Foto: Cel Lisboa/Reproduzida do site: pitoresco.com
Postado pelo blog, para ilustrar o presente artigo.
Texto publicado originalmente no site do Portal Infonet, em 12/03/2018
Joel e a mediocridade da política e do jornalismo
Por Marcos Cardoso*
Seis meses antes de morrer, já alquebrado pelo câncer de
próstata que o consumiu por alguns anos, abatido pela inevitável velhice, Joel
Silveira bafejou o cansaço e proferiu uma sentença tão exata como nenhuma
reportagem poderá ser: “O Brasil, hoje, não é um bom assunto. Estamos vivendo uma
vida política medíocre”.
Joel Silveira, que morreu no dia 15 de agosto de 2007, aos
88 anos, estava se referindo à corrupção, a esses escândalos que sacolejam os
podres poderes brasileiros, à violência que viceja na impunidade e a outros
males que tais. Ele falava como se ainda tivesse forças para escrever, se
quisesse, mas não queria mais. Cansou. Para ele não valia mais a pena.
O lagartense Joel Silveira foi talvez o último romântico do
jornalismo. Foi de um tempo épico quando o mundo girava mais lentamente, os
jornais valorizavam a grande reportagem e a política estava muito acima de ser
um meio fácil de ficar rico. As suas reportagens, publicadas em alguns dos mais
de 40 livros que lançou em vida, têm um estilo literário que caiu em desuso
desde que inventaram os lides plastificados, prontos a responder perguntinhas
básicas.
“Joel usa intensamente recursos de ficção para descrever com
maior riqueza os fatos que narra; lança mão da metalinguagem, de flashbacks e,
muito fortemente, de referências ao que andava por seu mundo interior no
momento em que ocorrem os fatos narrados”, observou o jornalista Leão Serva no
posfácio do livro A feijoada que derrubou o governo, de 2004, o penúltimo do
prolífico Joel (o último foi O inverno da guerra, de 2005).
A reportagem que dá título ao livro talvez seja o exemplo
mais bem-acabado de um cada vez mais raro subjetivismo aplicado ao jornalismo.
É a descrição do dia do golpe de 1964. Perambulando pelo Rio de Janeiro na
madrugada de 1º de abril, ele recorda incrédulo de um poderoso banquete
ocorrido dias antes do golpe, na casa de um jovem ministro, onde, testemunha
ocular da história, naturalmente estava presente.
Na ocasião, poderosos comensais se deliciaram da mais
gostosa feijoada de todos os tempos, regada a perfeitas batidas de limão e
maracujá, e revelavam sua confiança absoluta no “dispositivo”, o esquema de
segurança de João Goulart. Os ecos da festa torturavam Joel Silveira, que
andava perdido pelas ruas do Rio, já totalmente controladas pelo Exército golpista.
Ele conclui que toda a energia do dispositivo tinha se
esgotado na digestão daquela feijoada: “O dispositivo era somente aquilo: o
tenro charque do Rio Grande, a língua especial trazida de Teresópolis, o
orgulhoso e impávido paio português, a dourada salmoura, a primorosa batida de
maracujá e também a não menos soberba batida de limão, a imaculada farinha do
Nordeste?”.
Ele retorna ao passado recente para relembrar os comícios,
os manifestos, as greves, as briguinhas de bastidores, a arrogância dos políticos
que cercavam o presidente. “Entre o Comício da Central e a sua queda, no
alvorecer do dia 1º de abril, João Goulart não iria mais sair; e mergulhado
assim no patético sonambulismo que dele se havia apoderado a partir das 21h45
do dia 13 de março, quando, obnubilado e ofegante, conseguiu vencer a multidão
e chegar ao seu carro, ele iria ser apenas o simbólico epicentro do terremoto
que se armava em seu redor e que não tardaria a explodir, pondo abaixo em
segundos tudo aquilo, esperança dos comandados e promessa dos comandantes, que
o feijoadesco ‘dispositivo’ garantia defender de todas as maneiras”.
No dia posterior à morte do velho jornalista, Hélio
Fernandes escreveu na Tribuna da Imprensa: “Passo em revista os mais de 60 anos
de amizade, de convivência, de admiração por Joel Silveira, o homem que durante
quase 70 anos foi considerado o maior repórter brasileiro. Se no Brasil
houvesse um Prêmio Pulitzer (destinado apenas a repórteres-escritores), quase
todo ano ou a cada livro teria que ser entregue ao Joel”.
Mas ele próprio, casmurro, era avesso a homenagens. “Esse
negócio de bom ou grande repórter, o maior repórter do Brasil, eu acho uma
idiotice completa. Sempre fui cáustico na minha maneira de ser, mas nunca fui
agressivo, nunca ofendi ninguém”, dizia Joel Silveira, que uma vez prescreveu a
seguinte receita para ser um bom jornalista: “Paciência, persistência e sorte”.
Como se fosse fácil.
O “víbora”, como o alcunhou Assis Chateaubriand, era, acima
de tudo, íntimo das palavras. “Ele tinha o segredo do adjetivo. Com um adjetivo
ele destruía uma reputação”, brincava Ledo Ivo. “Era uma língua que unia ironia
e até sarcasmo, com uma grande dose de poesia e de ternura. Creio que ele
ficará na literatura brasileira e será redescoberto. Seu estilo admirável será
admirado e será amado”, previa o alagoano, acadêmico e amigo. Que assim seja.
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* Marcos Cardoso é jornalista, autor de "Sempre aos
Domingos: Antologia de textos
Texto reproduzido do site: infonet.com.br/blogs/marcoscardoso
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