eu mostrei todos os elos do tráfico internacional de drogas por Belém
com a alta sociedade. Pessoas poderosas! Contei histórias terríveis! Eu ia
falar com os traficantes. Entrava em contato com o pessoal e dizia: “Sou
jornalista, estou fazendo uma matéria de denúncia sobre o tráfico de drogas e
tenho uma informação sobre você. Eu quero saber o seguinte: você está disposto
a falar abertamente? Não vou gravar e se você disser que a informação não pode
sair, não vai sair, mas eu quero lhe ouvir”. Para minha surpresa, alguns
traficantes aceitaram e eu conversei com eles! Alguns disseram: “Isso aqui é só
para sua informação e você não pode usar”. E cumpri. Não gravei. Eu jamais
seria o Tim Lopes. Não que eu seja covarde e o Tim Lopes, corajoso. É porque eu
sou um profissional que tenta não se deixar manipular por ninguém, e o Tim
Lopes foi manipulado pela Rede Globo. Se eu fosse o chefe do Tim Lopes, jamais
teria dito para ele ir com um gravador oculto, câmera oculta… jamais! Nunca fiz
isso como repórter…
“O jornalista não tem arma nenhuma a não ser a busca da
verdade. O compromisso dele é socializar a informação e emitir o máximo
possível para a opinião pública.”
Ele foi escondido…
Foi. Ele não foi como jornalista. Eu vou para todos os
lugares como jornalista. Se não me aceitam, o problema é de quem não aceita.
Ele foi escondido! Não se faz isso com traficante. Se tem um código de ética,
vamos cumprir. Se eu não aceito isso, então não vou atrás dele. Vou tentar de
outra maneira. Já aconteceu comigo várias vezes, a porta se fecha e a pessoa
não quer me receber. Eu respeito. Mas não há só um caminho para a verdade.
Bertold Brecht dizia que há cinco maneiras de dizer a verdade. Eu vou por
outros caminhos. Por exemplo, a estrada mais cara do Pará, proporcionalmente a
mais cara do Brasil, é a BR-150, que liga Belém ao extremo Sul do Estado. Eu
queria saber quanto custava aquilo. Uns diziam uma coisa, outros diziam outra,
nenhuma informação era checada e eu não dizia o quanto custou, só dizia que era
uma estrada cara. Todos os governos, desde 1972, refazem esse estrada e ela
nunca está pronta. São 1.100 quilômetros. Ela pega toda a área madeireira,
pecuária, mineração; é uma estrada importante e a maior parte dela se tornou
BR, a União se apropriou da estrada. Até que a Construtora Andrade-Gutierrez
entrou com uma ação contra o Governo do Estado cobrando. Aí eu peguei os seis
volumes dos autos, e disse: “Não me interessa quanto tempo vou gastar, eu vou
ler o processo inteiro”. E passei duas semanas indo todos os dias ao cartório,
porque não podia tirar o processo. Aí eu cheguei ao preço da estrada pela
informação da Andrade. A Andrade não me deu, mas para se ressarcir ela teve que
dar todos os custos. Eu levantei tudinho. O processo tem 1.800 páginas e não
tem um só lugar onde estavam os custos, eu tinha que pegar várias informações,
atualizar, fazer alguns cruzamentos de informação. Então, acho que é isso que
se tem que fazer.
Essa matéria rendeu algum processo para você?
Nenhum. Tudo era informação da Andrade-Gutierrez. Ela não
podia fazer nada. E o Governo do Estado, que estava questionando, perdeu a
ação. A Andrade ganhou, porque ela realmente tinha direito àquilo. Só que aí
entra o jornalismo. Eu fiz o jogo da Andrade? Não. Porque eu mostrei que a
Andrade conseguiu dinheiro através da Operação 63, que permitia a
nacionalização de moeda estrangeira. Quem fez o empréstimo foi a Andrade e ela
usou aquele dinheiro para outras obras dela. Então eu mostrei o outro lado, que
evidentemente não estava na ação. Então, o jornalista que está na rua, que lida
com as pessoas, que vê os fatos, tem o elemento que o distingue de qualquer
outro profissional: a malícia. Não é a malícia dolosa. Se me dizem: “É xis”, eu
aceito que é xis, mas vou procurar saber se é xis mesmo. Eu não aceito nenhuma
informação como pronta para ser divulgada enquanto eu não checo. E checar às
vezes exige ir ao lugar, ler um processo imenso, conversar com as pessoas; essa
é a riqueza do jornalismo! O jornalismo não pode ser restrito a uma tela de
computador, circular na rede mundial de computadores, pesquisar no Google,
ligar para a fonte. Na época do regime militar, eu tinha fontes militares. Por
exemplo, eu tinha uma fonte, um oficial do Exército que, quando eu conversava
com ele, brigava comigo. Nós passávamos 80% do tempo da nossa conversa
brigando! Ele dizia: “Você é comunista!”. Mas era um homem honesto e decente
que tinha uma divergência comigo. Quando nós chegávamos a um ponto tal que a
discussão era acesa, a gente parava e tomava um cafezinho. (risos) Uma fonte
vital para mim. Eu estava em Belém e O Estado de S.Paulo me pedia informações
sobre os militares, que eu mandava com a certeza de que ninguém tinha. Aquela
fonte era preciosa, ele era um intelectual do Exército, que acreditava no
Exército.
Acreditava no golpe? Chamava de “revolução”?
