quarta-feira, 22 de agosto de 2018

A morte de Otávio Frias Filho...


Texto publicado originalmente no site Jornal GGN, em 21/08/2018

A morte de Otávio Frias Filho, o grande escritor que não se completou

Por Luis Nassif

Otávio Frias Filho poderia ter sido um grande escritor. Tinha talento para tanto. Poderia ter feito carreira como teatrólogo e até como pensador. O embate constante, entre ser o herdeiro jornalístico do pai e a carreira solo, atrapalhou tanto o escritor quanto o jornalista. Foi um drama que o acompanhou em todo o período em que convivi com ele.

Era capaz de discorrer limpidamente sobre o papel da mídia e os princípios norteadores do jornalismo. Mas abominava a miudeza do dia-a-dia. Não tinha paciência para ler os demais jornais, para se sensibilizar com o fogo fátuo dos modismos diários. E, embora a Folha tenha sido o primeiro jornal a ir para a Internet, não se interessou pelos novos meios. Seu conhecimento se baseava nos fundamentos sólidos de jornalismo que, muito jovem, aprendera com Cláudio Abramo.

Minha relação com ele foi complexa – aliás, provavelmente como tudo na vida de ambos. Depois de lançar as seções Seu Dinheiro e Jornal do Carro no Jornal da Tarde continuei sem espaço no jornal. Decidi procurar a Folha, que já iniciara seu movimento de renovação.

Marquei uma conversa com Caio Tulio, então secretário de redação. Para minha surpresa, apareceu o velho Otávio Frias. Relatei minha dificuldade em emplacar novos projetos no JT – tinha um de consumo e outro de informática. Frias me interrompeu, pedindo que nada falasse sobre o caderno de informática, porque a Folha já estava planejando o seu e não queria que alguma coincidência pudesse ser interpretada como plágio.

Meses depois fui convidado a ser repórter especial, junto com craques como Ricardo Kotscho e Carlos Brickman. Desde o início tentei criar uma seção tipo Seu Dinheiro no jornal. No final do ano, um conjunto de análises minhas provocou a queda do presidente do Banco Nacional da Habitação, o assunto mutuário se tornara central na mídia e Frias chegou a colocar uma breve campanha no ar explorando minhas análises. Consegui, então, a seção Dinheiro Vivo em fins de 1983.

No ano seguinte, Frias passou a pressionar Otavinho para assumir a direção de redação.  Para minha surpresa, ele condicionou sua ida a que eu aceitasse o convite para ser Secretário de Redação de produção. Mal tínhamos trocado algumas palavras no meu curto período na Folha. Tentei recusar, mas Carlos Eduardo Lins da Silva, o emissário do convite, me disse que a aceitação era essencial para Otavio assumir o cargo.

Otavinho era encantado pelo estilo Veja de jornalismo e, provavelmente, o fato de eu ter passado por lá o levou a essa posição. Argumentei que o Dinheiro Vivo dava muita leitura e não queria abandoná-la. Na verdade, desde sempre me arrepiava o ambiente de redação, os jogos de poder, de lisonja, embora no JT tivesse vivido o melhor clima de trabalho de minha carreira. Me autorizaram a contratar dois repórteres para me ajudar no Dinheiro Vivo e lá fui eu para o sacrifício.

Diariamente, quatro jornalistas tínhamos reuniões diárias com Frias, pai, para discutir a pauta: os dois secretários de redação, eu e Caio Tulio, o chefe da Agência Folhas, Dácio Nitrini, e o diretor do Folha da Tarde, Adilson Laranjeiras. Foi uma experiência inesquecível e, até certo ponto, chocante, com um verdadeiro capitão da indústria.

Frias era uma personalidade fascinante, aliás muito semelhante à de outro capitão, Victor Civita, tal como descrito por Mino Carta em artigo recente. Mas era muito mais jornalista. Frio e objetivo no trato dos negócios, era capaz de momentos de sensibilidade, especialmente na análise de caráter, do qual era especialista, e no reconhecimento do talento dos grandes nomes do passado que ele trouxe para o Conselho Editorial, como Luiz Alberto Bahia e Oswaldo Peralva.

Foi o pior período de minha vida, a convivência com o ambiente burocrático, com as quizilas de redação, os puxa-sacos, as tentativas de puxadas de tapete de um colega contra outro.

