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Publicado originalmente no site OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, em
14/04/2020
Pandemia e jornalismo: cinco questões para a imprensa
sobreviver à covid-19
Edição 1083
Por Marcio Telles
Não há dúvidas de que a pandemia de covid-19 seja um
daqueles game changers da história. Nas últimas semanas, autoridades compararam
a pandemia com “uma guerra”, tanto que sobreviver a ela “se tornou a missão
mais importante de nossa geração”. Para além da ansiedade com a nossa saúde e
com a dos familiares e amigos próximos, outra camada de ansiedade vem de não
conseguirmos prever as mudanças que virão após o arrefecimento da doença – para
além de uma recessão ou depressão econômica que já é dada como certa.
Talvez mais como um exercício de retirar o foco da
(terrível) realidade imediata, tornaram-se corriqueiros textos que tentam
imaginar a sociedade que virá após a pandemia. Paralelos com a pandemia do
século passado, de gripe espanhola, entre 1918 e 1920, sugerem que algumas
mudanças serão inevitáveis: afinal, aquela pandemia acelerou o término de um
dos maiores conflitos armados da história, provou a necessidade de existir um
sistema público de saúde e aumentou a prática de exercícios físicos ao ar
livre.
Nenhuma dessas mudanças foi realmente radical: a guerra já
estava terminando, hospitais já começavam a atender porções mais amplas do
público e exercícios físicos já eram vistos como receitas de boa saúde. Seria
mais correto afirmar que a gripe espanhola acelerou mudanças que, olhando para
trás, já pareciam inevitáveis. Em um recente artigo na prestigiada Foreign
Affairs, Richard Haas sustenta o mesmo impacto da pandemia de coronavírus: mais
do que mudanças, teremos acelerações.
Deixemos os largos processos para os historiadores ou
sociólogos. Nos ocuparemos, aqui, de algumas trends no jornalismo e como ele
será impactado pela crise que ainda está longe de ter um prazo para acabar:
conclusão da migração para o online, aumento do risco para a sobrevivência de
jornais regionais e para o modelo de jornais gratuitos, além de novas
percepções sobre a autoridade dos jornais.
1) Transição para o online?
O filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi, em entrevista
recente à Folha, afirmou que o isolamento do coronavírus provocará um salutar
“ódio aos celulares”. “Talvez”, diz ele, “o excesso de isolamento empurre
grande parte dos jovens a desligar as telas”. Ainda que isso possa ser
verdadeiro para várias esferas da vida, para o jornalismo o contrário parece
razoável: com mais gente em casa, em isolamento social ou quarentenados, as
fontes de informação tornam-se exclusivamente eletrônicas: televisão, redes sociais,
sites e portais de notícias.
Segundo a Mapp, responsável por pesquisas de engajamento na
rede, o segmento “portais de notícia” aumentou o número de visitantes
britânicos em 84% desde as primeiras mortes naquele país. Necessidade de
informações rápidas (vide ponto 4), além da demanda por atividades remotas,
como trabalho e educação, e o uso de plataformas de vídeo para diversão e busca
de informação, têm acionado o alerta de especialistas sobre os limites físicos
da internet.
Desde o início da década, a tendência tem sido os impressos
cederem espaço aos portais online. Em mais um exemplo do que já se tornou
rotineiro ao redor do mundo, o diário A Gazeta – da rede filiada à Globo no
Espírito Santo – deixou de circular diariamente em setembro do ano passado,
concentrando suas atividades no online e publicando apenas um semanário
impresso. Como é a tendência atual, A Gazeta ergueu um paywall para arrecadar
com as visitas ao seu site, transformando-o em sua principal fonte de renda.
