sábado, 3 de fevereiro de 2018

Senhor de uma época

Desenho de Ucha




Publicada no Jornal da ABI em setembro de 2012

Gonçalo Júnior ENTREVISTA Nahum Sirotsky

Senhor de uma época

Nahum Sirotsky conta como nasceu a revista que modernizou o segmento de magazines no Brasil e aponta as influências e os desafios de sua produção.

A história das revistas no Brasil pode e deve ser dividida entre antes e depois de março de 1959. Precisamente, no momento em que o primeiro número de Senhor chegou às bancas de todo o País. Afirmação exagerada? Então folheie os dois luxuosos volumes de O Melhor da Senhor, que a Imprensa Oficial de São Paulo acaba de lançar, com organização da editora Maria Amélia Mello e do escritor e jornalista Ruy Castro (leia texto acima sobre este lançamento). Antes de essa publicação surgir, o Brasil vivia na pré-história da ousadia gráfica e editorial, sem ter uma única revista totalmente nos moldes dos grandes magazines americanos – Esquire, por exemplo – ou franceses – Paris Match.

Às exceções da luxuosa Rio, editada por Roberto Marinho na década de 1940 e até meados dos anos de 1950, voltada principalmente para as artes plásticas e à alta sociedade carioca; e Gentleman, uma experiência breve de onze números publicados entre 1957 e 1959. Era uma espécie de Playboy tupiniquim, voltada para a elegância do homem e que trazia uma garota sensual na capa e, sempre na última página, uma história de amor dramática de Nelson Rodrigues. Depois de Senhor, o Brasil se civilizou com experiências editoriais de vanguarda, com Realidade, Fairplay e Diners, criada e editada por Paulo Francis.

Senhor nasceu do sonho do jornalista paulistano Nahum Benhamin Sirotsky, que, no final de 1958, quando tinha apenas 33 anos e uma longa carreira no jornalismo, havia deixado o posto de editor da conceituada revista semanal Manchete, da Bloch Editores, e pensava em criar uma publicação sua. Talento precoce, aos 18 anos, Sirotsky se tornou repórter da editoria de Cidade do jornal carioca O Globo, em 1943. Aos 20 anos de idade, ainda pelo diário de Roberto Marinho, transformou-se no primeiro correspondente brasileiro nas Organizações das Nações Unidas-Onu, logo após a criação da entidade. Mas ele faria carreira mesmo na Manchete, de Adolfo Bloch, criada em 1952. De repórter, tornou-se editor, de onde saiu para fundar, em seguida, a Senhor.

Desde o começo da década de 1990 Sirotsky vive em Tel Aviv, Israel, de onde escreve, aos 87 anos, para o jornal gaúcho Zero Hora, transmite semanalmente um programa na Rádio Gaúcha (ambos do Grupo RBS, de Porto Alegre) e ainda escreve para o site de notícias Último Segundo, do portal iG. Em 1999, quando Senhor completou 40 anos, ele deu uma entrevista exclusiva para o caderno Leitura de Fim de Semana, do jornal Gazeta Mercantil. A conversa foi realizada a partir da troca de uma série de mensagens por e-mail e traz um quantidade de informações importantes sobre a gênese dessa revista que se tornou marco de uma época para a vida cultural brasileira. Alguns fragmentos foram usados na longa reportagem sobre a sua importância. Mas a conversa jamais foi publicada na íntegra. Até agora, o que acontece especialmente para os leitores do Jornal da ABI.

Toda revista geralmente tem uma história curiosa em sua origem. Aconteceu assim com Senhor?
Acredito que sim. Na verdade, a revista Senhor nasceu do acaso. No final de 1958, fui a uma festa com minha mulher, a atriz Beyla Genauer, onde também estava Abrahão Koogan, dono da Editora Delta-Larousse – que publicava a famosa enciclopédia vendida no sistema porta a porta. Eu acabara de deixar a direção de Manchete e imaginava criar um semanário de notícias e análises políticas e econômicas. Éramos ambos muito jovens. Beyla fazia muito sucesso no palco. Profissionalmente, como jornalista, eu também ia bem, fora diretor de uma importante revista. Com Visão, que também era semanal de notícias, tive a primeira experiência nesse formato. Era uma publicação pioneira de noticias para homens de negócio no País. Manchete, para aonde fui em seguida, era um pouco diferente, imitava Paris Match sem cerimônia, como também fazia O Cruzeiro, no sentido de supervalorizar as fotos. E foi Beyla quem me apresentou a Koogan e perguntou, meio na brincadeira, naquele típico ambiente de festa, por que ele não fazia uma revista comigo. Isso foi dito assim, descompromissadamente. Ele nos contou – e foi uma coincidência – que Simão Waissman, sobrinho e sócio dele, também estava pensando na hipótese de também criar uma publicação para bancas. Marcamos um encontro para o dia seguinte, na Travessa do Ouvidor, Centro do Rio, onde Simão me falou que estava querendo uma revista que fosse um cartão de visitas da Delta-Larousse.

