Gianni Carta (Foto Divulgação)
Publicado originalmente no site da revista CartaCapital, em 5 de maio de 2019
Memória: meus dias privilegiados ao lado de Gianni Carta
Por Matheus Pichonelli
Ele se tornou, para todos os que trabalharam com ele, uma
referência, um amigo
Eu queria saber me despedir dos meus amigos sem precisar
falar de mim e de tudo o que aprendi com eles, mas no caso do Gianni, que
morreu neste domingo, por volta das 7h, em Paris, em decorrência de
complicações de um câncer nas vias biliares, isso é quase impossível.
Em 2011, eu trabalhava como editor interino do site de
CartaCapital enquanto esperava a chegada do novo chefe, que em breve assumiria
o posto. O chefe seria o Gianni Carta, de quem até então só conhecia como
leitor.
Os momentos que antecediam sua chegada ao Brasil, vindo da
Europa, tinham a marca daquela tensão das novidades: o novo chefe, afinal,
traria na bagagem uma larga experiência como correspondente, livros publicados,
dezenas de entrevistas com figuras históricas. Como me comportar sem que
parecesse, perto dele, um foca, como chamamos os jornalistas em começo de
carreira?
“Fica tranquilo, ele é gente finíssima”, diziam todos os que
o conheciam. Todos mesmo.
Mal sabia que estava prestes a ganhar muito mais do que um
chefe – e não só porque se tratava de um chefe que delegava e perguntava nossa
opinião antes de tomar qualquer decisão, coisa rara em qualquer profissão.
Durante meses sentamos um de frente para o outro e pude
atualizar o conceito de privilégio. De onde estava, ficava admirado com a
facilidade com que ele falava com meio mundo por telefone (em francês, inglês,
italiano, espanhol; só dependia de quem estava do outro lado da linha).
Não tinha dia que ele não chegava com o jornal rabiscado,
mostrando empolgado os assuntos do dia, mostrando qual tema poderíamos abraçar
e contar do nosso jeito – no caso, nós, os “meninos do site”, um grupo que,
como todos naquele início dos anos 2010, ainda não sabia exatamente para onde
nos levava a tal da internet.
Um dia, vendo minha decepção ao ler os comentários de
leitores a referendar as ideias (já então em voga) obscurantistas de um
vereador que queria instituir em São Paulo um certo “Dia do Orgulho Hétero”,
ele me perguntou: “por que você não escreve uma pensata sobre isso?”
Era uma sugestão pouco comum para quem, caxias como eu era,
ainda andava abraçado aos manuais da impessoalidade jornalística debaixo do
braço.
“Como assim pensata, Gianni? Não posso dar minha opinião.
Isso me compromete”.
Foi então que ele me ensinou que o problema não era ter
opinião sobre fatos, mas como as opiniões interferem nos fatos. Que podemos ser
justos e honestos com o leitor quando expomos nossas convicções e deixamos
claro o que pensamos e o quanto estamos abertos a novas ideias – inclusive para
mudar de opinião.
Se não fosse essa conversa eu jamais teria feito qualquer
texto opinativo no meio do noticiário – e é o que tenho feito, desde então, há
mais de oito anos.
No breve período em que ele ficou no comando do site, fiz
amigos para a vida inteira, muitos apresentados por ele. Tão Gomes Pinto,
Edgard Catoira, José Antonio Lima, Fernando Vives, Maria Clara Parada, Clara
Roman, Lino Bocchini, Gabriel Bonis e tantos outros que fizeram daquele site um
espaço de debate dos mais aguerridos.
Tudo isso só aconteceu porque tínhamos o apoio, as
orientações, a confiança do Gianni. Não é pouco.
Em pouco tempo, ele se tornou, para todos os que trabalharam
com ele, uma referência, um amigo e um parceiro de viagens, como a que fizemos
até Valinhos, onde fomos recepcionados como reis em um churrasco oferecido pelo
Dó, velho amigo da família.
Quando ele decidiu voltar a Paris, fizemos uma grande
despedida no bar onde rabiscávamos nossas ideias.
Foi a última reunião daquela turma que ele ajudou a formar.
Mal sabia que, naquela noite, nos despedíamos também de uma época – uma época
em que ainda era possível pensar em um país mais generoso, mais humano, mais
elegante – como ele era.
De longe, seguíamos em contato. Foi do Gianni, de Paris, um
dos primeiros telefonemas que recebi quando meu filho nasceu, prematuro,
precisando de forças e bons pensamentos.
No breve telefonema, deu tempo de lembra-lo de uma antiga
promessa: a de que ele faria o prefácio do meu livro quando finalmente reunisse
todas crônicas (“pensatas”, como ele gostava de dizer) da nossa época para
publicação em papel.
Pudera: ele foi peça fundamental para que elas surgissem. E
vai seguir assim para sempre, guardado nas melhores lembranças. Junto com a
saudade e a gratidão.
Texto e imagens reproduzidos do site: cartacapital.com.br
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