CAPA DA TIME: a escolha do homem do ano é uma das formas de
a revista pautar o debate político e social nos Estados Unidos/Divulgação
Publicado originalmente no site da revista Exame, em 2 dez 2017
Os novos donos da Time, um ícone do jornalismo
O futuro da pioneira do moderno jornalismo de revistas está
entre uma editora que não liga para seus principais títulos e empresários
conservadores
Por David Cohen
Há dois grandes temores na venda da editora de revistas Time
para a rival Meredith, um negócio de 2,8 bilhões de dólares fechado esta
semana.
O primeiro temor é que a matriz da era das revistas
modernas, a empresa que mudou a forma de fazer jornalismo, desapareça. O
segundo temor, ao contrário, é que seu vigor seja utilizado como motor de
propaganda das ideias conservadoras dos irmãos Koch, que emprestaram 650
milhões de dólares para a concretização da compra.
Obviamente, dois temores contraditórios não podem se
realizar ao mesmo tempo. Mas isso não impede que a ansiedade de cada um dos
cenários se some à sua oposta.
Foi por isso que o clima, no auditório em que funcionários
da Time ouviram explicações sobre o negócio na segunda-feira, 27 de novembro,
foi descrito como fúnebre. Um dos empregados chegou a confrontar o
executivo-chefe da Time, Rich Battista, perguntando-lhe quanto ele levaria em
dinheiro pelo negócio.
Battista, que está no cargo há pouco mais de um ano, não
respondeu, mas de acordo com documentos entregues a autoridades regulatórias,
ele pode levar 15 milhões de dólares para casa (sua saída é uma das poucas
certezas sobre o futuro da Time).
O pano de fundo para a venda da Time é a decadência da
empresa de 94 anos. Em 1923, quando os jovens Briton Hadden e Henry Luce, dois
editores do jornal da universidade Yale, se juntaram a dois colegas e lançaram
a Time, assentaram as bases de uma revolução no estilo de fazer jornalismo.
Hadden, especialmente, tinha uma visão ousada para a época.
Para ele, jornalismo era importante, mas também tinha que ser divertido. Hadden
foi o principal responsável por um estilo que combinava seriedade ao prazer de
ler. E que, nas décadas seguintes, fez escola no mundo inteiro – influenciando
inclusive revistas brasileiras, como EXAME.
A Time nasceu num tempo em que as pessoas tinham menos
tempo. Sua proposta era ser uma leitura breve, agradável, informativa e
formativa. Calcava-se na cobertura de pessoas, o que deu origem a um jornalismo
de negócios diferenciado, anos depois, com a revista Fortune, e também a
revistas especializadas em celebridades, esportes e cultura.
Pois são justamente esses pilares – sobre os quais a Time
construiu um império – os mais ameaçados pelo negócio com a Meredith. Sua crise
começou quando as pessoas passaram a ter ainda menos tempo, e começaram a
migrar para os meios digitais. As principais revistas da Time Inc. não souberam
se adaptar à nova era.
Em 1989, a fusão da Time com a Warner pareceu uma solução.
Mas o casamento da TV com o meio impresso nunca chegou a se consumar por
inteiro e em 2014 a Time foi expurgada da companhia. Desde então sua crise se
acentuou. Só nos nove primeiros meses deste ano, a receita da Time caiu 9% em
relação ao mesmo período do ano passado, para 2 bilhões de dólares.
Um nicho global
Essa debilidade tornou a Time um alvo mais fácil. Não foi a
primeira vez que a Meredith tentou comprar a Time. Em 2013, as duas empresas quase
chegaram a um acordo. O negócio só não foi para a frente por falta de acordo
justamente sobre as quatro publicações mais fortes da Time: as revistas Time,
Sports Illustrated, Fortune e Money.
Para a Meredith, os pilares da Time representavam as âncoras
da Time. O que lhe interessava eram os títulos de bem-estar e família, como
Real Simple, Southern Living, Cooking Light e Food & Wine. Estes, sim,
casam bem com o portfólio da Meredith, completamente baseado em família e
interesses femininos – títulos de jardinagem, cozinha, parentagem.
Essa fórmula, iniciada em 1902 com uma revista de
agricultura, foi o que permitiu à Meredith sobreviver em meio à revolução
digital que tanto afetou o jornalismo impresso. Na década passada, em um curso
para executivos de meios de comunicação em Stanford que eu assisti, a Meredith
era apontada como caminho a ser seguido: a aposta em conteúdos de nicho lhe
permitia construir catálogos, conhecer seus leitores como ninguém… e usar essas
informações como atrativo para anunciantes.
Por esta lógica, a aquisição da Time (ou melhor, da parte da
Time que tem a ver com públicos de nicho) é uma jogada de mestre – um “momento
transformativo”, como enfatizou Stephen Lacy, o executivo-chefe da empresa,
numa conversa com investidores na segunda-feira.
Não é que a Meredith esteja buscando algo que ainda não
tenha. O que ela quer é ter mais daquilo que ela já tem. O nome do jogo é
escala.
Como disse Lacy, o objetivo é tornar-se “uma companhia líder
em conteúdo e marketing com um portfólio sem paralelo de marcas de mídias
nacionais, com um altamente lucrativo negócio de televisões locais”. Trata-se
de transformar-se numa companhia de nichos – mas tantos nichos que acabem
abarcando tudo.