Ele acreditou. Depois ele disse que ficou desiludido! Ele
era anticomunista, achava que os esquerdistas eram nefastos, que só querem
conquistar o poder, muito na linha de Milovan Djilas, que denunciava a nova
classe, “Isso aí é outro dominador, prefiro ficar no que eu já conheço”. Mas
era um homem honesto e muito bem informado. Semanalmente ele estudava o
Almanaque do Exército. Sabia tudo sobre todos os oficiais, generais, coronéis,
e foi militar durante 38 anos. Era uma fonte preciosa, que eu nunca perdi. E
várias outras. Então, o jornalista é isso: são suas fontes. É impossível um
jornalista que não tenha fontes seguras e confiáveis, mesmo que possa funcionar
com códigos, como o Deep Throat, do Woodward. Numa escala micronésima, eu tinha
o meu Deep Throat. Ele nunca me dava uma informação, mas se eu perguntasse se
uma informação era verdade, ele nunca mentiu. Como ele era alto funcionário
público, achava que não podia trair o Governo ao qual pertencia. Mas quando eu
sabia da informação sem precisar dele, ele dizia se era boa, me indicava
fontes, sempre me orientou. Isso é o nosso compromisso: ter a melhor informação
para passar para o público, e não simplesmente destacar essa informação sem o
esforço que ela exige. Essa matéria sobre a BR-150 eu levei cinco anos para
fazer. Quando publiquei, em 2002, era 1 bilhão e 100 milhões de dólares. É uma
estrada fantástica. Levei cinco anos porque não havia uma fonte que garantisse
que a informação era verdadeira. Mas fiquei ligado, nunca perdi a perspectiva.
Cada vez que aparecia alguma coisa, eu anotava. Tinha o meu dossiê da BR-150. O
meu livro sobre o Jari, que é o de que eu mais gosto – Jari: toda a verdade
sobre o projeto de Ludwig –, foi assim: eu recebi a correspondência
confidencial do General Ernesto Geisel com o Ludwig, e a pessoa que me deu essa
correspondência, que era íntimo do grupo Geisel, me disse: “Você não pode
divulgar por dez anos, porque é o prazo que eu acho que ninguém vai me
identificar como a fonte. Você topa?” Quando completou dez anos, eu fui para os
Estados Unidos com uma bolsa e escrevi o livro lá. Imaginei que fosse ter uma
grande repercussão, porque o Ludwig tratava o Geisel como um funcionário dele.
O “grande” Geisel, general prussiano, Ludwig tratava dando ordens. Mas o livro
não teve repercussão, mas foi um trabalho capaz de repercutir.
Quanto tempo você ficou nos Estados Unidos escrevendo?
Fiquei seis meses, com uma bolsa da Universidade da Flórida,
até escrever o livro e fazendo outras coisas; foi o melhor período para mim,
porque nunca tive isso no Brasil. É uma coisa interessante, porque Ludwig é um
ícone americano, era o maior milionário americano da época, e a Universidade
nunca fez nenhuma restrição. A bem da verdade, nunca saiu em inglês nos Estados
Unidos, mas saiu em português em 1984. Ganhei até o Prêmio Esso com parte do
material que tinha e usei numa reportagem. Era o modelo do grande projeto do
que era a participação estrangeira no Brasil. Aguentei dez anos. Jamais falhei
com minhas fontes. Você pode eliminar a fonte quando ela falha. Pode até
continuar com uma relação de amizade, mas elimina a fonte. Eliminei várias
fontes.
Mas também, em certos casos, não há um jogo de interesses da
fonte com o jornalista?
Na cobertura desse caso da penetração do narcotráfico
internacional no Pará, em Belém particularmente, que envolveu uma das mais
tradicionais famílias de lá com o principal representante do tráfico, chegou um
ponto em que eu estava revelando coisas tão explosivas, tão graves, que ouvia
muita coisa dos traficantes e não sabia se podia confiar neles. É muito
perigoso, mas era um jogo aberto, eles sabiam quem eu era e nenhum nunca
desmentiu. Mas sentia o peso do risco que estava correndo. E algumas
informações que recebia eu ligava para os meus colegas da editoria de Polícia,
nos jornais diários e dizia: “Eu vou te dar um furo”, e dava. Depois de certo
tempo, ninguém queria nem ouvir!
Os jornalistas não queriam ouvir a informação que você
tinha?
Não queriam! Mas quando houve a apreensão pela Polícia
Federal de uma tonelada de cocaína, veio todo mundo, até a TV Globo, para uma
entrevista com o delegado que tinha feito a apreensão.
Mas a Polícia não sabia do envolvimento dessas grandes
famílias?
Mas o problema com esse que estava envolvido é que o pai
dele era Secretário do Interior e Justiça, responsável pelas penitenciárias do
Estado; então havia o receio de se tocar nele. Porque há uma coisa gravosa no
Brasil: o bom policial sempre é punido porque ele atravessa a linha
demarcatória entre aqueles que estão acima de qualquer suspeita e aqueles que
podem ser presos. Então, todo policial tem receio de atravessar isso; daí a
impunidade dos poderosos. Os que atravessam invariavelmente são punidos porque
não respeitaram o código da elite brasileira, que é uma das piores elites do
mundo. Então, quando foi apreendida aquela quantidade de droga, todo mundo foi
para lá para a entrevista coletiva com o delegado. E o Jornal Pessoal era o
único que dava matérias sobre esse assunto há cinco meses, era o único! Ninguém
mais dava! E o delegado começou a falar. Quando terminou a entrevista coletiva,
que estava lotada, um dos colegas disse: “Lúcio, por que você veio a esta
entrevista coletiva? Não fizeste nenhuma pergunta!” E eu respondi: “É que eu já
sabia tudo o que o delegado ia falar. Agora vou ter uma conversa em off com ele
porque tenho algumas informações que eu acho que ele não tem e, certamente, ele
tem algumas que eu estou procurando e não tenho”. E esse colega disse: “Então
vamos ficar, porque agora é que vai ser bom”. Aí, eu olhei bem sério para ele e
disse: “Olha, não existe off coletivo. Off é jornalista e fonte. Mas, eu vou
criar o ‘off coletivo’ hoje aqui! Pode ficar todo mundo aqui, não tem problema!
