Foto: José Carmo/Global Imagens
Publicado originalmente no site do Jornal de Notícias, em 21/Junho/2018
"O jornalismo está embriagado com a tecnologia"
Dominique Wolton defende que é preciso "reinventar a
liberdade da informação"
Por Sérgio Almeida
Crítico severo do jornalismo atual, o investigador francês
Dominique Wolton advoga que é preciso "reinventar a liberdade da
informação". Para isso, garante, é preciso libertar-se da "tirania do
capital e da tecnologia".
O conformismo e a indiferença não têm lugar no discurso
sempre afiado do sociólogo francês Dominique Wolton. Aos 71 anos, o diretor de
investigação do mítico Centre National de la Recherche Scientifique mantém uma
posição profundamente crítica em relação aos ditames do jornalismo atual, que
diz estar aprisionado pela tirania do dinheiro e da tecnologia, pelo que é
preciso "reinventar a liberdade da informação".
Intitulou a sua conferência em Serralves de "Utopia da
informação". A missão de informar com qualidade tornou-se hoje quase uma
impossibilidade?
É um facto. Nunca tivemos acesso a tanta informação nem
tantos meios tecnológicos ao nosso dispor, mas também nunca houve tantos erros,
tantas "fake news" e tanta falta de confiança nos jornalistas. São
muitas contradições. A proximidade dos jornalistas do poder político levou a
uma perda de confiança por parte do público. Um terceiro fator é o da
inteligência crítica dos recetores. Hoje, como todos os cidadãos têm acesso a
uma panóplia de informações, o seu sentido crítico tornou-se mais agudo e permitiu-lhes
ver que a estandardização da informação é uma realidade. O Mundo inteiro trata
a informação da mesma maneira.
O cidadão médio estará hoje mais informado do que há 20
anos?
Tenho dúvidas. O volume da informação não significa
qualidade da informação. Nem tão-pouco de variedade da informação. O modelo
vigente em todo o Mundo é o ocidental, mais concretamente o europeu. Embora a
verdade e a liberdade sejam conceitos universais, a sua aplicação deve variar
de acordo com a cultura em causa. Não se pode aplicar o mesmo modelo
indiscriminadamente em toda a parte. Esse foi um dos grandes erros cometidos:
ignorar as especificidades culturais e religiosas. A verdade é que nos
confrontamos com duas tiranias. A primeira é a crença de que a tecnologia
liberta. Não é verdade. O jornalismo está embriagado com o progresso
tecnológico. A segunda é o dinheiro, que condiciona tudo. O jornalismo está
aprisionado por essas duas tiranias.
Acredita nos "cidadãos jornalistas"?
Isso é uma estupidez. Claro que todos podemos e devemos
contribuir neste processo, mas sem jamais nos substituirmos aos profissionais
desta matéria. Ninguém pede a uma pessoa sem formação que seja professora, por
exemplo. Todas as ideias da transparência da informação, da interatividade, do
jornalismo do cidadão são uma treta. Os jornalistas venderam a sua alma.
Os jornalistas ainda não assimilaram a ideia de que já não
possuem o monopólio da informação?
A tragédia vem da subordinação dos jornalistas à técnica.
Passa-se o mesmo com os professores: é uma classe conservadora e corporativa
que tarda em reagir às mudanças do mundo. Mas podemos dizer o mesmo dos médicos
ou dos políticos...
Os estudantes de jornalismo continuam a reproduzir os
antigos dogmas?
Deviam ser muito mais críticos. Eles vão ser esmagados pela
nova realidade.
O que deviam aprender nas escolas?
Muita História, análise comparativa dos media, crítica da
evolução técnica, valorização do trabalho humano, luta contra o capitalismo,
evitar a concentração.
Sente que a qualidade dos estudantes tem decrescido?
Não! É um paradoxo, mas são muito mais educados do que
noutros tempos. E muito mais bem formados. A qualidade dos estudantes é boa,
mas o conteúdo crítico dos cursos não o é. Continuam a incutir a mesma
estupidez aos jornalistas, dizendo-lhes que podem fazer ao mesmo tempo
televisão, rádios, jornais e Internet. É um erro. Não se pode pedir ao mesmo
jornalista que filme, trate do som, coloque as perguntas e edite o artigo.
É, por isso, um erro falar-se em jornalismo digital.
Claro! O futuro não é o jornalismo digital. Existe apenas o
jornalismo.
Há 20 anos, dizia que o impacto da Internet no jornalismo
seria inferior ao da rádio e da televisão muitas décadas antes. Acha que tinha
razão?
Sim. Todas representam avanços tecnológicos mas a rádio e a
TV estavam associadas a uma ideia de democratização das massas. A Internet é um
avanço tecnológico superior, mas faz da segmentação a sua principal força.
Aposta sobretudo na liberdade individual, ao dar a cada um aquilo que ele quer
consumir. Em termos de progresso da sociedade, a Internet contribui para a
segmentação social, não para a coesão.
Até que ponto é legítimo acharmos que a sociedade da
informação favorece os populismos?
Para já, o próprio termo "sociedade da informação"
é um disparate. Não existe nem existirá. A informação é do poder, não é da
democracia. É preciso reinventar a liberdade da informação, adaptando-a a novos
contextos. Como estudioso desta área há mais de 30 anos, entendo que o papel
dos jornalistas como contrapoder continua a ser indispensável. Por isso, é
preciso que reflitam primeiro sobre o seu papel, o que não fazem. É uma classe
muito corporativa. Faz crítica a toda a gente, mas recusa-se a fazer
autocrítica.
Se há ideia que percorre os seus livros é a de que
informação e comunicação são distintas. Apesar dos alertas, esses conceitos
ainda são confundidos?
A grande loucura cometida nestas últimas décadas foi a
desvalorização do conceito de comunicação e a valorização da informação. A
comunicação humana passou para segundo plano, em contraste com a comunicação
técnica.
Para termos melhor jornalismo não precisamos, em última
instância, de melhores cidadãos?
Não. Se o público valoriza os tabloides, a responsabilidade
é sua, mas a principal dose de culpas é da oferta. Se o a oferta cultural
disponível - de cinema, televisão, rádio ou jornais - for feita unicamente em
função da oferta, é claro que teremos a supremacia do tabloide. Estamos ao
nível do pão e circo. É responsabilidade dos jornalistas alargar a oferta. É
preciso acabar com esta tirania.
Texto e imagem reproduzidos do site: jn.pt
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