Texto publicado originalmente no site da Revista Trópico, em 9/9/2009
"O jornalismo oxigena a vida pública"
Por Humberto Pereira da Silva
O diretor de Redação da "Folha", Otavio Frias
Filho, fala sobre seu novo livro, “Seleção Natural”, com 25 ensaios sobre
cultura e política
No mundo atual, cuja característica pregnante é a
especialização, a maioria dos jornalistas fica confinada a uma área restrita de
atuação: encontrar um fio condutor que ligue a multiplicidade de caminhos da
cultura e da política e pontificar em seus diversos campos é um desafio que
poucos enfrentam.
Na contracorrente da máxima de que a cada um está reservado
nicho próprio de atuação, Otavio Frias Filho, diretor de Redação da “Folha de
S. Paulo”, mantém, com espírito polimático, fértil produção intelectual, na
qual transita com igual desenvoltura e inteligência refinada da crítica de
cultura ao comentário político. É também dramaturgo bissexto, autor de
"Tutankaton" e "Típico Romântico", e já publicou, entre
outros, os livros "Queda Livre" (2003, Companhia das Letras) e
"De Ponta-Cabeça" (2000, ed. 34).
“Seleção Natural: Ensaios de Cultura e Política”
(Publifolha), sua obra mais recente, atesta mais uma vez a sua capacidade de
refletir sobre os mais variados temas, numa linguagem tão límpida quanto
envolvente.
O livro reúne 25 ensaios concebidos ao longo dos últimos 23
anos, que tratam do cinema (Abel Gance, Coppola e Truffaut, entre outros), do
teatro (Heiner Müller, Nelson Rodrigues e "Hamlet"), da literatura
(Dostoiévski, Orwell e Monteiro Lobato) e mesmo da filosofia política
(Tocqueville). O autor também não desvia o olhar de fenômenos midiáticos
contemporâneos, como o da princesa Diana, e de debates candentes da época, como
a teoria da evolução e o fim da história. No conjunto, os textos revelam
sobretudo um intelectual preocupado com o presente, nesta época que não
valoriza essa forma de inquietação, como realça Marcelo Coelho no posfácio,.
"Quando escrevo textos como estes, penso que o tema
ostensivo é um pretexto para discorrer sobre outro tema subjacente",
explica Frias Filho na entrevista a seguir.
Autor da célebre "Carta Aberta ao Sr. Presidente da
República", publicada na "Folha" (em 25/4/1991) e dirigida a
Fernando Collor de Mello às vésperas da renúncia (1992), o jornalista diz hoje
que o governo do ex-presidente "foi bonapartista", tentando pairar
sobre a sociedade e confrontar todos os grupos de influência ao mesmo tempo.
"Caiu, provavelmente, por isso", diz. A "Carta" é
reproduzida no livro.
Frias Filho também reflete na entrevista sobre o jornalismo
atual, que para ele conserva, entre suas funções primordiais, a de
"oxigenar a vida mental pública por meio da controvérsia e do
debate".
***
Começo pelo último ensaio do livro, “A Descendência de
Darwin”. Nele, à medida que você expõe a teoria evolucionista de Darwin, o que
fica como interrogação é: no comportamento humano, qual seria a fronteira entre
o que é natural e o que é adquirido?
Otavio Frias Filho: Acho que não existe, provavelmente, uma
fronteira, mas uma superposição de elementos inatos e adquiridos. Também penso
ser provável que em última análise os elementos adquiridos atuem no sentido de
reforçar os inatos.
Com esse artigo, que dá título ao livro, você quis sugerir
que optou pela “seleção” de seus textos do passado que não ficaram premidos
pela urgência e contingências do momento em que foram escritos? A respeito do
publicista português Victor Cunha Rego, você pondera que seus escritos sofrem
as vicissitudes do texto jornalístico: premido entre a véspera e o dia
seguinte, acabam presos às contingências.