Vou dar todas as minhas informações exclusivas, mas… tem que publicar! Só fica
quem se comprometer a publicar!”. Em dez segundos, foi todo mundo embora! E o
delegado, perplexo, me olhou e disse a seguinte frase, que ficou como um dos
momentos mais tristes da minha carreira: “Lúcio, eles são teus colegas?!” Eu e
o delegado ficamos dois minutos perplexos. O quê os impedia de ficar? Não havia
orientação do patrão, ninguém sabia que eu iria estar lá, ninguém sabia que eu
ia dizer isso! Por que não ficaram?! Foi o momento em que eu senti a covardia
do jornalista! Foi pura covardia. Medo! Aí as pessoas me perguntam: “Tu não
tens medo?” Eu tenho! Qualquer ser humano tem medo, mas não sou covarde. Às
vezes eu publico uma matéria e digo para mim mesmo: “Lúcio, tu és doido, por
que fizeste isso?” Não é nem pelo risco de morte, mas por perder uma velha
amizade porque se está escrevendo contra ele. E eu sempre sacrifiquei as minhas
amizades.
Você sempre sacrificou suas amizades?
Sempre! Se ele rouba, se fez alguma coisa contra o
patrimônio público, não quero ser amigo dele. Eu fui amigo do Jader Barbalho, e
hoje não sou. A nossa integridade é o que nos autoriza a abrir as portas do
poder. Nós não abrimos as portas do poder para fazer parte do poder, nós somos
o antipoder. O poder nos teme. Então as pessoas dizem assim: “Lúcio, você não
tem medo de morrer?” Eu tenho muito medo de morrer, sempre me defendi. Todas as
vezes em que sou ameaçado, eu reajo não gritando, pedindo apoio de fulano, não.
Eu quero saber de onde vem. Se, como jornalista, cubro o que acontece a
terceiros, tenho a obrigação de, como jornalista, cobrir a mim mesmo. Eu vou
atrás de saber quem está me ameaçando! E sempre descobri. A primeira ameaça
grave, grave, que recebi, foi em 1984. O Jader estava no Governo e eu estava
mostrando o início da corrupção dele como Governador. E comecei a ser ameaçado.
Até que uma ameaça – sempre por telefone, anônima – foi feita no O Liberal,
onde eu trabalhava na época, e o dono de O Liberal disse que ia mandar dois
seguranças me proteger. Eu disse que não queria, porque segurança foi feito
para matar bandido, não para evitar assassinato. Eu nunca tive segurança, nunca
andei armado! Minha arma é a informação! Descobri de onde vinha a ameaça,
liguei para o Jader e disse: “Jader, estou neste momento escrevendo uma carta
para o dono do jornal O Estado de S.Paulo, Júlio Mesquita Neto, dizendo que o
que me acontecer a culpa é sua, você é o mandante”. Aí ele disse; “Sabes que
não sou eu, não é?”. Eu disse: “Sei, mas é perto de você”. Aí ele parou e
disse: “Lúcio, se você mandar essa carta, será a minha ruína política”. Eu
disse: “Prefiro que seja a sua ruína política do que eu morrer”. Aí ele disse:
“Me dá 24 horas para eu apurar se realmente isso existe? Se é isso o que você
está dizendo.” “Dou”. Em 24 horas ele me ligou: “Lúcio, tu tens razão. Eu já
desfiz. Acreditas em mim?” Eu disse: “Acredito, mas vou checar”. E eu tinha uma
fonte que era o chefe da segurança dele. E fui com a fonte, que não tinha por
que me dar a informação. Ele estava se arriscando, porque era amicíssimo do
Jader… já morreu até, era da Polícia Militar. É uma coisa inexplicável: mesmo
na época do regime militar, determinadas pessoas só tinham a perder sendo
fontes, e eram! A pessoa quer se preservar, talvez acredite que há uma outra
vida, que há um céu, um inferno, ou quer preservar a sua imagem, ou tem algum
fundo de consciência. Ele disse: “É verdade. O chefe reuniu todo mundo e disse
assim mesmo: ‘Olha, estão ameaçando o Lúcio e eu já sei quem é! Vou dizer para
vocês o seguinte… ele está me criticando, mas ele é meu amigo e eu gosto dele.
Não interessa se ele vai me criticar. Eu apoio ele e corto o saco de quem
ameaçá-lo!'”.
O Jader falou desse jeito?
Foi. E eles tinham um respeito enorme por ele: “O chefe
estava bravo”. Então, por que o Jader fez isso? Porque ele me respeita. Eu sou
o único amigo que não foi para o poder com ele. E ele ofereceu todos os poderes
para mim quando foi eleito pela primeira vez, em 1982. Porque ele achava que a
minha cobertura tinha ajudado a campanha dele. Ajudou porque ele estava
vencendo, não foi por minha causa. E eu recusei todos. “Jader, eu estou do
outro lado. Se tu errares, eu vou denunciar”. Aí ele abriu a porta onde
estávamos reunidos, chamou o Roberto Ferreira, futuro Secretário da Fazenda,
que é o mais importante, e nosso amigo em comum, e disse: “Roberto, diz para o
Lúcio o que eu disse para ti antes de ele chegar”. “Tu me disseste que mesmo
que oferecesse mundos e fundos, ele não ia aceitar nada”. “É isso que eu quero,
Lúcio, que tu sejas o meu crítico”. Ele disse isso.
“Para mim, a verdade são os fatos. Se a pessoa gosta de mim
ou não, se sou de direita ou de esquerda, isso nunca me interessou. Se estou
dizendo a verdade, é o que interessa. A verdade é uma construção cuja ossatura
são os fatos, e é isso que eu quero saber: os fatos!”