Em 2011, o New York Times foi o primeiro dos grandes jornais
a lançar um serviço de paywall nos novos moldes, onde uma parte do site era
gratuita e outra, premium. À época, com a incerteza se o público estava pronto
para pagar por conteúdo online, o New York Times corria o risco de
“canibalizar” seu público. A aposta no paywall pagou-se: em fevereiro deste
ano, o NYT já tinha mais de 5 milhões de assinaturas online e a redação nunca
foi tão robusta. Ao longo destes anos, o NYT reduziu o número de páginas
visitadas para os não-assinantes de vinte para três (uma maneira de forçar mais
assinaturas), acrescentou narrativas digitais a suas reportagens, lançou uma
série de aplicativos e games de notícias e transformou-se num case de sucesso
para toda a indústria. Aqui, Folha de S.Paulo, Estadão, O Globo e Zero Hora, só
para ficar em alguns, repetiram a receita com diferentes graus de sucesso.
Ainda que o paywall do New York Times tenha se provado
eficaz, ele efetivamente inibiu o acesso à informação “de qualidade” (como
apregoa o próprio NYT) de parcelas gigantescas da população norte-americana. A
proporção de pessoas que pagam por informação nos EUA é minúscula: apenas 16%.
Esses leitores tendem a ser mais ricos e com maior grau de formação (diploma
universitário). Também tendem a ter mais confiança na imprensa e nas notícias
que consomem. Pesquisas sugerem que a confiança é guiada pela qualidade das
notícias consumidas. Como nota Alan Rusbridger em Breaking News, “em um mundo
de informações quase ilimitadas, as melhores estão disponíveis apenas para os
mais abastados. O resto dos Estados Unidos precisa se contentar com um oceano
de coisas grátis; algumas verdadeiras, outras falsas”. O mesmo pode ser dito do
Brasil.
Diante da emergência da pandemia, a maioria dos jornais
concordou que a notícia é um bem público (vide ponto 4) e decidiu por erguer
seus paywalls. Mas, conforme os dias de calamidade pública tornam-se semanas e
até meses, não se sabe ainda se os jornais continuarão permitindo o acesso
liberado a seus conteúdos, sob pena de inviabilizar o modelo de negócio
construído nessa década. Também não está muito claro como “baixarão” de novo
seus paywalls. Um público acostumado com o óbvio incremento na qualidade das
notícias gratuitas vai se acostumar a pagar por elas novamente? As pessoas
terão dinheiro para isso, vista a repressão/depressão que se avizinha? O modelo
de notícias gratuito será sustentável na falta de paywalls e de publicidade
impressa?
É muito cedo, ainda, para respondermos a essas questões. Se
observarmos as dificuldades que os queridinhos da revolução digital têm passado
nos últimos meses, o horizonte parece sombrio. Ano passado, o BuzzFeed demitiu
15% de seu staff e contratou uma nova editora-executiva com o objetivo de
construir novas fontes de renda. Essa semana, reduziu os salários de seus
empregados entre 5 e 25% e seu fundador, Jonah Peretti, abriu mão de seu
vencimento enquanto durar a pandemia. HuffPost, outro site que deu uma guinada
em direção à informação de qualidade e gratuita, reduziu suas propriedades em 7%.
Mesmo o modelo de in house ads (como o da Vice), que mistura publicidade e
jornalismo, parece a perigo.
O certo é que a migração online deve acontecer também em
nível de força de trabalho. Como observam os pesquisadores Mark Deuze e Tamara
Witschge, se a redação foi o lócus central da profissão jornalística ao longo
do século XX, ela vinha sendo substituída por trabalho remoto, home office e
outras configurações. A crise da covid-19 deve acelerar esse processo: com
jornalistas sendo obrigados a ficar em casa, mais redações serão transpostas
para ambientes “virtuais” (sic), ampliando a precarização da jornada de
trabalho de jornalistas. Em casa, os tempos “on” e “off” se misturam em um
ambiente já acelerado de acontecimentos. Como essas novas configurações
funcionarão na prática e qual será o impacto sobre a autopercepção dos
jornalistas, dependentes da redação como um mecanismo formador, ainda está para
ser visto.