Fiquei três meses como Secretário de Redação justamente no período de maior turbulência da Folha, o do início do projeto Folha que resultou na demissão de dezenas de jornalistas antigos e sua substituição por uma nova leva. Nos almoços com os editores e Frias, éramos apenas dois – Aloisio Biondi, então editor de economia, e eu – que tentávamos reduzir o alcance do passaralho. Não adiantaria tirar 30 jornalistas e colocar 30 melhores se destruísse a cultura interna do jornal.

De nada adiantou. O passaralho veio. Aguentei uma semana o clima horrível, devo ter perdido uns cinco quilos. Na segunda-feira seguinte sai de casa com duas decisões tomadas: demissão do sindicato (do qual era diretor) e demissão da Secretaria de Redação da Folha.

A reação de Otávio foi imediata:

- Não faça isso. Você vai ficar desprotegido!

Não voltei atrás. O tempo revelaria que o novo projeto Folha foi vitorioso.

Otavio ainda fez duas tentativas de me manter por perto. A primeira, o convite para me tornar ombudsman, que recusei. A segunda, para dirigir o DataFolha, o serviço que a Folha pretendia criar, ampliando as pesquisas eleitorais, que aceitei, sem abrir mão da coluna Dinheiro Vivo.

O velho Frias teve papel central na reforma da Folha, incorporando várias inovações do Jornal da Tarde – que foi relegado a segundo plano pelos Mesquita. Mas a grande cara da Folha foi a Ilustrada, que refletia como nenhum outro caderno a nova geração que surgia das faculdades. Foi obra de Otávio, secundado por Caio Túlio Costa e Matinas Suzuki.

Na época, era curioso observar como jovens jornalistas tentavam se vestir como Otavio, falar como Otávio, ser cerimonioso como Otavio. Nesse período tornou-se, de fato, referência para as novas gerações.

Nossa relação complicou quando veio o Plano Cruzado e denunciei manobras do então consultor geral da República Saulo Ramos. Houve uma negociação entre Frias e Saulo e acabei sendo mandado embora. Tive uma última conversa com Otavinho, onde pedi apenas que mantivesse uma repórter grávida. Fui me despedir de Frias, que me disse que Otavio ficara impressionado com o fato de eu não ter pedido nada.

Ali comecei a desvendar a natureza de Otavinho. Extremamente sensível, vulnerável até, no embate com o irmão Luiz – que herdara a objetividade fria do pai -, era obrigado a seguir o figurino familiar e participar das decisões duras que cabiam ao comandante – como o de demitir colunistas -, mesmo investindo contra sua própria natureza.

Alguns anos depois, terminado o terrível período Sarney-Saulo, estava em minha cidade quando Otavio me ligou convidando para assumir a coluna de Economia. Joelmir Betting estava de mudança para o Estadão.

Foi um período de ampla liberdade jornalística, no qual a estratégia dos jornais consistia em montar sua personalidade em cima da independência e da diversidade de opiniões de seus colunistas.,

Poucas vezes Otavio interveio e apenas em questões de forma. Às vezes eu exagerava na retórica, ele ligava e perguntava se não seria melhor um texto mais sóbrio. Em geral, eram observações pertinentes.

Certa vez, o recém assumido Secretário de Redação Josias de Souza foi se queixar a ele que, em minha coluna, estava adotando linha diferente daquela da Folha. Otavio me ligou para me informar da reclamação de Josias e de sua recomendação:

- Disse para ele te ligar toda segunda-feira para você passar dicas de enfoques.

Após a saída de Fernando Collor, quando ele se tornou saco de pancada de qualquer jornalista, escrevi uma coluna comparando com os tempos de Collor todo poderoso, paparicado por todos, e mencionando, como momento de corte, o editorial de primeira página da Folha, contra Collor, assinado por Otavinho, que marcou, dali para frente, a nova postura da imprensa em relação ao poder. Recebi um telefonema emocionado de Otavio dizendo saber como me custara fazer um elogio a ele, o chefe.

Nos anos seguintes, me coloquei contra a cobertura da Folha em vários episódios de linchamentos, da Escola Base ao caso Chico Lopes, sem jamais ser incomodado. Quando lancei meu livro “O jornalismo dos anos 90”, relatando dezenas de casos de abusos da mídia, grande parte da Folha, a única observação de Otávio foi que, no abre, eu deveria mencionar o fato da Folha ter criado a figura do ombudsman. No que estava certo.