No fim, a atuação dele foi decepcionante…
Ele destruiu todas as esperanças, inclusive a minha. E eu já
disse isso várias vezes. Se você pegar o Google e fizer uma pesquisa “Lúcio
Flávio Jader Barbalho” você vai ver. Em 1984, Jader era líder do grupo
autêntico do PMDB, era considerado um homem de esquerda, quando eu comecei a
criticá-lo. As pessoas ficavam horrorizadas porque eu estava fazendo o jogo da
reação, que eu não estava entendendo que era oposição. Eu disse: “Não
interessa, se está roubando, está roubando! Se tem gente roubando no Governo
dele, está roubando. Cada denúncia que se fizer, ele tem que responder”. Aliás,
no segundo Governo, ele fez isso. Cada denúncia ele mandava apurar. Se a
apuração era boa ou ruim, é outra coisa, mas ele mandava apurar. Ele aprendeu
que, mesmo sem corrigir os vícios do passado, tinha que cuidar da imagem. Mas a
imagem já estava comprometida, totalmente desgastada. Ele não era mais o mesmo
personagem de quando assumiu o Governo e não foi nunca mais. Toda vez que se
fala em desvio de dinheiro público, as primeiras lembranças são Maluf e Jader
Barbalho… É um estigma e vai ficar para sempre. No fundo, ele é uma pessoa que
sabe que eu faço jornalismo. Não faço mais do que isso. Às vezes, o PT aplaude
minhas iniciativas, às vezes me detrata, me ataca, me ofende. Eu estou na
minha, não quero apoio de ninguém. Um amigo meu dizia: “Lúcio, tenha pelo menos
o apoio de um grupo, tu briga com todo mundo, ninguém vai te apoiar”.
Infelizmente, faz parte. Não temos respeito à diversidade e à crítica. Quem é
mais adversário da crítica do que o Lula? O Lula não aceita críticas! É um
homem hábil, político, de um carisma fantástico e consegue criar uma imagem de
quem aceita críticas, mas não aceita. Quem aceita? Eu posso dizer que eu
aceito, porque eu publico no Jornal Pessoal, na íntegra, todas as cartas. Já
publiquei cartas ofensivas, na íntegra. Naturalmente respondo, e todo mundo
sabe que eu vou responder e vou manter a polêmica até o fim. Quem for podre que
se quebre. Eu sou daqueles que dão um boi para não entrar numa polêmica, mas
dão uma manada para não sair. Para mim, a verdade são os fatos. Se a pessoa
gosta de mim ou não, se sou de direita ou de esquerda, isso nunca me
interessou. Se estou dizendo a verdade, é o que interessa. A verdade é uma
construção cuja ossatura são os fatos, e é isso que eu quero saber: os fatos!
Os leitores do Jornal Pessoal já deveriam estar acostumados
com suas denúncias e com o que acontece na região. Mas, como é, efetivamente, a
reação de seu leitor? Eles acreditam no que você escreve ou acham que você é
alguém que está procurando problemas, sarna para se coçar?
Eu já fui agredido fisicamente três vezes. Essa já é uma
resposta. Como incomodo! Eu faço uma alegoria com a história da Branca de Neve.
O Jornal Pessoal é um jornal pequeno, sem cor, sem mulher nua, sem coluna
social, maçudo, o antijornal moderno ou ‘pós-moderno’, seja lá o que for. Tem
dois mil exemplares de tiragem, uma tiragem pequena, e as características dele
são quase de um jornal amador. Mas eu sempre lembro que comecei a fazer o
Jornal Pessoal quando tinha 21 anos de profissão, tinha trabalhado em algumas
das principais empresas do Brasil, tinha sido testado em inúmeras situações;
era um jornalista amadurecido. Sob aquela capa de jornal amador, há um jornal
limpo, altamente profissional, que já mostrou que sabe fazer jornalismo. Então,
o que o Jornal Pessoal publica incomoda por ser único. Não é por ser grande,
nem por ser nada, é por ser único. Uma boa parte daquelas informações e
análises não aparece em nenhum outro lugar e não é informação irrelevante.
Então, a lenda da Branca de Neve é a madrasta que tem inveja e mandou a Branca
de Neve para o meio da floresta, mandou o caçador matá-la, e o caçador, com
pena, deixou-a ficar lá no meio da floresta. E a madrasta pergunta para o
espelho mágico: “Existe alguma mulher mais bonita do que eu?” e o espelho, que
era a verdade, dizia “No meio da floresta, sozinha, coitada, a Branca de Neve”.
Mal comparando, é mais ou menos isso que o Jornal Pessoal é. As pessoas que
foram denunciadas, focalizadas em situação desfavorável, ficam irritadíssimas,
revoltadas com isso. Mas não respondem, porque ali está a verdade! O Jornal
Pessoal já foi matéria de capa do Los Angeles Times, já foi tema de editorial
do Washington Post, já foi matéria de capa do Le Monde. Nenhum jornal da minha
região consegue isso, e poucos no Brasil. Por quê? Porque ele é único. É um
jornalismo que não abre mão de dizer a verdade, que não tem compromisso com
ninguém, com amigo, não tem anunciante, não aceita publicidade, só se mantém
porque cumpre essa função. Acontece é que eu sou o jornal! Então, como Belém é
uma cidade pequena – tem 1 milhão e 200 mil habitantes –, eu fico
permanentemente em situação constrangedora porque aqueles a quem ataco eu me
encontro com eles no dia seguinte. Cruzo com eles e alguns não conseguem se
controlar e partem para cima de mim. Ou me ofendem ou me agridem fisicamente, o
que provocou a única mudança que fiz na minha vida: eu evito sair à noite.