Frias Filho: Quando escrevo textos como estes, coletados no
livro "Seleção Natural", penso que o tema ostensivo é um pretexto
para discorrer sobre outro tema subjacente. Por exemplo, a pretexto de comentar
o filme "Peggy Sue", de Francis Coppola, abordo a sensação de que o
tempo emocional não é mais capaz de fluir. Ou, a pretexto de falar sobre o
jornalista Victor Cunha Rego, escrevo sobre uma geração de intelectuais que se
viu dividida entre a esperança de reforma social e o horror ao totalitarismo de
esquerda. E assim por diante. O título, bela ideia do editor Arthur Nestrovski,
faz um trocadilho, pois além de o livro terminar com o texto alusivo ao
darwinismo, do volume constam textos que a meu ver sobreviveram à passagem dos
anos.
Ao tratar de “seleção natural”, como você vê o embate entre
o discurso da ciência e o da moral, presente em debates recentes, como o da
proibição do fumo em ambientes fechados. O que a discussão sobre “seleção
natural” nos ensinaria a respeito do hábito de fumar?
Frias Filho: Para além da dependência química, que é um fato
objetivo, concordo com os que pensam que fumar corresponde ao impulso de morte,
presente em todo ser vivo, de que fala a psicanálise. O que está ocorrendo em
nossa época, na minha opinião, é que a longevidade média alcançada pelo ser
humano ao longo do século 20 torna irracionais hábitos que tinham sua lógica
numa sociedade em que a expectativa de vida era pouca. Em outras palavras, se
você está numa trincheira na guerra, fume muito. Se vive num ambiente em que
provavelmente chegará aos 90 ou mais, fumar implica uma espécie de suicídio por
câncer. Ora, há formas menos dolorosas de se matar.
Ainda no ensaio sobre a descendência darwinista, como fica o
mito da neutralidade científica? Penso que dessa questão se possa derivar a da
autonomia jornalística.
Frias Filho: Penso que não existe neutralidade científica
como um valor absoluto, mas que fazer ciência é buscar aproximar-se desse
horizonte, que recua conforme avançamos rumo a ele. Algo semelhante, de fato, poderia
ser dito sobre a neutralidade jornalística.
Nos primeiros textos do livro você comenta alguns filmes
marcantes dos anos 80: “Blade Runner”, “Peggy Sue - Seu Passado a Espera”,
filmes sobre a Guerra do Vietnã... A se tomar o cinema por referência, como
você vê a percepção do presente para cada geração?
Frias Filho: O cinema funcionou como uma forma de esperanto
na minha geração (a expressão é do poeta e crítico Nelson Ascher). Por isso, ao
abordar temas como presente, passado, história, mercadoria, psicanálise etc.
tomei como pretexto certos filmes que me agradavam ou interessavam na
juventude. Adotei essa linguagem, que era a minha e de meus amigos.
Você acredita que para a geração atual assistir a um filme
sobre a Guerra do Vietnã –“Apocalipse Now”, “Platoon” ou “Nascido para Matar”-
tem o mesmo sentido de apreensão histórica que assistir a um sobre a Segunda
Guerra Mundial?
Frias Filho: Não saberia responder. De toda forma, me parece
que o cinema sobre a Guerra do Vietnã é mais crítico, analítico etc. do que o
cinema americano sobre a Segunda Guerra Mundial. Este ainda é um cinema
ingênuo, quando não publicitário.
Um filme com inquietações futurísticas atiça a curiosidade
sobre o crivo do tempo. Hoje, ao olhar para um filme como “Blade Runner”, você
acredita que nele estão implícitas questões que nos possibilitam compreender
melhor o presente?
Frias Filho: Para mim, o que "Blade Runner" e
outros filmes comentados no livro atestam é uma percepção inconsciente de que o
tempo presente se eternizou, o que é uma forma diversa de dizer que a História
provavelmente acabou. Claro que continua a haver guerras, revoltas, 11 de
Setembro etc. etc. Dizer que a História acabou significa apenas dizer que não
existe no horizonte disponível nenhum modelo alternativo ao capitalismo
democrático que pareça capaz de transcendê-lo.