Que era uma editora de grande reputação por fazer uma das mais conceituadas enciclopédias de consulta do mundo, correto?
Sim, sim. E ali, na hora, descrevi para ele uma revista que vinha imaginando fazer. Ele me ouviu, gostou da ideia e me pediu que preparasse uma “boneca”, um esboço de como seria a publicação. Ali mesmo tomei umas notas para não esquecer o que inventara naquela conversa, fui para casa e procurei uma das pessoas de quem mais gostava, e com quem tinha uma amizade desde os tempos de criança: Carlos Scliar, que, além do grande pintor que era, também se mostrava um fabuloso artista gráfico. Ele veio à minha casa com Glauco Rodrigues, outro pintor fabuloso e amigo. Contei-lhes o que tinha havido naquela manhã na sede da Delta-Larousse. Saímos à rua, compramos revistas francesas e americanas para poder recortar ilustrações e bolamos a boneca. Eu havia descrito para Simão uma revista mensal tipo Esquire americana. E por ela nos guiamos. Mas não só por ela.

Vocês fizeram algumas adaptações importantes? De que forma?
No nosso caso, seria uma revista para o homem, mas sempre com iniciativas que interessassem à mulher, que era quem mais comprava revista em banca e tinha mais tempo para ler, pois a maioria não trabalhava. Concluímos que conteria serviços que seriam moda masculina, seleção de bebidas e preparação de bebidas, pratos especiais, hobbies masculinos, um ensaio em cada edição sobre uma garota bonita, uma novela completa, um conto, diversos ensaios sobre literatura, artes, política, economia, nacional e internacional, humor como desenho e humor com texto. Cada capa seria especialmente pintada e teria de ser um comentário humorístico sobre a vida brasileira. A “boneca”, onde usamos recortes também da Life, da Variety etc. ficou uma beleza. Scliar e Glauco criaram, com cola e tesoura, uma pequena obra de arte. Simão comprou a ideia na hora. E partimos para a aventura. Convidamos de imediato para serem editores Newton Rodrigues (politica-economia), Paulo Francis (literatura, ensaios) e Luiz Lobo (serviços).

E como o projeto andou? Demorou muito tempo para a revista sair?
O primeiro drama foi a escolha do nome. Deu briga de dias. Concordamos com SR., com senhor abreviado e em letras maiúsculas. Partimos para produzir o primeiro número. Ivo Barroso veio como principal tradutor. Decidimos que a primeira novela seria As Neves de Kilimanjaro, de Ernest Hemingway. Não me recordo do que mais tivemos para usar nesse começo. Não guardo nada do que faço. Prometi-me nunca viver em função do passado. Estou sempre pensando no que vou fazer hoje e amanhã. Só lembro que foi um primeiro número muito pesado, pois tinha tudo demais. Eu quis botar tudo logo no primeiro tiro. Não gostei do resultado. Mas foi um sucesso e causou aquele impacto que a editora queria. Com Scliar na direção de arte e Glauco como seu segundo homem, estávamos bem na parte de arte. E no resto também. A qualidade dos textos, o nível dos colaboradores, as ilustrações, os cartuns, o humor, tudo tinha qualidade.

Mesmo com tantas influências externas, a revista conseguiu um formato que diluiu as referências contemporâneas do que se fazia na Europa e nos Estados Unidos, não?
Sem dúvida. Senhor foi original logo no primeiro número. E a partir dele passamos a corrigir os exageros e a afinar o formato. O fato de que continue lembrada até hoje parece provar que acertamos. E ao falar na primeira pessoa do plural é que ela foi, desde o seu primeiro instante, uma criação da equipe, cada página, Ilustração, texto, tudo resultava de rigorosa e debatida seleção. Desde o primeiro exemplar que Senhor foi o que chegou a ser porque todos nos apaixonamos pela obra e a fizemos com o melhor da nossa imaginação e competência. Havia um prazer enorme naquilo. Tivemos como influências diversas revistas estrangeiras, embora continue a acreditar que nenhuma publicação jamais chegou a uma beleza gráfica próxima de Senhor. Acredito que foi Flair, dirigida por Flëur Cowles, então casada com o dono da revista Look, uma grande influência para nós na edição que se seguiu ao projeto que apresentamos a Simão.