Também estou sempre rastreando as ameaças potenciais. Eu faço uma matéria de
determinado assunto, continuo ligado àquilo para saber se vem alguma coisa do
outro lado. E como conheço bem a cidade onde vivo, as pessoas, posso fazer
isso. Não vou até aquele determinado lugar porque ele frequenta. Ao contrário
do que as pessoas pensam, eu não sou um inconsequente, só que não consigo
reprimir a urgência de publicar as coisas que apuro. É um compromisso que tenho
e publico independentemente dos resultados. O Jornal Pessoal se tornou um
símbolo. Para se ter uma idéia, um dos setores que eu mais cubro é a Vale. Os
jornais de hoje estão dando o balanço trimestral da Vale, mostrando que o lucro
caiu 57% e vários números que vêm no press-release. Até domingo ainda vai sair
matérias sobre o tema porque tem alta significação para o País. Não sei por que
demorou tanto para publicarem sobre esse relatório… Mas eu tenho certeza de que
quando eu voltar para Belém e for escrever sobre isso, vou escrever uma matéria
que não vai ter igual em nenhum lugar. Ah, eu tenho a presunção de ser melhor
que todo mundo? Não! Eu sou igual a qualquer um dos que estão escrevendo. Não é
falsa humildade, não. É porque eu tenho a audácia de fazer o que eles não
fazem. Eu nunca escrevo sobre os press-releases da Vale, embora sejam belos
press-releases. Eu vou no balanço! O balanço me exige três, quatro, cinco, oito
dias. Mas eu vou passar esse dias lendo o balanço. E eu sei ler balanço.
Estudei bastante Contabilidade, conversei com as maiores autoridades em
balanço, hoje sou um analista de balanços. Analiso balanços desde 1979, quando
descobri que os balanços das empresas, mesmo naquela época arcaica e com as
manipulações todas que as empresas podiam fazer, eram uma boa fonte. Eu leio
tranquilamente qualquer balanço, tanto na contabilidade nacional, quanto na
contabilidade americana, pois a Vale adota as duas contabilidades. E vou
escrever uma matéria assim porque eu li o balanço e não tenho medo. Eu não
tenho compromisso, não recebo dinheiro da Vale, que é a maior anunciante do
País! E eles nem precisavam anunciar porque o produto dela não é de varejo! É
para comprar a imprensa mesmo!
Você acredita que a Vale anuncia para comprar a imprensa?
Para comprar a imprensa, claro. A imprensa não critica a
Vale! Mas você vê a importância: todas as pessoas do setor sabem que eu conheço
razoavelmente bem a economia mineral, conheço muito contabilidade, então o
circuito espera por essa matéria; sabe que eu vou escrever e que essa matéria
não vai ser igual às outras. E eu já tenho na cabeça praticamente tudo que vou
escrever sobre a Vale e que não está em nenhum lugar. E vou dizer sinceramente:
eu gostaria de ler isso em outro jornal, porque me desobrigaria desse trabalho,
que é estafante. Infelizmente, ninguém faz! O Jornal Pessoal está no clipping
da Vale! Eu sei porque conheço quem faz o clipping. Em 2007, eu estou em casa,
às nove horas da noite, me liga o chefe da Comunicação Social da Vale dizendo:
“Lúcio, estou aqui num jatinho, estava indo para São Luís, onde amanhã às oito
horas da manhã tem uma reunião com todo o pessoal de Comunicação Social da
Vale, e recebi agora um aviso do Roger Agnelli…”, – que era o Presidente da
Vale, foi o que ficou por mais tempo no cargo, dez anos – “…e ele está furioso
contigo, e me ligou do jatinho, porque ele estava indo do Rio para Belo
Horizonte, dizendo que tu dizes que ele é um financista, que ele impôs sua
visão financeira sobre a Vale, que é representante de banqueiro, do Bradesco…
mas que não é nada disso. Ele gritava que ele é um homem honrado, que ele dá
todos os jetons dele para instituições de caridade, ele é um homem que tem
visão social. Ele exigiu que eu tome o café da manhã contigo amanhã.” E eu
disse: “Roger, eu posso falar isso para ele por telefone”. Mas ele disse: “Não!
Eu quero que você vá lá! Converse com ele no café da manhã! Então estou te
ligando a esta hora para saber se tu podes ir às seis horas da manhã para eu
poder estar às oito em São Luís”. Eu disse: “Não tem problema, eu vou. Vou te
dizer exatamente isso.” E eu fui para o café da manhã. Quando cheguei, era um
ultracafé da manhã, um negócio pantagruélico. Me recebeu o Fernando Thompson,
diretor de Comunicação e Imprensa da Vale, que até já saiu de lá. Eu disse:
“Fernando, me sinto constrangido com um negócio desses, não precisava gastar
dinheiro da empresa com isso”. E ele respondeu: “Não, ele quer”. “Então, por
que desceu das suas tamancas para se preocupar com um jornalzinho de
província?” Porque aí, eu acho, é a vaidade. É o apreço que o cara tem pelo
próprio nome. A minha opinião era importante para ele. Então, você vê que o
Jornal Pessoal tem um valor simbólico. É o valor daquele garoto da lenda que
diz “O rei está nu!” Para todo mundo, o rei está vestido… mas o rei está nu e o
garoto não fez mais do que dizer a verdade. Eu me surpreendo às vezes com essas
situações porque o Jornal Pessoal só faz isso e nada mais do que isso. Se ele
incomoda tanto ou se provoca admiração, é de se perguntar que jornalismo nós
estamos fazendo hoje no Brasil.
“A minha luta não é só para apurar os fatos e manter o
jornal circulando, mas resistir fisicamente. Toda essa preocupação dos outros
só tem um motivo: o Jornal Pessoal é acreditado.”