2) O fim dos jornais regionais?
Se o ethos da notícia como bem público e gratuito levou os
jornais à beira da bancarrota, a criação do paywall foi uma faca de dois gumes.
Por um lado, ao mesmo tempo em que fake news têm se tornado endêmicas da
ecologia digital, a mídia canônica conseguiu se reinventar, muito pela força de
suas marcas. Por outro lado, o mesmo não pode ser dito dos jornais regionais.
Sem a força do nome e sem a alavancagem necessária para
produzir materiais nos novos formatos – Jill Abramson, em seu Merchants of
truth, alerta que foram necessários mais de doze profissionais para produzir a
reportagem multimídia “Snow Fall”, do New York Times, a primeira do gênero
ganhadora de um Pulitzer -, os jornais regionais têm sido engolidos pelas
grandes marcas, centralizadas nas principais áreas urbanas. Essa concentração
deve aumentar. Como lembrou a economista Laura Carvalho, a pandemia “vai levar
pequenas empresas a serem incorporadas e adquiridas por negócios maiores”.
O que salvava os jornais menores era a ligação que estes
tinham com suas comunidades, sobretudo do ponto de vista financeiro. Repletos
de anúncios de negócios locais, como bares e construtoras, esses jornais ainda
sobreviviam da publicidade impressa, mesmo quando já contavam com portais
online. A quebra na circulação devido à covid-19 parece ter sido a “pá de cal”
nesses negócios baseados em um modelo ultrapassado. Na última semana, o magnata
Rupert Murdoch (News Corp) cancelou a impressão de sessenta jornais regionais
australianos. No comunicado, a News Corp afirmou que “as restrições impostas a
leilões imobiliários e inspeções domiciliares, o fechamento forçado de locais
para eventos e restaurantes em decorrência da emergência do coronavírus”
levaram a perdas substanciais nas receitas desses jornais. Esta semana foi a
vez da Gannet, publisher de 261 diários (entre eles o USA Today), anunciar
cortes de funcionários e ajustes em sua estrutura -, o que levou à queda de
suas ações na Bolsa de Valores para 0,65 centavos de dólar.
As dificuldades para os jornais regionais vêm em um momento
em que talvez eles sejam mais necessários do que nunca. Como a emergência da
covid-19 diz respeito ao bem comum, notícias sobre a movimentação de cada
localidade são mais importantes do que nunca. Sem elas, como saber quais
medidas são recomendadas pelas secretarias de saúde e prefeituras locais? O
pânico (midiatizado) de que uma Itália ou mesmo uma São Paulo se repitam nos
rincões do Brasil, mesmo em locais sem nenhum caso confirmado ou suspeito, tem
levado muitas populações a se guiarem pelas medidas de segurança recomendadas
aos grandes centros. Ou o contrário: sem ideia de que a doença já esteja
entranhada em suas localizações, comunidades têm persistido em tratar a
covid-19 como algo distante e exótico. Esses são efeitos direto do “apagão de
notícias” já alertado pelo Atlas da Notícia, cuja outra consequência direta é a
falta de controle sobre os agentes públicos locais.
Nesse caso, também, o online já vinha substituindo os
impressos nas comunidades locais. Sempre existiu o desejo por notícias
próximas. Há duas décadas, os jornais independentes comunitários ou foram
absorvidos por jornais maiores, de outros centros urbanos (no caso dos jornais
longe das capitais), ou tornaram-se folhas de bairros (no caso dos jornais em
capitais). Tais empreitadas tiveram sucessos distintos. No geral, elas criaram
um vácuo para que comunidades de amadores se tornassem jornalistas, agora
empoderados pelos meios técnicos e as plataformas necessárias para fazerem
ouvir suas vozes comunitárias. Todavia, muitas dessas empreitadas são voltadas
para o lado cultural dos bairros e dos municípios – não exatamente o mesmo
nicho de hard news que os jornais ocupavam.