No texto sobre “Peggy Sue”, você fala do encanto que os anos
50 exerceram nas pessoas que viviam nos anos 80. Você cita outros filmes dos
anos 80 que têm referências no imaginário dos anos 50: “Veludo Azul”, de David
Lynch, “O Selvagem da Motocicleta”, de Francis Coppola. Quando olhamos esses
filmes hoje, que sentimentos, ou espírito de época dos anos 80, estariam
latentes neles e que nos permitiria vê-los como imagens dos anos 80 e não dos
50?
Frias Filho: Na minha mitologia pessoal, os anos 1950 foram
os "últimos" da História. Desde então as representações do real são
paródias, pastiche, simulacro (para usar um termo típico dos anos 1980). O que
existe de novo, a meu ver, nos anos 1980, é que talvez eles configurem pela
primeira vez uma década que é feita da mistura indiscriminada e deliberada de
estilos das décadas anteriores. Isso, aliás, apenas se prolongou nos anos 1990
e se propaga ainda mais hoje em dia. A internet é o veículo por excelência da
simultaneidade, do cancelamento do tempo.
“Napoléon”, de Abel Gance, filmes sobre a Guerra do Vietnã,
“Todos os Homens do Presidente” e mesmo “Cidadão Kane” têm no horizonte a
“ficcionalização” de acontecimentos reais. Em que medida, para você, o cinema
distorce ou mitifica a realidade?
Frias Filho: Eu diria que sempre, de todas as maneiras, em
qualquer caso, até mesmo e sobretudo o cinema documental.
Num mundo em que as pessoas se habituaram à cultura da
imagem a impressão de realidade em um filme é mais forte que a realidade tátil
exibida numa peça de teatro?
Frias Filho: Diria que sim. E iria até o ponto de dizer que
o cinema, como apelo às faculdades sensíveis, é em si superior ao teatro e a
todas as outras formas de arte. O cinema é a "arte total" que Wagner
via na ópera. Não quer dizer que seja "melhor" em termos artísticos
do que o teatro ou a literatura, claro. Aí, cada obra é uma obra, com seu valor
intrínseco.
Você observa que, embora a composição de obras de arte seja
infinita, a partir de certo momento observa-se escassez no efeito que uma específica
expressão artística possa suscitar. Em que medida no mundo em que vivemos há
necessidade de fruição de uma obra de arte no mesmo sentido que para gerações
passadas?
Frias Filho: Na minha opinião, a obra de arte passou a ter
uma dimensão cada vez mais ornamental, por um lado (fica "bem" gostar
de arte contemporânea, fica "bem" ter uma tela abstrata cara etc.), e
recreativa, por outro (música pop, cinema comercial etc.) É provável que uma
verdadeira "fruição" artística seja menor ou mais rara hoje, mas é
também provável que sempre tenha sido uma minoria de pessoas, nesta como em
outras épocas, as que se dedicam a perseguir algo assim. Comparo o sentimento
artístico ao religioso e concordo com quem pensa que a modernidade está matando
ambos.
Você afirma que poucos suportam ler Virgílio ou assistir a
Racine. Ao mesmo tempo, grande parte do público moderno é refratária ao
modernismo. Mas não é o caso de pensar que, com a indústria cultural, o que se
mantém é o divórcio entre arte erudita e popular?
Frias Filho: Não sei se há divórcio entre arte erudita e
popular, mas talvez a canibalização da arte erudita pela única vertente de arte
popular que sobreviveu -e que, além de sobreviver, dominou o mundo: a arte pop
integrada ao consumo de massa.
Monteiro Lobato e Nelson Rodrigues são destacados em seu
livro porque as obras deles sofreram incompreensões em consequência de posições
políticas e ideológicas que tiveram. Como você vê a valorização de uma obra de
arte em função do comprometimento político do artista?