O Jornal Pessoal cobre essa lacuna e passa essa
credibilidade aos leitores?
Acho que sim. Tenho várias manifestações de que passa essa
credibilidade, e ela é posta fora de dúvida. O que alguns questionam muito é
que o jornal está fazendo jogo de fulano, jogo se sicrano, que o jornal é de
direita, ou de esquerda, que eu sou tendencioso, mas ninguém contesta os fatos.
Como eu publico as cartas na íntegra, a melhor maneira de avaliar o jornal é
ver aquelas cartas. Não são editadas, nunca foram. Eu acho que o maior
patrimônio do jornal é que se o Jornal Pessoal disse é porque é verdade. Agora,
é uma verdade que incomoda fulano, uma verdade que agrada sicrano, uma verdade
que fulano não aceita, uma verdade não posta em dúvida, mas posta na
controvérsia. Por que essa verdade? Não deveria fazer de outra maneira? Então,
o único patrimônio do Jornal Pessoal é a credibilidade. Com tão poucos
recursos, e o fato – que é importantíssimo – de que a maior parte do meu tempo
eu passo me defendendo na Justiça. E não é por outro motivo que dos 33
processos que já sofri 19 foram promovidos pelo Grupo Liberal. Acho que nunca
na história, ouso dizer, na história universal, um grupo jornalístico perseguiu
tanto um jornalista quanto O Liberal me persegue, sem nunca ter publicado nada
nos seus próprios veículos, sem nunca ter contestado de público, sem nunca ter
exercido seu direito de defesa sobre o que eu publiquei. Qual é o esforço de me
processar tanto? É me tirar da minha apuração. Eu não escrevi a matéria que eu
queria escrever sobre a eleição do primeiro turno porque não terminei a análise
dos dados. A análise dos dados me levou três dias, eu tive de viajar para
receber o prêmio (Prêmio Especial Vladimir Herzog de Anistia e Direitos
Humanos) e não podia escrever com base só naquelas informações que tinha, da
maneira como eu queria escrever, que é mostrar que o Pará não é esse Estado
desinteressante, que não aparece nas pesquisas nacionais, que não é
considerado. Mas eu queria mostrar que é um Estado importante, mesmo quando
numa eleição dessas, tão viciada. Mas eu não pude porque não terminei o processamento.
Se eu conseguir terminar, na volta, antes da próxima edição, eu escreverei.
Porque às vezes dizem assim: “Lúcio deve estar comprometido, porque ainda não
escreveu sobre aquele tema que todo mundo está escrevendo”. Mas eu não cheguei
à verdade e não tem jeito de me adiantar. O que acontece muito é que eu escrevo
o jornal em dois dias; é o único período que eu tenho para escrever o jornal.
Nesses dois dias eu trabalho como um cavalo. Já trabalhei uma semana, duas
semanas, dois meses sobre aquele assunto, e levo dois dias para escrever o
jornal inteiro. Com isso, cometo erros de digitação, às vezes até de
concordância, pela pressa, pelo cansaço e exaustão. Por que querem me levar à
exaustão? Para que Jornal Pessoal desapareça. Não porque me mataram, não porque
fecharam violentamente o Jornal Pessoal, mas porque eu não aguentei. A minha
luta não é só para apurar os fatos e manter o jornal circulando, mas resistir
fisicamente. Toda essa preocupação dos outros só tem um motivo: o Jornal
Pessoal é acreditado.
Você falou que o Jornal Pessoal imprime dois mil exemplares.
Ele é todo vendido?
De 60 a 70% são vendidos nas bancas. Ele é o jornal que mais
vende em bancas em Belém. Mas não é nenhuma vantagem, porque a maioria dos
jornais vende, em grande parte, por assinaturas e ha uma coisa que é específica
de Belém, que é o jornaleiro. O principal veículo de venda de jornal é o
jornaleiro; segundo é o assinante, e em último a banca. Então, como o Jornal
Pessoal só vende em banca, é o que mais vende em banca, mas não é nenhuma
façanha.
Você acha que consegue fazer o jornal por mais quanto tempo?
Toda vez eu me pergunto: “Vou fazer o próximo?” Minha dúvida
é se eu vou fazer o próximo. Não é demagogia, é que eu realmente não sei se vou
conseguir. Às vezes eu termino em total exaustão, porque faço o jornal, vou
para a gráfica editar, etiqueto, vou ao correio despachar o jornal, distribuo
uma parte pessoalmente e tenho que ficar permanentemente ligado aos processos
judiciais, que tomam às vezes 80% do meu tempo. Então, não sei se vou fazer o
próximo.
E essa censura de toga que ameaça tanto a imprensa hoje em
dia?
A Justiça do Pará serviu de instrumento a todos aqueles que
me processaram. Mas a partir do momento em que, além de me defender, eu
mantinha a minha opinião crítica da Justiça, de continuar acompanhando a
Justiça, eu passei a ser o inimigo dos magistrados. Eles não apenas são os
intérpretes e os instrumentos dos que me perseguem, mas passaram a me perseguir
também. Eles achavam que eu devia me tornar subserviente, ou pelo menos um
aliado, porque eu precisava das sentenças deles. Mas eu nunca fiz isso e
continuei crítico, fazendo com eles o que faço com todos os outros. Passou a
ser uma questão quase de honra deles, do espírito corporativo, me quebrar, e é
o que eles têm feito. Eu tenho publicado denúncias terríveis sobre a Justiça,
inclusive que provocaram manifestações do Conselho Nacional de Justiça, da Dra.