Na cobertura da CPI dos Precatórios, passei um mês andando na contramão, investindo contra a linha de cobertura da sucursal de Brasília e sendo atacado por Fernando Rodrigues, na época ligado a Paulo Maluf.

Quando terminou a cobertura, em um dos almoços do Conselho, Otavio pediu um roteiro sobre como o jornal deveria se comportar nesses momentos de catarse. Não tinha experiência jornalística, mas sabia identificar os pilares centrais nos quais deveria se assentar o jornalismo.

Quando a Internet começou a explodir, escrevi um artigo para uma revista prevendo o fim do modelo tradicional do jornalismo. Nas reuniões do Conselho Editorial da Folha – do qual participei por 15 anos – por diversas vezes falei da importância de se começar a trabalhar o chamado jornalismo de dados (não se usava essa denominação na época).

Era um conselho meramente figurativo, mas que me permitiu convivência com alguns grandes caráteres, como Jânio de Freitas, Rogério Cerqueira Leite.

Otavio pediu que eu transformasse o artigo em um paper para incluir nas discussões sobre o novo projeto Folha. Marcou um almoço para que explicasse para ele o novo tempo que surgia. Asceta, o almoço foi em uma hamburgueria perto da Folha. Disse-lhe que as informações públicas cada vez mais iriam para a Internet, que as notícias quentes sairiam na véspera, na Internet e nas rádios, o que exigiria nova posição dos jornais. Previ, inclusive, o fim das super-redações. Ele ouviu e admitiu que foi apenas por desencargo. Que não entendia, nem queria entender o novo mundo tecnológico.

Todos os que conviveram com ele se lembram com enorme simpatia de seus modos algo tímidos, formais e respeitadores. Mas tinha suas mesquinharias também. Quando finalista do Prêmio Jabuti, com uma coletânea de crônicas que tinha escrito para a Folha, reclamou com uma namorada:

- Nassif foi finalista do Jabuti porque escreve para a Folha. Eu nunca tive reconhecimento, porque sou dono da Folha.

Tempos depois, vetou as crônicas literárias no caderno de Economia.

Mas tinha razão. Era dono de um dos melhores textos que já li. Mas a função de diretor da Folha sempre o impediu de seguir sua verdadeira vocação, de intelectual solitário, inventivo, desafiador. Teve essa oportunidade quando o pai morreu e o irmão assumiu de direito a frente dos negócios – embora há tempos tocasse a aventura bem-sucedida da UOL. Foi-lhe dada a oportunidade de se retirar do dia a dia, mas não aceitou.

A perda do pai, o grande timoneiro do jornal, mesmo afastado há algum tempo da linha de frente, fê-lo perder o rumo. E, aí, cometeu o maior erro de sua carreira, quando atrelou a Folha à linha editorial da Veja e se deixou liderar por Roberto Civita, o mais indigno dos donos de mídia do país.

Antes de sair da Folha, fui atacado pela Veja e respondi através da coluna. Sofri novo ataque e, ai, veio a recomendação de não mais rebater. Ficou claro que um novo tempo surgia no jornalismo brasileiro, a era da infâmia.

Era questão de tempo para minha saída do jornal. Foi-me oferecido ficar na UOL, mas recusei. Tivemos uma última e dolorida conversa, onde o alertei para a imprudência de caminhar a reboque da Veja. Disse-lhe que um jornal líder do mercado de opinião, como era a Folha, não podia ir a reboque sequer do The New York Times, quanto mais da Veja.

Foi em vão. Nos anos seguintes, sem os conselhos sábios do velho Frias, a Folha mergulhou na aventura dos factoides e do discurso de ódio. Tornou-se uma Veja de segunda mão, acentuando uma implicância irracional que Otávio sempre devotou a Lula e ao PT. Passei a ser alvo de muitos ataques, em represália às críticas que fazia à linha do jornal.

Nos últimos anos, Otávio passou a empreender uma dura tentativa de volta às raízes, de tentar reconstituir a face perdida da pluralidade. Abriu espaço para uma diversidade contida. Mas longe da grande ousadia dos anos 80, quando o jornal entendeu o verdadeiro papel da mídia, como agente civilizatório, e ajudou a empurrar a campanha pelas diretas.

Texto reproduzido do site: jornalggn.com.br

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