Os investidores acharam os argumentos de Lacy bastante
convincentes: as ações da Meredith subiram 11%, para 67,55 dólares a ação.
Por mais que fizesse sentido, porém, a Meredith não tinha
cacife para engolir a Time. As duas empresas são praticamente do mesmo tamanho.
E ainda havia a questão dos títulos de jornalismo geral.
O quebra-cabeças era o seguinte: a Meredith queria comprar
um trem, jogar fora a locomotiva e ficar com os vagões. Mas como pagar pela
locomotiva? E o que fazer com ela? Foi aí que entraram os irmãos Koch.
O fator Koch
Charles e David Koch comandam as indústrias Koch, um
conglomerado industrial que inclui refinarias de petróleo, empresas de energia,
fertilizantes e papel. Trata-se da segunda maior companhia privada dos Estados
Unidos, atrás da Cargill, com faturamento anual de 100 bilhões de dólares,
segundo a revista Forbes.
Além de bilionários e filantropos, os irmãos Koch são
especialmente ligados à política. São conhecidos como kingmakers (fazedores de
reis) do Partido Republicano – embora tenham se oposto à ascensão de Donald
Trump e, como se viu, perdido a parada (há indícios, no entanto, de que as duas
partes já estão se entendendo, com Trump apoiando iniciativas caras aos Koch,
como isenção de impostos para empresas e desinteresse por medidas de contenção
do aquecimento global).
Os Koch entraram na história da venda da Time porque eles
cobriram a diferença que faltava para compra da empresa. A Meredith só
conseguiu chegar ao valor do negócio – 1,8 bilhão de dólares, mais 1 bilhão de
dívidas da Time – graças ao crédito de 650 milhões de dólares dos Koch.
Ora, se em 2013 o negócio não fechou por causa das revistas
de interesse geral e agora os números bateram graças aos Koch, é tentador
chegar à conclusão de que os Koch bancaram a compra das revistas Time, People,
Money, Fortune e Sports Illustrated.
E é daí que vem o temor de uma ingerência conservadora num
ícone do jornalismo americano – que, embora longe de sua força tradicional,
ainda tem uma boa reserva de prestígio, especialmente com as edições de Pessoa
do Ano da Time, a lista das 500 maiores empresas da Fortune, a edição de maiôs
da Sport Illustrated e a escolha do homem mais sexy da People.
Os temores cresceram com as declarações de que a Meredith
ainda não tem planos para essas publicações. Lacy disse apenas que esses
títulos são “marcas icônicas que estão com desempenho abaixo de seu potencial”.
O plano geral é promover sinergias que economizem até 500
milhões de dólares em custos nos dois primeiros anos de união das empresas. Mas
os carros-chefes da Time não apresentam sinergias com a Meredith. Ao contrário:
representam a necessidade de um ajuste para imprimir títulos semanais, uma
logística que não é barata.
Dentro desse plano geral, já está claro que a Time Inc. vai
sofrer cortes. Segundo fontes do jornal Financial Times, “cortes significativos”.
Para diminuir as suspeitas de que os Koch teriam influência
sobre o jornalismo da Time, porta-vozes tanto da Meredith quanto das Indústrias
Koch afirmaram que os Koch não terão nenhuma influência sobre as publicações.
“Os Koch não têm nenhum plano de assumir um papel ativo na companhia
expandida”, declarou um porta-voz das Indústrias Koch. “O papel da companhia
nessa transação é similar ao de um banco”.
Harty acrescentou que ninguém da Meredith sequer se
encontrou com os Koch.
Há, porém, uma cláusula no contrato que atiça as
preocupações. Ela diz que os Koch se reservam o direito de enviar um emissário
às reuniões de conselho administrativo se a Meredith não cumprir o compromisso
de pagar juros de 8,5% sobre o empréstimo dos Koch.
Segundo um ex-editor-chefe da Time, John Huey, “é difícil
acreditar que os Kochs pagariam um prêmio para comprar um modelo de mídia
impressa sem a esperança de que possam levar a Time e a Fortune a promover sua
agenda política”.
Outro ex-editor-geral da Time, Rick Stengel, diz que “seria
ingênuo achar que só porque os Koch não vão ter uma cadeira no conselho eles
não vão ter algum tipo de influência editorial”.
Porém, Philip Elliott, um jornalista da própria Time que
costuma cobrir os Koch, apurou que confidentes dos Koch afirmam que eles não
querem se tornar publishers. Seu interesse, dizem os amigos, é “defender uma
marca estabelecida em uma época em que imperam as notícias falsas”.
Mesmo a lógica de que os Koch foram decisivos para a compra
da Time é algo exagerada. A Meredith assumiu uma dívida enorme para fazer o
negócio – 3,6 bilhões de dólares, de vários financiadores. Os Koch representam
pouco mais de um sexto do total.
Por mais que a ameaça de uma ingerência os Koch seja
assustadora – com seu histórico de violações de regras de defesa do meio
ambiente e seu conservadorismo militante – o maior risco para a Time e suas
irmãs jornalísticas é a própria Meredith.
Os “títulos icônicos” simplesmente não casam com a
estratégia tradicional da Meredith. É provável que a nova dona tome uma atitude
para acabar com seu “desempenho abaixo de seu potencial”. Mas essa atitude
tanto pode ser fortalecer as marcas como acabar com elas.
Texto e imagem reproduzidos do site: exame.abril.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário