Texto publicado originalmente no site Jornal GGN, em 21/08/2018
A morte de Otávio Frias Filho, o grande escritor que não se
completou
Por Luis Nassif
Otávio Frias Filho poderia ter sido um grande escritor.
Tinha talento para tanto. Poderia ter feito carreira como teatrólogo e até como
pensador. O embate constante, entre ser o herdeiro jornalístico do pai e a
carreira solo, atrapalhou tanto o escritor quanto o jornalista. Foi um drama
que o acompanhou em todo o período em que convivi com ele.
Era capaz de discorrer limpidamente sobre o papel da mídia e
os princípios norteadores do jornalismo. Mas abominava a miudeza do dia-a-dia.
Não tinha paciência para ler os demais jornais, para se sensibilizar com o fogo
fátuo dos modismos diários. E, embora a Folha tenha sido o primeiro jornal a ir
para a Internet, não se interessou pelos novos meios. Seu conhecimento se
baseava nos fundamentos sólidos de jornalismo que, muito jovem, aprendera com
Cláudio Abramo.
Minha relação com ele foi complexa – aliás, provavelmente
como tudo na vida de ambos. Depois de lançar as seções Seu Dinheiro e Jornal do
Carro no Jornal da Tarde continuei sem espaço no jornal. Decidi procurar a
Folha, que já iniciara seu movimento de renovação.
Marquei uma conversa com Caio Tulio, então secretário de
redação. Para minha surpresa, apareceu o velho Otávio Frias. Relatei minha
dificuldade em emplacar novos projetos no JT – tinha um de consumo e outro de
informática. Frias me interrompeu, pedindo que nada falasse sobre o caderno de
informática, porque a Folha já estava planejando o seu e não queria que alguma
coincidência pudesse ser interpretada como plágio.
Meses depois fui convidado a ser repórter especial, junto
com craques como Ricardo Kotscho e Carlos Brickman. Desde o início tentei criar
uma seção tipo Seu Dinheiro no jornal. No final do ano, um conjunto de análises
minhas provocou a queda do presidente do Banco Nacional da Habitação, o assunto
mutuário se tornara central na mídia e Frias chegou a colocar uma breve
campanha no ar explorando minhas análises. Consegui, então, a seção Dinheiro
Vivo em fins de 1983.
No ano seguinte, Frias passou a pressionar Otavinho para
assumir a direção de redação. Para minha
surpresa, ele condicionou sua ida a que eu aceitasse o convite para ser
Secretário de Redação de produção. Mal tínhamos trocado algumas palavras no meu
curto período na Folha. Tentei recusar, mas Carlos Eduardo Lins da Silva, o
emissário do convite, me disse que a aceitação era essencial para Otavio
assumir o cargo.
Otavinho era encantado pelo estilo Veja de jornalismo e,
provavelmente, o fato de eu ter passado por lá o levou a essa posição.
Argumentei que o Dinheiro Vivo dava muita leitura e não queria abandoná-la. Na
verdade, desde sempre me arrepiava o ambiente de redação, os jogos de poder, de
lisonja, embora no JT tivesse vivido o melhor clima de trabalho de minha
carreira. Me autorizaram a contratar dois repórteres para me ajudar no Dinheiro
Vivo e lá fui eu para o sacrifício.
Diariamente, quatro jornalistas tínhamos reuniões diárias
com Frias, pai, para discutir a pauta: os dois secretários de redação, eu e
Caio Tulio, o chefe da Agência Folhas, Dácio Nitrini, e o diretor do Folha da
Tarde, Adilson Laranjeiras. Foi uma experiência inesquecível e, até certo
ponto, chocante, com um verdadeiro capitão da indústria.
Frias era uma personalidade fascinante, aliás muito
semelhante à de outro capitão, Victor Civita, tal como descrito por Mino Carta
em artigo recente. Mas era muito mais jornalista. Frio e objetivo no trato dos
negócios, era capaz de momentos de sensibilidade, especialmente na análise de
caráter, do qual era especialista, e no reconhecimento do talento dos grandes
nomes do passado que ele trouxe para o Conselho Editorial, como Luiz Alberto
Bahia e Oswaldo Peralva.
Foi o pior período de minha vida, a convivência com o
ambiente burocrático, com as quizilas de redação, os puxa-sacos, as tentativas
de puxadas de tapete de um colega contra outro.
