segunda-feira, 6 de maio de 2019

Memória: meus dias privilegiados ao lado de Gianni Carta

Gianni Carta (Foto Divulgação) 

Publicado originalmente no site da revista CartaCapital, em 5 de maio de 2019

Memória: meus dias privilegiados ao lado de Gianni Carta

Por Matheus Pichonelli  

Ele se tornou, para todos os que trabalharam com ele, uma referência, um amigo

Eu queria saber me despedir dos meus amigos sem precisar falar de mim e de tudo o que aprendi com eles, mas no caso do Gianni, que morreu neste domingo, por volta das 7h, em Paris, em decorrência de complicações de um câncer nas vias biliares, isso é quase impossível.

Em 2011, eu trabalhava como editor interino do site de CartaCapital enquanto esperava a chegada do novo chefe, que em breve assumiria o posto. O chefe seria o Gianni Carta, de quem até então só conhecia como leitor.

Os momentos que antecediam sua chegada ao Brasil, vindo da Europa, tinham a marca daquela tensão das novidades: o novo chefe, afinal, traria na bagagem uma larga experiência como correspondente, livros publicados, dezenas de entrevistas com figuras históricas. Como me comportar sem que parecesse, perto dele, um foca, como chamamos os jornalistas em começo de carreira?

“Fica tranquilo, ele é gente finíssima”, diziam todos os que o conheciam. Todos mesmo.

Mal sabia que estava prestes a ganhar muito mais do que um chefe – e não só porque se tratava de um chefe que delegava e perguntava nossa opinião antes de tomar qualquer decisão, coisa rara em qualquer profissão.

Durante meses sentamos um de frente para o outro e pude atualizar o conceito de privilégio. De onde estava, ficava admirado com a facilidade com que ele falava com meio mundo por telefone (em francês, inglês, italiano, espanhol; só dependia de quem estava do outro lado da linha).
Não tinha dia que ele não chegava com o jornal rabiscado, mostrando empolgado os assuntos do dia, mostrando qual tema poderíamos abraçar e contar do nosso jeito – no caso, nós, os “meninos do site”, um grupo que, como todos naquele início dos anos 2010, ainda não sabia exatamente para onde nos levava a tal da internet.

Um dia, vendo minha decepção ao ler os comentários de leitores a referendar as ideias (já então em voga) obscurantistas de um vereador que queria instituir em São Paulo um certo “Dia do Orgulho Hétero”, ele me perguntou: “por que você não escreve uma pensata sobre isso?”
Era uma sugestão pouco comum para quem, caxias como eu era, ainda andava abraçado aos manuais da impessoalidade jornalística debaixo do braço.

“Como assim pensata, Gianni? Não posso dar minha opinião. Isso me compromete”.

Foi então que ele me ensinou que o problema não era ter opinião sobre fatos, mas como as opiniões interferem nos fatos. Que podemos ser justos e honestos com o leitor quando expomos nossas convicções e deixamos claro o que pensamos e o quanto estamos abertos a novas ideias – inclusive para mudar de opinião.

Se não fosse essa conversa eu jamais teria feito qualquer texto opinativo no meio do noticiário – e é o que tenho feito, desde então, há mais de oito anos.

No breve período em que ele ficou no comando do site, fiz amigos para a vida inteira, muitos apresentados por ele. Tão Gomes Pinto, Edgard Catoira, José Antonio Lima, Fernando Vives, Maria Clara Parada, Clara Roman, Lino Bocchini, Gabriel Bonis e tantos outros que fizeram daquele site um espaço de debate dos mais aguerridos.

Tudo isso só aconteceu porque tínhamos o apoio, as orientações, a confiança do Gianni. Não é pouco.

Em pouco tempo, ele se tornou, para todos os que trabalharam com ele, uma referência, um amigo e um parceiro de viagens, como a que fizemos até Valinhos, onde fomos recepcionados como reis em um churrasco oferecido pelo Dó, velho amigo da família.

Quando ele decidiu voltar a Paris, fizemos uma grande despedida no bar onde rabiscávamos nossas ideias.


Foi a última reunião daquela turma que ele ajudou a formar. Mal sabia que, naquela noite, nos despedíamos também de uma época – uma época em que ainda era possível pensar em um país mais generoso, mais humano, mais elegante – como ele era.

De longe, seguíamos em contato. Foi do Gianni, de Paris, um dos primeiros telefonemas que recebi quando meu filho nasceu, prematuro, precisando de forças e bons pensamentos.

No breve telefonema, deu tempo de lembra-lo de uma antiga promessa: a de que ele faria o prefácio do meu livro quando finalmente reunisse todas crônicas (“pensatas”, como ele gostava de dizer) da nossa época para publicação em papel.

Pudera: ele foi peça fundamental para que elas surgissem. E vai seguir assim para sempre, guardado nas melhores lembranças. Junto com a saudade e a gratidão.

Texto e imagens reproduzidos do site: cartacapital.com.br

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