3) O modelo de impressos gratuitos está em perigo?
A queda na arrecadação da publicidade impressa tem sido um
golpe duro também aos jornais gratuitos, como o Metro. No ano passado, a
sucursal brasileira já havia cancelado as edições de Brasília, Campinas e Rio
de Janeiro. Nesta semana, foi a vez da edição impressa de São Paulo deixar de
circular devido à pandemia de covid-19. A lógica comercial desses jornais era a
altíssima circulação, que justificava investimentos publicitários pesados. Por
isso, eram distribuídos gratuitamente em pontos de grande movimentação de
indivíduos, como estações de metrô ou cruzamentos de avenidas. Com lockdowns,
distanciamento social e home office tornando-se constantes, a falta de pessoas
nas ruas tornou o modelo desses jornais inviável, como já havia notado o braço
britânico da multinacional sueca.
Como uma maneira de atravessar o período mais duro da
pandemia, várias sucursais do Metro têm anunciado pesadamente suas versões
online (entre elas, as de São Paulo e Londres). Todavia, frente à concorrência
da mídia canônica em seu noticiário da pandemia (vide acima), com profissionais
mais numerosos e mais qualificados, esses jornais vão ter que encontrar novas
formas de atrair leitores e renda. Criar um paywall modifica o pilar de
gratuidade e rapidez sobre o qual seu modelo foi erguido. Acrescente-se a isso
que a receita de anúncios online não é nem de perto equivalente à do impresso,
e o período de quarentena se mostrará duro para esses jornais, sobretudo se for
muito longo.
Se conseguirem sobreviver às receitas magras e à
concorrência, os jornais talvez ainda precisem enfrentar a mudança de hábitos
dos leitores. Nas últimas semanas, vários diários e semanários da Índia têm ido
às cordas devido ao pânico de que os jornais impressos poderiam ser
transmissores potenciais da covid-19. Com estoques encalhados, assinaturas
canceladas e queda abrupta na circulação, muitos estão com dificuldade de
manter até suas redações online. O pânico gerado exigiu até intervenções da
OMS, assegurando que “os jornais são seguros para tocar”, embora o
primeiro-ministro tenha ressaltado que o melhor é lavar as mãos após qualquer
atividade, inclusive a leitura de jornais. A situação pode parecer anedótica
por ora, mas, como explicou o psicólogo e historiador Steven Taylor, uma
consequência provável da pandemia é que muitos indivíduos desenvolvam misofobia
(a popular “germofobia”), pelo menos de forma transitória.
O que esses jornais precisarão responder é: após lutar meses
a fio contra um vírus invisível potencialmente fatal que pode se esconder em
qualquer superfície, as pessoas estarão dispostas a tocar em um jornal
distribuído de forma gratuita no metrô, sobretudo aqueles deixados em cima dos
bancos? Além da alta impressão, os jornais contavam com uma grande leitura
compartilhada (isto é, quando um exemplar é lido por mais de um indivíduo).
Segundo os números do Metro Londres, sua impressão diária era de 1,4 milhão,
com leitura de 2,3 milhões, o que fazia dele o diário londrino mais lido – até
19 de março. Atualmente, o Metro Londres respira por aparelhos.
4) Essenciais, de novo?
Os eventos de 11 de setembro de 2001 causaram um boom na
circulação de revistas de notícias, como a Time e a Life. Como comparação, a
edição da Time anterior ao atentado às Torres Gêmeas (datada de 10 de setembro)
vendeu 154.820 cópias, enquanto sua edição especial datada de 14 de setembro
vendeu 3,4 milhões de exemplares. Ao final de 2001, a circulação da Time e da
Newsweek era maior do que os primeiros meses daquele ano, que em geral
registrou uma maior circulação anual do que 1980. A circulação da Time
continuou mais ou menos constante até 2017, quando caiu para cerca de 2
milhões.