Fiquei três meses como Secretário de Redação justamente no
período de maior turbulência da Folha, o do início do projeto Folha que
resultou na demissão de dezenas de jornalistas antigos e sua substituição por
uma nova leva. Nos almoços com os editores e Frias, éramos apenas dois –
Aloisio Biondi, então editor de economia, e eu – que tentávamos reduzir o
alcance do passaralho. Não adiantaria tirar 30 jornalistas e colocar 30
melhores se destruísse a cultura interna do jornal.
De nada adiantou. O passaralho veio. Aguentei uma semana o
clima horrível, devo ter perdido uns cinco quilos. Na segunda-feira seguinte
sai de casa com duas decisões tomadas: demissão do sindicato (do qual era
diretor) e demissão da Secretaria de Redação da Folha.
A reação de Otávio foi imediata:
- Não faça isso. Você vai ficar desprotegido!
Não voltei atrás. O tempo revelaria que o novo projeto Folha
foi vitorioso.
Otavio ainda fez duas tentativas de me manter por perto. A
primeira, o convite para me tornar ombudsman, que recusei. A segunda, para
dirigir o DataFolha, o serviço que a Folha pretendia criar, ampliando as
pesquisas eleitorais, que aceitei, sem abrir mão da coluna Dinheiro Vivo.
O velho Frias teve papel central na reforma da Folha,
incorporando várias inovações do Jornal da Tarde – que foi relegado a segundo
plano pelos Mesquita. Mas a grande cara da Folha foi a Ilustrada, que refletia
como nenhum outro caderno a nova geração que surgia das faculdades. Foi obra de
Otávio, secundado por Caio Túlio Costa e Matinas Suzuki.
Na época, era curioso observar como jovens jornalistas
tentavam se vestir como Otavio, falar como Otávio, ser cerimonioso como Otavio.
Nesse período tornou-se, de fato, referência para as novas gerações.
Nossa relação complicou quando veio o Plano Cruzado e
denunciei manobras do então consultor geral da República Saulo Ramos. Houve uma
negociação entre Frias e Saulo e acabei sendo mandado embora. Tive uma última
conversa com Otavinho, onde pedi apenas que mantivesse uma repórter grávida.
Fui me despedir de Frias, que me disse que Otavio ficara impressionado com o
fato de eu não ter pedido nada.
Ali comecei a desvendar a natureza de Otavinho. Extremamente
sensível, vulnerável até, no embate com o irmão Luiz – que herdara a
objetividade fria do pai -, era obrigado a seguir o figurino familiar e
participar das decisões duras que cabiam ao comandante – como o de demitir
colunistas -, mesmo investindo contra sua própria natureza.
Alguns anos depois, terminado o terrível período
Sarney-Saulo, estava em minha cidade quando Otavio me ligou convidando para
assumir a coluna de Economia. Joelmir Betting estava de mudança para o Estadão.
Foi um período de ampla liberdade jornalística, no qual a
estratégia dos jornais consistia em montar sua personalidade em cima da
independência e da diversidade de opiniões de seus colunistas.,
Poucas vezes Otavio interveio e apenas em questões de forma.
Às vezes eu exagerava na retórica, ele ligava e perguntava se não seria melhor
um texto mais sóbrio. Em geral, eram observações pertinentes.
Certa vez, o recém assumido Secretário de Redação Josias de
Souza foi se queixar a ele que, em minha coluna, estava adotando linha
diferente daquela da Folha. Otavio me ligou para me informar da reclamação de
Josias e de sua recomendação:
- Disse para ele te ligar toda segunda-feira para você
passar dicas de enfoques.
Após a saída de Fernando Collor, quando ele se tornou saco
de pancada de qualquer jornalista, escrevi uma coluna comparando com os tempos
de Collor todo poderoso, paparicado por todos, e mencionando, como momento de
corte, o editorial de primeira página da Folha, contra Collor, assinado por
Otavinho, que marcou, dali para frente, a nova postura da imprensa em relação
ao poder. Recebi um telefonema emocionado de Otavio dizendo saber como me
custara fazer um elogio a ele, o chefe.
Nos anos seguintes, me coloquei contra a cobertura da Folha
em vários episódios de linchamentos, da Escola Base ao caso Chico Lopes, sem
jamais ser incomodado. Quando lancei meu livro “O jornalismo dos anos 90”,
relatando dezenas de casos de abusos da mídia, grande parte da Folha, a única
observação de Otávio foi que, no abre, eu deveria mencionar o fato da Folha ter
criado a figura do ombudsman. No que estava certo.