Frias Filho: Estou entre os que pensam que arte e política
são domínios autônomos. Pode até haver um grande artista que escreve autênticas
obras de arte em obediência cega ao Partido: Brecht, por exemplo. Pode haver um
cidadão fascista e detestável que tenha sido um grande escritor: Céline, por
exemplo (não gosto dele, mas aceito o cânone). Na maioria das vezes, no
entanto, a política piora o artista, até porque os artistas quase sempre não
entendem nada de política, simplesmente não está em seu repertório. Mas ainda
aqui há exceções: Arthur Miller, talvez.
Sobre Alexis de Tocqueville, você ressalta que para ele, na
sociedade democrática, os indivíduos estão “aprisionados na vida privada”,
imersos na busca de “prazeres materiais” e submetidos à “tirania da maioria”.
Essa afirmação diz algo a respeito das constantes crises recentes no Senado
Nacional?
Frias Filho: (Risos) Acho que a conexão seria longínqua
demais... Mas Tocqueville foi um dos que previram o hedonismo peculiar da nossa
época, voltado à maximização dos prazeres e confortos individuais, sim, mas de
forma calculista, cultivada a longo prazo, na sombra de uma longevidade
estendida.
No artigo sobre o PSDB, você realça que em nossa história o
empreendimento eleitoral de FHC não veio como uma onda irresistível, de fora
para dentro do Estado, como nas eleições de Getúlio Vargas, Juscelino, Jânio e
Collor. As condições que levaram aos anos FHC e o temperamento ambíguo do PSDB
dificultam o retorno deste partido ao Planalto?
Frias Filho: Penso que governar nas circunstâncias de hoje
significa duas coisas. Uma, obedecer ao núcleo dinâmico da economia (que é o
setor minoritário da sociedade integrado de fato ao mundo e que financia as
campanhas eleitorais). Duas, destinar uma parcela dos impostos a subsidiar um
mínimo de condições de vida no estrato mais pobre. Essa é a fórmula, aliás, do
que foi chamado de Consenso de Washington. Para se eleger, cada candidato terá
de fazer promessas não apenas de manter, mas de ampliar esse colchão social.
Em 1991, em carta aberta a Collor, você escreveu que o
governo do então presidente da República seria tragado pelo turbilhão do tempo.
Você entende que o atual governo Lula, que se mantém intacto com as crises que
o cercam, com o exemplo do passado aprendeu a lidar melhor com a imprensa? Ou
há condicionantes específicos do governo Collor que elucidam sua derrocada?
Frias Filho: O governo Collor era bonapartista, tentou
pairar sobre a sociedade e até confrontar todos os grupos de influência ao
mesmo tempo (Congresso, Judiciário, sindicatos, entidades empresariais,
imprensa). Caiu, provavelmente, por isso. Deixou como legado a
"agenda", que continua sendo a do país hoje, dito de forma simplista,
modernização da economia por meio de sua exposição à competição interna e
externa.
Para você, a vida da cantora Madonna tem presença e efeitos
tão públicos quanto decisões do Banco Central. Com isso, a espetacularização a
que fenômenos de mídia estão expostos seria uma patologia de nossos dias e ao
jornalismo caberia configurar o retrato de uma época tal como percebido pelos
contemporâneos?
Frias Filho: Não sei se a espetacularização é uma patologia,
gostaria de acreditar que sim, mas talvez ela seja apenas uma expressão,
multiplicada pelos meios técnicos de nossa época, do narcisismo próprio de todo
ser humano, de todo ser vivo.
Configurar um retrato da época tal como percebida pelos
contemporâneos é um dos propósitos legítimos do jornalismo, mas há outros.
Oxigenar a vida mental pública por meio da controvérsia e do debate seria um
deles. Municiar o cidadão com um repertório de informação e opinião que lhe
permita exercer melhor a cidadania, conforme queria Jefferson, seria outro.
O livro:
“Seleção Natural: Ensaios de Cultura e Política”, de Otavio
Frias Filho. Posfácio de Marcelo Coelho.. Publifolha, 218 págs.
mberto Pereira da Silva
É professor de filosofia e sociologia no ensino superior e
crítico de cinema, autor de "Ir ao cinema: um olhar sobre filmes"
(Musa Editora).
Texto reproduzido do site: revistatropico.com.br
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