A história de ouro dos semanários tem levado muitos a
apostar que o jornalismo pode ressignificar sua importância durante e após a
pandemia. São nessas horas de crise que as pessoas se voltam a fontes
confiáveis de notícias – e, nesses casos, nada melhor do que jornais renomados
como Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e O Globo (a mídia canônica
brasileira).
Crises como a queda das Torres Gêmeas e a pandemia de
covid-19 são territórios férteis para a desinformação. A urgência por
informação ocorre em uma velocidade superior à de produção de conhecimento
sobre elas, gerando um “vácuo de informação”. É nessas lacunas que surgem as
teorias conspiratórias e das curas milagrosas. Com um mundo muito mais
conectado do que há vinte anos, desinformação, má informação e “especialistas”
de poltrona misturam-se na geração de ruído. A produção de conhecimento
científico não ocorre na mesma velocidade da apuração jornalística e nenhuma destas
acompanha a ânsia do público em ser informado. A qualquer momento, consensos
podem se provar falsos. Como alguns epidemiologistas já avisaram, mesmo o
isolamento social e a quarentena não têm eficácia cientificamente comprovada –
ainda que muitos estudos sugiram que, na dúvida, o melhor é mesmo ficar em
casa. Como o público reagiria se mais tarde ficasse comprovado que seu
sacrifício foi em vão? São as autoridades tanto da ciência quanto do jornalismo
que estão em jogo neste momento.
5) Notícia como bem público?
Por último, não podemos descartar que a “desconfiança” com
as fontes de informação canônicas tem um claro recorte de classe. Isso é algo
que os jornais trouxeram sobre si mesmos. Por mais que a noção de direito à
informação pública como pilar da democracia tenha guiado a autopercepção dos
jornalistas nas últimas décadas (e contemplado sua percepção da internet como
um bem público), a verdade é que os jornais não só estão cada vez mais voltados
para as elites como sua força de trabalho é cada vez mais elitista. Ainda que
não existam pesquisas equivalentes no Brasil, dados norte-americanos sugerem
que “jornalistas costumavam vir de famílias 6% mais ricas do que a média,
enquanto agora vêm de lares que são 42% mais ricos (o que significa que eles vêm
de casas mais ricas do que os banqueiros da mesma idade)”. Isto condiz com o
ethos classe média de valorização da cultura enquanto método formativo e de
distinção pessoal, mas produz um distanciamento significativo com o público que
os jornalistas pensam defender e/ou representar. Nesse caso, não é de se
estranhar quando líderes populistas elegem a imprensa como um bastião das
“elites” às quais se opõem. Ela de fato é a elite, composta por pessoas de
elite e divulgando valores das elites. Bolsonaro, por exemplo, publicou 94
tuítes agressivos aos jornais e aos jornalistas em seus primeiros cem dias de
governo – quase um por dia¹ – ficando atrás apenas de sua obsessão com o
“comunismo” enquanto seu vilão ideal.
Como recentemente nomeou Martim Vasques, a “revolta do
submundo” tem levado a uma “crise dos especialistas”, papel ocupado não apenas
por jornais, mas também pelos jornalistas e intelectuais que escrevem em suas
páginas. Jornais, jornalistas e intelectuais têm sofrido ataques tanto do
público quanto das autoridades há anos. A desconfiança com os “especialistas”
em suas “torres de marfim” não é exclusividade dos governos populistas de
direita (vide a desconfiança permanente entre o PT e a Globo), mas foi
particularmente ressaltada por eles, sobretudo por perceber que poderiam
“driblar” a mídia canônica como porta-voz oficial do público, a fim de uma
comunicação mais “horizontal” com seu público, via redes sociais ou sites
“gratuitos” (na verdade, patrocinados diretamente pelo governo ou por empresários
apoiadores – prática que, de novo, começou com os anos do PT no poder).