Na cobertura da CPI dos Precatórios, passei um mês andando
na contramão, investindo contra a linha de cobertura da sucursal de Brasília e
sendo atacado por Fernando Rodrigues, na época ligado a Paulo Maluf.
Quando terminou a cobertura, em um dos almoços do Conselho,
Otavio pediu um roteiro sobre como o jornal deveria se comportar nesses
momentos de catarse. Não tinha experiência jornalística, mas sabia identificar
os pilares centrais nos quais deveria se assentar o jornalismo.
Quando a Internet começou a explodir, escrevi um artigo para
uma revista prevendo o fim do modelo tradicional do jornalismo. Nas reuniões do
Conselho Editorial da Folha – do qual participei por 15 anos – por diversas
vezes falei da importância de se começar a trabalhar o chamado jornalismo de
dados (não se usava essa denominação na época).
Era um conselho meramente figurativo, mas que me permitiu
convivência com alguns grandes caráteres, como Jânio de Freitas, Rogério
Cerqueira Leite.
Otavio pediu que eu transformasse o artigo em um paper para
incluir nas discussões sobre o novo projeto Folha. Marcou um almoço para que
explicasse para ele o novo tempo que surgia. Asceta, o almoço foi em uma
hamburgueria perto da Folha. Disse-lhe que as informações públicas cada vez
mais iriam para a Internet, que as notícias quentes sairiam na véspera, na
Internet e nas rádios, o que exigiria nova posição dos jornais. Previ, inclusive,
o fim das super-redações. Ele ouviu e admitiu que foi apenas por desencargo.
Que não entendia, nem queria entender o novo mundo tecnológico.
Todos os que conviveram com ele se lembram com enorme
simpatia de seus modos algo tímidos, formais e respeitadores. Mas tinha suas
mesquinharias também. Quando finalista do Prêmio Jabuti, com uma coletânea de
crônicas que tinha escrito para a Folha, reclamou com uma namorada:
- Nassif foi finalista do Jabuti porque escreve para a
Folha. Eu nunca tive reconhecimento, porque sou dono da Folha.
Tempos depois, vetou as crônicas literárias no caderno de
Economia.
Mas tinha razão. Era dono de um dos melhores textos que já
li. Mas a função de diretor da Folha sempre o impediu de seguir sua verdadeira
vocação, de intelectual solitário, inventivo, desafiador. Teve essa
oportunidade quando o pai morreu e o irmão assumiu de direito a frente dos
negócios – embora há tempos tocasse a aventura bem-sucedida da UOL. Foi-lhe
dada a oportunidade de se retirar do dia a dia, mas não aceitou.
A perda do pai, o grande timoneiro do jornal, mesmo afastado
há algum tempo da linha de frente, fê-lo perder o rumo. E, aí, cometeu o maior
erro de sua carreira, quando atrelou a Folha à linha editorial da Veja e se
deixou liderar por Roberto Civita, o mais indigno dos donos de mídia do país.
Antes de sair da Folha, fui atacado pela Veja e respondi
através da coluna. Sofri novo ataque e, ai, veio a recomendação de não mais
rebater. Ficou claro que um novo tempo surgia no jornalismo brasileiro, a era
da infâmia.
Era questão de tempo para minha saída do jornal. Foi-me
oferecido ficar na UOL, mas recusei. Tivemos uma última e dolorida conversa,
onde o alertei para a imprudência de caminhar a reboque da Veja. Disse-lhe que
um jornal líder do mercado de opinião, como era a Folha, não podia ir a reboque
sequer do The New York Times, quanto mais da Veja.
Foi em vão. Nos anos seguintes, sem os conselhos sábios do
velho Frias, a Folha mergulhou na aventura dos factoides e do discurso de ódio.
Tornou-se uma Veja de segunda mão, acentuando uma implicância irracional que
Otávio sempre devotou a Lula e ao PT. Passei a ser alvo de muitos ataques, em
represália às críticas que fazia à linha do jornal.
Nos últimos anos, Otávio passou a empreender uma
dura tentativa de volta às raízes, de tentar reconstituir a face perdida da
pluralidade. Abriu espaço para uma diversidade contida. Mas longe da grande
ousadia dos anos 80, quando o jornal entendeu o verdadeiro papel da mídia, como
agente civilizatório, e ajudou a empurrar a campanha pelas diretas.
Texto reproduzido do site: jornalggn.com.br
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