Eliana Calmon, enquanto ela era Presidente do Conselho. Matérias que eu fazia
lá repercutiam no Conselho. Chegou a um ponto em que eu fiz carta-aberta para a
Presidente do Tribunal, falando das irregularidades, mostrando, e ela nunca
respondeu. Acho isso um absurdo, porque o problema da Justiça é que os
magistrados hoje sentem como se vivessem num mundo à parte, no mundo da
fantasia; eles se consideram cada vez mais acima do cidadão. As custas são
proibitivas. Entrar com um agravo de instrumento, no Estado do Pará, custa R$
1.200,00 iniciais! O Juizado Especial, que foi feito para acelerar a tramitação
dos processos, hoje tem audiência para daqui um ano ou dois.
Congestionadíssimo. Mas não é só um problema de rito, é um problema da ética,
do exercício da Justiça. Um juiz, o Dr. Amilcar Guimarães, me ofendeu no blog
dele! Me ofendeu! E não teve medida nenhuma contra ele. Um outro juiz federal
queria me impedir de falar sobre um assunto de interesse público, que era a
malversação pelos Maioranas, donos do Grupo Liberal, de dinheiro dos incentivos
fiscais. Me ameaçou de prisão em flagrante, de uma multa extorsiva, e eu reagi
na hora. Disse que não ia cumprir a ordem dele e, cinco dias depois, ele voltou
atrás porque teve uma repercussão inclusive internacional, ele estava violando
a Constituição! Estava agindo com uma “justiça” de um país mais selvagem,
porque juiz não toma iniciativa. Eu não era parte no processo que ele estava
julgando e nenhuma das partes pediu alguma coisa contra mim, e nem podia. Mas
ele tomou, de ofício, uma iniciativa dessa? Então, isso mostra o grau de raiva
que as pessoas têm com a verdade. Então a verdade está proibida, a verdade é
perseguida em plena democracia, no período mais longo de democracia da história
republicana brasileira.
“É uma violência que não se traduz apenas em mortes, em
assaltos, ou em qualquer forma de violação dos direitos humanos. Ela se traduz
na alma, que faz o pânico se refletir nos olhos. Porque a vida não vale nada na
Amazônia.”
Certas regiões do Brasil são muito perigosas para quem quer
lidar com a verdade. Existe um poder paralelo, compartilhado entre os poderosos
locais, que não presta contas ao Governo Federal!
Veja o caso do Chico Mendes, tão escrito e tão abordado. Não
houve nenhuma conspiração internacional maior para matá-lo. Foi uma briga de um
senhor feudal em Xapuri contra ele. Esse senhor feudal se considerava dono da
vida e da morte naquela área. E matou. Ele não tinha ideia do que poderia
acontecer com esse fato. Ele acha que pode matar, e mata, como um traficante de
morro do Rio de Janeiro, que tem poder de vida e morte na sua “jurisdição”. Ele
é tudo! O que está acontecendo no Brasil é isso, esses poderes que são
ilimitados, que não têm conexão nacional, seja que tipo for de conexão, com o
Governo Federal, com os empresários, com multinacionais, não têm, é um poder
localizado. E esse poder às vezes comete atos do qual não ha avaliação correta.
Pode acontecer de um cidadão, prejudicado por um artigo, mandar me matar sem
haver conspiração nenhuma, não tem ninguém atrás dele, é ele só. É possível.
Mas o que é mais grave é o caso dos poderes institucionais. Esse é o mais
grave. Estou falando do poder não personificado. O conjunto dos elementos que
integram o poder. Logo depois de eu receber o Prêmio Herzog, uma pessoa me
perguntou: “Agora ficou melhor a situação para ti lá no Pará?” e eu disse: “Não
necessariamente”. Eu não pude, por exemplo, em 2007, ir à Nova York receber no
Waldorf-Astoria o Prêmio do CPJ (Prêmio Internacional da Liberdade de Imprensa
concedido pelo Committee to Protect Journalists). Não pude ir, mandei minha
filha. O CPJ é a maior entidade de jornalistas do mundo! Sim… mas lá, no
sertão, ninguém quer saber. O Guimarães Rosa tem uma frase que define o que é o
sertão, independentemente do fator geográfico. Diz assim: “Ah, o Sertão… Deus,
se for lá, que vá, mas armado”. (risos) Nem Deus tem garantia de que não vai
acontecer alguma coisa com ele. A violência na Amazônia é uma coisa brutal, e
não é de hoje. É desde as primeiras estradas. A estrada de rodagem é o fato
mais traumático na história da região. É a abertura do vandalismo, da barbárie
e da destruição da Amazônia. Em 1982, atravessando de Xambioá para São Geraldo
do Araguaia, no Rio Araguaia, entre o atual Tocantins e o Pará – área da
guerrilha do PCdoB –, eu vi a violência no rosto das pessoas, no olhar das
pessoas. O medo. As pessoas com medo! E quando nós estávamos atravessando, era uma
comitiva, o Senador Teotônio Vilela, a Deputada Federal Cristina Tavares, do
PMDB de Pernambuco, e o Deputado Federal, na época, Jader Barbalho, para ver os
dois padres franceses acusados de insuflar os posseiros a atacar as tropas
federais. Quando nós atravessamos o Araguaia, do outro lado estava um PM, de
fuzil embalado, que exigiu a nossa identificação. O Senador Teotônio Vilela
tentou reagir com aquela sua indignação legendária, ele dizia: “Eu sou Senador
da República!” Ele tremia de indignação! “Eu não estou entrando num País
estrangeiro, é o meu País!” Impassível, com o fuzil embalado, o PM dizia: “Me
mostre a sua identidade”. Aí eu disse: “Senador, nós não estamos num país
estrangeiro, mas é como se fosse. Mostre a sua identidade, aceite isso como um
preço a pagar para não correr um risco, porque o senhor não sabe como vai ser”.