Fale um pouco das principais fontes da revista…
Em Flair nos inspiramos para a idéia da publicação da novela como parte central da revista, metade de página, tendo ao centro como uma grande ilustração que servia para cada uma das páginas da história. Eram ilustrações de Glauco Rodrigues, provavelmente, o maior desenhista brasileiro dos nossos dias, daqueles tempos. O Partisan Review e a Commentary, títulos de origem americana, inspiraram o estilo dos nossos ensaios. E, acreditem ou não, a idéia de uma revista com grande variedade de temas e uma novela completa veio de Seleções do Reader’s Digest (revista americana fundada em 1922 e que depois se tornou uma importante ferramenta de combate ao comunismo no mundo, com apoio financeiro da Fundação Rockfeller). Mas, Senhor, como disse, sofreu influências; porém, nada copiou. Não conheço revista alguma que a ela se assemelhasse. E deu certo também a idéia de revista de homem para a mulher ler. Como disse, as mulheres eram grandes consumidoras da revista que – e isto fizemos conscientemente – pelo seu alto custo de capa e beleza gráfica virou status, um símbolo de excelência. Era encontrada nas casas dos mais prósperos, digamos assim.

Pela localização da cidade onde era produzida e dos colaboradores, inseridos numa Copacabana glamorosa dos tempos da Bossa Nova, não era Senhor uma revista carioca em sua essência?
Talvez pela malícia de seu humor, sim. Porém não a chamaria de uma revista carioca. Acontece que naqueles anos o Rio de Janeiro era o grande centro cultural e editorial do País. A nossa idéia era de uma revista brasileira para o Brasil destinada às chamadas classes A e B, as de mais alta renda, as que fazem opinião. Na nossa ingenuidade e falta de modéstia, imaginamos usá-la para educar essas classes, aprimorar seu gosto na seleção de artes, na leitura, pois queríamos que conhecessem Kafka, Tólstoi, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Jorge Amado. Que essas pessoas soubessem do que acontecia no mundo. Imagine, velho, que Martin Luther King Jr, uma das maiores figuras do movimento dos direitos civis do negro americano, esteve no Brasil e apenas Senhor o procurou e o entrevistou, um trabalho de Paulo Francis. A gente era mesmo muito provinciana. Mas se você considerar os desenhos de Jaguar, e de outros, e os textos de humor de Luiz Lobo, você poderia dizer sim que era uma publicação carioca, pois era humor carioquíssimo.

Além dos nomes hoje muito conhecidos, havia talentos promissores na Redação que vocês revelaram, não?Sem dúvida. Não quero avançar sem lembrar Bia Feitler, uma garota excepcionalmente talentosa, que Scliar descobriu e trouxe para trabalhar no setor de arte da revista. Um dia ela, foi para Nova York e, com Senhor nas mãos, conseguiu a direção de arte de revistas americanas importantes. Ou Clarice Lispector, que escrevia boa parte das pequenas notas das primeiras páginas onde publicou alguns contos curtos que se tornaram depois obras-primas da literatura brasileira. E havia os nomes consagrados, como Jorge Amado escrevendo para nós A Morte de Quincas Berro d’Água, ou Guimarães Rosa de quem publicamos alguns contos inesquecíveis. E Carlos Lacerda, Antônio Houaiss, Darcy Ribeiro e o embaixador Sette Câmara, que deixou em Senhor sua proposta de um plano de governo para o Rio; e Jânio Quadros, além de tantos e tantos.

Foi um problema tornar graficamente viável uma revista como Senhor?
Era pobre o parque gráfico brasileiro na época. A revista foi impressa na gráfica das Listas Telefônicas. Scliar e Glauco se deslocavam para a gráfica para trabalhar com o pessoal no aprimoramento da qualidade. Eles ensinavam os funcionários a melhorar o retoque, a impressão, os filmes usados para gravar as chapas de impressão e coisa assim. E os operários correspondiam com entusiasmo àquela parceria com a gente. Faltavam meios sem dúvidas para fazer o melhor. Então, quando queríamos uma família de letras inexistente no Brasil, recortávamos um alfabeto inteiro de revista estrangeira fotografávamos e conseguíamos a família desejada. Scliar e Glauco improvisavam soluções originais que davam certo. Tenho de dizer que a minha admiração e respeito pelo talento da equipe, de cada um dos companheiros que contratamos, só faz crescer quando me recordo daqueles tempos. O que se conseguiu de melhor foi com eles, por causa deles. A equipe era uma espécie de orquestra de câmara, com todos os instrumentos tocados por solistas.

