Redação do EL PAÍS na Espanha.
Publicado originalmente no site Brasil El País, em 22 FEV 2017
O EL PAÍS é um jornal de esquerda?
“O EL PAÍS queria, quer ser e é um jornal que conta as
coisas que interessam aos leitores e não se cala sobre as coisas que incomodam
o poder”, afirma o fundador do EL PAÍS
Por Juan Arias
Há leitores da edição brasileira do EL PAÍS que estranham, e
às vezes até mesmo se irritam, quando aparecem informações ou análises que
possam parecer críticas à esquerda. E se perguntam se o jornal “será como os
outros”. Isso talvez se deva ao fato de que alguns leitores brasileiros que
desembarcaram tarde neste jornal desconheçam a sua história.
O EL PAÍS nasceu há 40 anos como o jornal da nova Espanha
democrática, após a terrível guerra “incivil” e décadas de ditadura franquista
com desprezo aos direitos humanos. Mas não foi à época, nem é agora, um jornal
ideológico de esquerda ou de direita. Segundo Juan Luis Cebrián, hoje
presidente do Grupo Prisa, que edita o jornal, além de ter sido seu criador e
primeiro diretor, recrutador da primeira redação com diversidade e que decidiu
a sua linha editorial, o EL PAÍS deveria ser, acima de tudo, um jornal plural.
Aos 31 anos, Cebrián queria um diário de referência sobretudo para os jovens,
naquele momento crítico em que começava a nascer uma geração com fome de
democracia.
Cebrián acaba de recordar isso em sua autobiografia, Primera
Página (sem tradução no Brasil), quando escreve: “Queria fazer um jornal de
perfil equilibrado e sucinto, um jornal sóbrio, bem escrito, documentado em
suas análises e plural em suas opiniões.” E acrescenta que sua ideia foi fazer
um periódico “lido e respeitado, tanto pela elite como pelas pessoas comuns,
que desempenhasse um papel essencial na formação da opinião pública”.
Um jornal de esquerda? Cebrián respondeu a essa pergunta em
11 de dezembro de 2016 no programa de Jordi Evole, que faz muito sucesso na
rede de TV espanhola La Sexta: “O EL PAÍS queria, quer ser e é um jornal que
conta as coisas que interessam aos leitores e não se cala sobre as coisas que
incomodam o poder”. E explica: “Quando começamos, a esquerda não tinha voz e
tomamos a decisão de lhe dar, mas acredito que nunca foi nem deva ser um jornal
de esquerda. Alinhou-se com as posições liberais progressistas e defendeu a
democracia quando esta não existia.”
Para conseguir que o EL PAÍS fosse um jornal de referência
internacional, Cebrián quis colocá-lo na linha das grandes publicações da
Europa da época. Assim, foi o primeiro jornal da Espanha a contar com a figura
do ombudsman e com um Manual de Estilo, espécie de Constituição interna para os
jornalistas que foi adotada por muitos outros jornais de língua espanhola. Seu
fundador também desejava que fosse o primeiro jornal da Espanha, e talvez do
mundo, cujas primeiras páginas se dedicassem à seção Internacional. Isso
porque, como explicou numa conferência em Roma, a Espanha havia vivido 40 anos
com as janelas e portas fechadas ao mundo, olhando para o próprio umbigo. Os
espanhóis precisavam, antes de mais nada, conhecer o que acontecia em outros
rincões. Ainda hoje, o EL PAÍS, com um importante grupo de correspondentes
internacionais, valoriza como poucos as informações mundiais.
Uma das figuras de maior prestígio na equipe, a jornalista
Soledad Gallego-Díaz, recebeu de Cebrián a oferta de dirigir o jornal quando
ele deixou o cargo. Mas acabou recusando. Ela abordou o tema da ideologia numa
entrevista à revista Jot Down, em 23 de março de 2012: “O EL PAÍS não é um
jornal de esquerda. Nunca foi, ainda que as pessoas tenham pensado nisso em
certo momento. É um jornal progressista no âmbito social, mas não um jornal de
esquerda. Além disso, nunca pretendeu ser.” Antonio Caño, outra figura
histórica do jornal, atual diretor do EL PAÍS global, enfocou o tema em outra
entrevista a Jot Down, em 23 de junho de 2014, pouco depois de assumir. “A
única coisa que desejo é tirar o jornalismo do debate esquerda-direita. O jornal
não pode ser medido por esses parâmetros porque são muito pobres para um meio
de comunicação”, disse. E completou: “O EL PAÍS não é um jornal de esquerda.
Nem pretendeu ser. É um jornal liberal, progressista, que se conecta com as
tendências de modernizar e de conseguir o progresso da sociedade à qual se
dirige. Somos socialmente responsáveis e avançados. E gostamos das mudanças...
Jornalismo é jornalismo, contar as coisas sem armadilhas.”
Pessoalmente, faz 40 anos que trabalho exclusivamente para
este jornal, quase desde a sua fundação. E, durante todo esse tempo, pude
comprovar em primeira mão que o EL PAÍS nunca se vinculou com nenhuma
ideologia. Sempre foi, e continua sendo, um jornal comprometido com a
democracia e a defesa das minorias marginalizadas. Um jornal laico, que sempre
defendeu a separação entre a Igreja e o Estado. Liberal na economia,
progressista no campo social, crítico em relação aos poderes civis e
religiosos, fiel na defesa dos direitos humanos. E, sobretudo, plural em suas
ideias. Algo que sempre esteve claro para todos nós, que trabalhamos nele, é
que o EL PAÍS é dos leitores. De todos. São eles os seus verdadeiros
proprietários. Os jornalistas são apenas os mediadores da notícia.
Em suas memórias, Cebrián também conta como o partido
socialista espanhol, PSOE, pretendeu se apoderar do jornal, já que seus
eleitores o liam intensamente. “Ficamos quase dois anos sem dirigir a palavra
um ao outro”, escreve, referindo-se ao presidente do Governo socialista e seu
amigo pessoal, Felipe González. O falecido Jesús de Polanco, primeiro
presidente do Grupo Prisa, me contou que, quando o conservador Partido Popular
(PP) venceu as eleições na Espanha, em 1996, o novo presidente do Governo, José
María Aznar, convidou-o para um almoço no Palácio da Moncloa. No meio da
refeição, Polanco perguntou o que o presidente queria dele. Aznar respondeu: “O
EL PAÍS.” E Polanco, que tinha um arguto senso de humor, então lhe disse: “Pena
que me pede algo que não é meu, pois o jornal é dos leitores.”
Esse foi e continua sendo o maior orgulho, a única ideologia
de um jornal que nutriu três gerações e que hoje é lido também por milhões de
brasileiros em sua própria, bela e doce língua.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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