Gabriel García Márquez. ULF ANDERSEN GETTY IMAGES/ARQUIVO
Publicado originalmente no site do jornal El País/brasil, em 17 ABR 2015
O jornalismo como literatura
Trabalhou em jornais, escreveu matérias e criou uma fundação
para jornalistas
Por Leila Guerriero
Talvez uma das maiores contribuições de Gabriel García
Márquez ao ofício do jornalismo, para além do valor de sua obra de ficção,
tenha sido o de afirmar, durante toda a sua vida, que ele era, sobretudo, um
jornalista, e de dar mostras —com fatos concretos e declarações nas quais dizia
coisas como “Aprendi a escrever contos escrevendo crônicas e reportagens” ou “O
jornalismo me ajudou a escrever”— de que falava sério. Começou a exercer o
ofício aos 20 anos, no Universal, de Cartagena das Índias, e desde então e até
seu último empreendimento jornalístico, quando em 1998 comprou a revista
colombiana Cambio, todos os seus atos indicaram que, para ele, o jornalismo não
era um ganha-pão nem um ofício bastardo, mas uma forma de literatura para a
qual valia a pena entregar a vocação e a vida.
Se fizermos um paralelo entre sua obra jornalística e sua
obra de ficção se vê que, por exemplo, enquanto trabalhava no El Espectador, de
Bogotá (e dava forma, em 1955, às vinte entregas consecutivas do que seria
depois o livro Relato de um náufrago, ou era correspondente da agência Prensa
Latina, escrevia Ninguém escreve ao coronel e Má hora: o veneno da madrugada.
Ainda depois de Cem anos de solidão, o romance que 1967 que o colocou sob os
holofotes, continuou publicando artigos no El Tiempo, da Colômbia, e depois no
EL PAÍS, da Espanha. Depois de um ano do lançamento de O amor nos tempos do
cólera, em 1985, publicou um livro de não ficção: Miguel Littin, clandestino no
Chile. E, quando já não precisava demonstrar a ninguém o que podia fazer,
pesquisou e escreveu Notícia de um sequestro, em 1996.
Foi um dos poucos autores latino-americanos de sua geração
—outro, inesquecível, é Mario Vargas Llosa—, que acreditou que o jornalismo
bem-feito poderia ser uma arte, e que agiu de acordo.
Quando ganhou o Nobel, em 1982, convocou o argentino Tomás
Eloy Martínez para fazer, com o dinheiro do prêmio, um jornal que se chamaria
El Otro, e que nunca chegou a existir. Em 1992 fez parte do QAP, um noticiário
televisivo de muito sucesso na Colômbia. Finalmente, em 1994, quando fazia doze
anos que ganhara o prêmio Nobel e vinte e sete que escrevera Cem anos de
solidão, criou a Fundação Novo Jornalismo Iberoamericano. Já estava há quase
três décadas no centro do palco, recebendo todo tipo de honras como escritor de
ficção e, no entanto, decidiu apoiar um projeto destinado a pessoas que vivem
de contar histórias reais para estimular “as vocações, a ética e a boa narração
no jornalismo”. Desde então, a Fundação trabalha de várias formas —sobretudo,
ainda que não apenas, organizando oficinas para jornalistas— em torno desse
assunto.
Hoje o panorama da crônica de língua hispânica não é
idílico, mas também não é o pior possível. O prêmio concedido pela Fundação
—reeditado em 2013 sob o nome de Gabriel García Márquez— se transformou em um
dos mais prestigiosos e mais bem remunerados do ofício. Nos últimos anos, quase
todas as editoras têm uma coleção de crônicas e várias revistas do continente
americano —El Malpensante, Etiqueta Negra, Soho, Anfibia, Gatopardo— cultivam o
gênero. Para as novas gerações, as referências do ofício já não são apenas Tom
Wolfe e Truman Capote, mas também —e talvez sobretudo— jornalistas de língua
hispânica, muitos dos quais foram seus mestres em oficinas da Fundação: Alma
Guillermoprieto, Martin Caparrós, Alberto Salcedo Ramos, Juan Villoro.
É difícil pensar no estado da não ficção na América Latina
sem levar em conta esse gesto de García Márquez, que, há vinte anos, decidiu
criar essa fundação para jornalistas quando, com todo o seu nome, com todo o
seu poder, poderia ter feito qualquer outra coisa: um festival de cinema, um
prêmio para romances ou nada. Se hoje muitos jornalistas de novas gerações se
dedicam a seu ofício sem sentir que necessitam validar seu trabalho com, além
disso, uma potente obra de ficção, é, em boa parte, graças a esse gesto.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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