Clóvis Rossi, jornalista da 'Folha de S. Paulo'. Sergio Pedreira EFE
Publicado originalmente no site do jornal El País Brasil, em 14 de junho de 2019
Morre Clóvis Rossi, o mestre de várias gerações de
jornalistas brasileiros
Colunista da 'Folha de S. Paulo' morreu nesta sexta ao 76
anos. Destacou-se por seu trabalho como repórter de Política, enviado especial
e correspondente. E também por sua generosidade
Por Felipe Betim e Flávia Marreiro
Clóvis Rossi tinha 76 anos e uma coluna no jornal Folha de
S. Paulo, mas nunca deixou de ser repórter. "Reportagem é a melhor versão
da verdade", disse recentemente o veterano jornalista que não queria ser
chefe. Na profissão desde 1963, Rossi morreu na madrugada desta sexta-feira em
sua casa. Estava se recuperando de um ataque cardíaco que teve uma semana
antes, como ele mesmo revelou na quarta-feira em uma coluna intitulada Boletim
Médico. Contou a seus fiéis leitores o motivo de sua ausência e detalhava como
tinham sido as operações. Garantia que não era grave e que pretendia voltar à
rotina de trabalho na semana que vem. "Agradecimento também aos
companheiros da Folha que me ampararam e até mentiram dizendo que estavam
sentindo minha falta”, concluía, com o humor de sempre, o artigo. Ninguém
imaginava que seria seu último.
Vários jornalistas de diferentes veículos e gerações
relataram nas primeiras horas desta sexta-feira quão importante Rossi tinha
sido em sua vida profissional. "Sensação de orfandade, como se tivesse
morrido o adulto da sala, ou cara que foi modelo para a minha geração",
escreveu o repórter do Nexo João Paulo Charleaux. Há algo em que todos
concordam: a generosidade. Não era só um jornalista admirável, que escrevia
rapidíssimo textos muito compreensíveis sobre temas densos, sem ser simplista,
mas também uma pessoa maravilhosa que sempre dava uma mão aos colegas.
Incluindo os mais jovens, aos quais gostava de ensinar. "Devo tanto a ele.
Me mandou esta mensagem na quarta: 'Pata, foram quatro [stents], um coração
novo, mas o mesmo amor por você'. Difícil parar de chorar", contou a
ex-correspondente e colunista da Folha Patricia Campos Mello no Twitter.
Rossi começou sua carreira em 1963, um ano antes do golpe
militar no Brasil, e trabalhou em jornais como O Estado de São Paulo, Correio
da Manhã e Jornal do Brasil. Escrevia na Folha desde 1980 e era membro de seu
conselho editorial. Tornou-se uma referência da casa e da renovação
jornalística que na época empreendia, destacando-se pelo trabalho como repórter
de Política, enviado especial a todas as partes do mundo e correspondente na
Argentina e na Espanha. A Folha recordou em seu obituário que, para ele, a
melhor reportagem seria a seguinte. Mas tinha um orgulho especial pela
cobertura que fez da transição espanhola —também é mítica sua cobertura em 2004
do ataque terrorista em Madri. Sempre manteve uma relação próxima com a
Espanha: seus times de futebol eram o Palmeiras e o Barcelona; seus jornais
favoritos, a Folha e o EL PAÍS, que devorava todos os dias e citava com
frequência em sua coluna. Chegou a escrever no blog Algo Mais que Samba, deste
jornal. Quando em 2013 foi criado o EL PAÍS Brasil, nossa edição brasileira, foi
convidado para ser colunista, mas teve de rejeitar por conta do contrato de
exclusividade que mantinha com a Folha. "Sinto como se estivesse dizendo
não ao Barcelona", lamentou na época.
Rossi também cobriu a Revolução dos Cravos, em Portugal, e
fez história como correspondente na Argentina ainda durante a última ditadura
militar. Viveu e relatou tantos golpes e transições democráticas, incluindo a
do Brasil, que há um elemento essencial presente em todos os seus textos: o
apreço pela democracia.
Seu período na Argentina também serviu para ampliar o olhar
para os vizinhos latino-americanos e estabelecer o país como o pilar de
qualquer cobertura internacional dos jornais brasileiros. A estreita relação
com a América Latina –não só entre Brasil e Argentina– resultou nos prêmios
Maria Moors Cabor, da Universidade Colúmbia, e o da Fundación Nuevo Periodismo
Iberoamericano, da Fundação Gabriel García Márquez. No entanto, sua longa
jornada deu a ele uma visão cética e desapaixonada dos fatos. Mesmo nos períodos
de maior otimismo na região, como durante a onda de esquerda na primeira década
dos anos 2000.
Era amado pelos focas, com quem sempre foi generoso. Assim
como foi aberto com os colegas mais novos e mais velhos durante toda a
carreira. A sorte do dia de um trainee da Folha era calhar em uma pauta com
ele. A sorte dos já profissionais, especialmente dos correspondentes e enviados
especiais, também. O orgulho de estar sob a sombra de seus quase dois metros de
altura estalava quando um diplomata ou grande nome dos governos brasileiros e
estrangeiros, especialmente na América Latina, faziam questão de parar para
falar com ele nas coberturas e halls de hotéis, numa inversão de papéis.
Raramente anotava, escrevia rápido como ninguém, diante dos olhares admirados. Era
uma performance tão desconcertante que restava aos assistentes repetir a si
mesmo: "Não tentem repetir isso em casa, crianças".
Clóvis Rossi foi acima de tudo um mestre de jornalistas, uma
referência constante a quem se dedica ou quer se dedicar a esta profissão. Em
seu livro O Que é Jornalismo, obrigatório nas universidades, explica que de
nada serve a melhor preparação se não vier acompanhada de um valor essencial: a
honestidade. Argumentava que as condições precárias a que muitos jornalistas
estão submetidos não são uma desculpa para renunciar à nossa responsabilidade.
Porque o jornalismo, dizia, não é um ofício técnico, mas uma função social
relevante. "O dever fundamental do jornalista não é para com seu
empregador, mas com a sociedade. É para ela, e não para o patrão, que o
jornalista escreve”, ensinava.
Alternava períodos cobrindo política brasileira e política
internacional, à qual se dedicou nos últimos anos como enviado especial em
viagens presidenciais ou a cúpulas internacionais —sobretudo a de Davos— e em
suas colunas. Explicava o mundo aos brasileiros e fazia isso como ninguém. Com
os anos passou a trabalhar no nono andar do edifício da Folha, onde fica o
setor de Opinião do jornal. Era festejado nas vezes em que descia, passeando
entre as baias, discutindo a conjuntura, contando episódios. Ao contrário do
que escreveu na quarta-feira, sua falta será sentida.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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