Ele teve de se identificar, e nós todos também. O Teotônio levou um tempo para
se controlar. Você vê a indignação da dignidade humana, que ali não interessa.
Ali é a violência. Naquela travessia, nós já tínhamos, naquela época, seis anos
do fim total da guerrilha. Mas continuava a ter olheiro bate-pau na travessia.
Toda gente que atravessava o Araguaia era espionada. Quando voltamos para
Xambioá para pegar o avião, já íamos embarcar, quando uma pessoa saiu do mato e
disse: “Tirem toda essa gasolina daí que colocaram açúcar na gasolina”. Sabe
que o açúcar na gasolina faz o avião cair; mal decola, ele cai. E tivemos que
tirar toda a gasolina do avião, para não correr o risco. Podia ser verdade ou
não, mas fizemos por segurança. Essa violência na Amazônia é terrível. É uma
violência que não se traduz apenas em mortes, em assaltos, ou em qualquer forma
de violação dos direitos humanos. Ela se traduz na alma, que faz o pânico se refletir
nos olhos. Porque a vida não vale nada na Amazônia. Agora mesmo, uma
instituição mexicana, na semana passada, divulgou um estudo sobre as 50 cidades
mais violentas do mundo e Belém está em quinto lugar, pelo critério de
homicídio per capita. É uma coisa espantosa, assustadora. Belém é mais violenta
do que Bogotá, a capital da guerra civil colombiana. Não aconteceu na Amazônia
a Revolução Francesa. Ainda estamos esperando que a Revolução Francesa diga
sobre a dignidade do ser humano, liberdade, igualdade e fraternidade, que o
homem tem direito a sua vida. Por isso que, no meu discurso, eu disse que tenho
o direito de viver. Quando morreu o Paulo Fonteles – por causa dele eu criei o
Jornal Pessoal –, no enterro do Paulo, na hora em que ele estava sendo enterrado,
havia outro deputado estadual, João Carlos Batista, que estava ameaçado. Éramos
muito amigos e eu fiz uma brincadeira de humor-negro premonitória. Eu disse:
“Batista, sobe aqui no túmulo para a gente bater uma foto tua que, daqui a
pouco, és tu”. Eu me arrependo disso, porque eu não devia ter feito isso. A
gente não pode brincar com a morte. Mas para você ver como era uma morte
anunciada, um ano e meio depois, Batista morreu assassinado na entrada da casa
dele, diante do filho e da mulher. Então, o meu ato de criar o jornal foi um
ato de indignação quando vi o corpo do Paulo Fonteles, porque eu havia
conversado com ele três dias antes, longamente… foi morto a trinta quilômetros
de Belém. Um crime político terrível porque abriu as portas para a violência
indiscriminada. E ninguém queria publicar as informações que diziam quem mandou
matar, quem organizou o crime, quem executou, tudo. Então acho que a nossa
atitude de resistência tem que ser essa: a verdade. Nós somos paladinos da
verdade, defensores da verdade. E ela é um dever de ofício, não é um elemento
distinguidor do herói e do covarde. Se você é jornalista, você é um sacerdote
da verdade. E se você não é o sacerdote da verdade, não é digno de ser
jornalista.
Para finalizar, você trabalhou no Estadão nos anos 1970.
Fale um pouco desse período. Que matéria você destacaria?
Trabalhei muito com o Maurício Azêdo na época do Estadão. Em
1973, fizemos uma matéria incrível sobre a manipulação dos índices de inflação
pelo Delfim Netto, numa época em que o jornal devia um favor enorme para o
Delfim porque ele conseguiu nacionalizar a dívida em dólar do Estadão, mas… não
teve jeito, a matéria era tão bem feita que foi publicada. Havia um censor na
Redação, mas tinha o seguinte: muito militar odiava o Delfim. O pessoal do Rio
Grande do Sul, da Agricultura, de vez em quando ia lá conversar comigo, saía de
Porto Alegre para ir conversar, dando dados contra o Delfim. Eles odiavam
porque o Delfim estava liquidando os frigoríficos nacionais para vender para os
frigoríficos internacionais. Eu acho que por causa disso, o censor não
censurou. No dia seguinte, o Delfim mandou um recado pelo jornalista Robert
Appy, que era o segundo da Editoria de Economia, depois do Frederico Heller,
que era o editor. Um austríaco, o outro francês. Appy tinha sido maquis da
Resistência Francesa na Segunda Guerra. Mas aí ele passou para o outro lado e
ficou no esquema do Delfim. Tínhamos terminado de fechar o jornal, era
meia-noite mais ou menos; estávamos eu, o Raul Bastos e o Rossi, naquele
pós-coito, cigarrinho… (risos), a edição fechada. Aí, chega o Appy. Tira o
paletó, bota na cadeira, senta, uma cena cinematográfica, e diz: “Acabei de
chegar de Brasília, o Delfim conversou comigo e disse o seguinte: ‘Já acabamos
com repórter. Já acabamos com donos de jornais. Já acabamos com editor. Agora
vamos acabar com o pauteiro'”. E eu é que tinha feito a pauta da matéria. Ficou
aquele silêncio, todo mundo esperando minha resposta. Eu disse: “Appy, foi o
maior elogio da minha vida. Pode dizer para o Delfim. O maior elogio que alguém
já fez para mim você acaba de fazer!”. Appy olhou, levantou, pegou o paletó,
vestiu novamente, parou do meu lado e disse: “Menino, você tem razão”. E foi
embora. Quer dizer, ainda havia dignidade dentro do Appy, o ex-maquis, um cara
que tinha lutado contra o nazismo. Estava no esquema, mas a consciência
continuava viva nele. Esse é o elemento mais precioso do humano, ele é
imprevisível.
Texto e imagem reproduzidos do blog: doispontosblog.wordpress.com
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