Essa questão é importante para compreender o impasse nos
quais os jornais se colocaram. Enquanto, sim, a notícia é um bem público, a
questão é que, até agora, a mídia canônica não a tratava dessa maneira. Com a
covid-19 e a necessidade de voltar-se a uma parcela da população até então
alheia, os ruídos tornaram-se evidentes. Os constantes ataques à autoridade da
imprensa nos últimos anos a inibe de se alçar à posição que a situação exige:
como porta-voz das autoridades e do meio científico. Desconfiadas com as
mensagens dos domínios que consideram “a elite”, muitos têm se pautado por
informações obtidas de maneiras horizontais, via aplicativos e redes sociais.
***
No geral, é fato que os jornais diários impressos vêm
circulando cada vez menos – apenas nos EUA, a circulação diária de impressos
caiu 12% somente em 2018. Essa baixa é uma tendência desde a década de 1990. A
migração para o online pago foi vista como uma solução, mas o modelo sempre
pareceu insustentável a longo prazo. A atual pandemia mostrou como o ideal e a
prática jornalística estão distantes um do outro. A crise mostrou que notícias
de qualidade são mais necessárias do que nunca; no ecossistema saturado de
informação, porém, apurá-las com eficácia tem se mostrado um desafio. Os
jornais precisam decidir se “atenderão ao chamado” de ofertar notícias de
qualidade gratuitamente, como um bem público. Se sim, o modelo que lhes salvou
da falência na década precisa ser revisto. Se não, periga ampliar ainda mais a
distância entre informação e desinformação: é como se, cada vez mais, leitores
habitassem mundos diferentes conforme as fontes que usam para construir seus
retratos da realidade.
É por isso que, infelizmente, a covid-19 parece
particularmente sensível aos jornais regionais. Justo no momento em que
poderiam ser significativos para a construção do bem comum, veem-se
estrangulados pela crise econômica que se avizinha. Muitos serão incorporados
por veículos da mídia canônica. Outros tantos desaparecerão, ampliando o gap de
informação no país e no mundo. Se a pandemia se prolongar, isso significará
menos locais cobertos por jornalistas, que também estarão cada vez mais “longe
das ruas” e na frente de suas telas – o que a literatura da área apregoa como o
pecado-mor da profissão. Também não se pode ter certeza se a autoridade da
imprensa passará incólume da pandemia, quiçá se recuperará seu prestígio e sua
percepção de necessidade. Com parcelas do público eternamente desconfiadas, o
desafio para ocupar o espaço de porta-voz da comunidade científica e das
autoridades na gestão da crise é gigantesco.
Por todos esses motivos, ainda é cedo para afirmar, como o
epidemiologista Atila Iamarino, que a pandemia provou a importância da imprensa.
Essa afirmação dependerá de como a indústria da notícia responderá às cinco
questões colocadas. Por ora, a certeza é que a pandemia acelerou vários dos
processos nos quais os jornais já estavam envolvidos na última década.
NOTA:
¹ TCC de Yvena Plotegher Pelisson, “As estratégias de Jair
Bolsonaro de deslegitimação da mídia no Twitter”. 2019. Comunicação Social –
Jornalismo. Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória.
***
Marcio Telles é jornalista, doutor e mestre em Comunicação
(UFRGS). Foi pesquisador convidado na Winchester School of Art (RU) durante o
doutorado sanduíche (PDSE CAPES). Também atuou como professor substituto dos
cursos de comunicação da UFES. Sua dissertação, defendida em 2013 com o título
A recriação dos tempos mortos do futebol pela televisão, ganhou o prêmio de
melhor dissertação da Compós. Atualmente, é vice-coordenador do GT Teorias da
Comunicação da INTERCOM. É também cofundador da Escola de Comunicação
(www.escolacomunicacao.com.br).
Texto e imagem reproduzidos do site: observatoriodaimprensa.com.br
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