O que você incorporou de sua experiência pessoal à revista?
Do meu aprendizado nos Estados Unidos, onde, garoto, fui enviado de O Globo, do Rio, para cobrir as Nações Unidas, trabalhei em publicações americanas, trouxera entendimento de que a gerência criativa é fundamental e que o diretor de publicidade tem de ser um indivíduo de convivência de agência. Ivan Meira, falecido num desastre de avião, ex-Standard Publicidade, veio para nós. E as contribuições dele também são inesquecíveis. A primeira foi a de decidir que a revista aceitaria peças publicitárias que tivessem qualidade artística. Isso foi uma revolução, pois os setores de artes das agências não tinham tal oportunidade em outras publicações. E começaram a criar peças exclusivas para Senhor. Ivan, grande homem de publicidade, criou ele mesmo algumas peças memoráveis. Um anúncio de 24 páginas como historia em quadrinhos com fotografias nas quais Jardel filho, ator já falecido, e Odete Lara estrelavam uma peça da fábrica StaBranca de tecidos impressa no próprio tecido que encartamos em cada exemplar e outras mais. Diretor de revista ou jornal não pode deixar de considerar parte de um negócio, um setor de um negócio. E que ele tem de produzir consumidor em potencial para que o diretor de publicidade possa vendê-los às agências, pois é da receita que se faz a mídia.

Como surgiam detalhes gráficos que definiam a cara da revista, como o zelo até mesmo na confecção do expediente e do índice?
A idéia dos anúncios no índice foi minha. Sempre entendi anúncio como uma informação ao leitor, um serviço. Além do mais, os nossos anunciantes, devido à qualidade de suas peças e produtos, mereciam tal destaque. E a repercussão foi mais do que positiva.

Você ficou quanto tempo na revista?
Creio que fui o diretor de uns 29 números. Não tenho certeza e nem posso confirmar, pois não tenho um só exemplar em minha biblioteca. Entendo direção como equivalente a maestro de orquestra sinfônica. Ele tem de fazer todos tocarem o melhor que sabem. Além do mais, também acho que diretor deve evitar escrever, pois quando escreve está competindo, sem querer, com os outros redatores, o que é ruim. Por outro lado, ele também se esquece de dirigir.

Como foi a sua saída?
Fui substituído pelo falecido Odylo Costa, filho. Senhor me deu tais prazeres que prefiro não explicar a minha saída. Aceitei convite do Roberto Campos, um dos brasileiros que mais admirei em minha vida pela coragem de ser uma voz solitária na defesa de suas convicções, pela cultura, pelo que me ensinou, pela sua teimosa defesa de interesses brasileiros, o que testemunhei tanto em Washington como no Brasil. Nunca mais vi um exemplar de Senhor, como deixei de ver Manchete e Visão. Não gosto de sofrer e me frustrar pelo que fazem ou desfazendo com o que crio. Nada mais posso lhe dizer a não ser que seria muito pouco provável, e muita sorte, conseguir reunir novamente uma equipe como a da revista que fizemos. Mas seria injusto desconhecer que o Brasil tem, hoje, publicações de qualidade internacional como Veja, Istoé, Vip e outras. “No Brasil, em se plantando, tudo dá”, disse Pero Vaz Caminha, o escrivão de Pedro Alvares Cabral. Há talentos excepcionais em todos os campos. Muitos, demais, no exterior, em hospitais, centros de pesquisa científica, universidades, cinema. Aqui, onde estou, se tem a convicção de que a crise será superada e o País terá um novo impulso de crescimento e será das maiores economias do próximo século. Também não duvido disto.

Os colaboradores eram bem remunerados?
Pagávamos muito acima da média. O que pagávamos por uma noveleta, por exemplo, bastava para o autor viver bem um mês. Fazia questão de que fossem mínimas as diferenças entre o meu salário e os dos demais editores. E tudo foi possível porque Simão e Sérgio Waizman, os principais acionistas, aceitaram os custos do desafio. Nada se faz sem dinheiro, como você sabe. Não seria possível repetir Senhor, antes de qualquer coisa, porque não seria economicamente viável. E, provavelmente pela própria evolução do parque gráfico e da indústria editorial do País, da qualidade da publicidade, o improviso criador usado em Senhor não seria necessário. Mas quanto à qualidade de texto, ilustrações, impressão, não faltam exemplos de que é mais alta hoje do que jamais seria alto demais o custo de uma orquestra constituída de solistas, como foi o caso de Senhor no nosso tempo.

Texto e imagens reproduzidos do site: doispontosblog.wordpress.com

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