Foto reproduzida do Facebook/Carlos Magno Andrade Bastos.
Arte e postagem feita pelo blog "Meio Impresso".
Texto publicado originalmente no blog Antônio Saracura sobre livros lidos, em 04/03/2018
A morte de um grande jornalista: Clarêncio Martins Fontes
Por Antônio FJ Saracura*
Atrasei a cota que depositava todo mês para ajudar Clarêncio
Martins Fontes pagar o aluguel da casa humilde onde morava. E ele não me ligou
reclamando, como costumava fazer e não atendeu meu telefonema no qual pretendia
me desculpar pelo atraso.
Clarêncio morava em uma casa deteriorada na rua Carlos
Burlamarqui, o trecho ocupado por revendas de automóveis e que morre, mindinho,
na avenida Coelho e Campos. Um local complicado para estacionar.
Aproveitei a terça-feira de carnaval e fui saber o porquê do
silêncio do jornalista. Certamente não faltariam vagas para estacionar, já era
comecinho da noite de um feriado.
Havia um casal, à porta, na casa vizinha, na calçada,
conversando. A casa de Clarêncio estava fechada como de costume. Cumprimentei-o
e perguntei se o jornalista Clarêncio estaria em casa. É que a luz da sala da
frente não estava acesa como de costume.
O senhor, que presumi ser o dono da casa vizinha, disse que
o jornalista havia falecido mais ou menos às duas da tarde e o seu corpo
acabara de sair ao IML. O casal passou a narrar o sufoco por que passou naquela
tarde, envolvido pela morte do vizinho:
“A esposa do jornalista, que parece ter problemas mentais,
saiu à rua pedindo socorro, por volta da duas da tarde, pedia ajuda para
levantar o marido do leito. Nós estávamos à porta e nem pudemos escapar, ela
postou-se à nossa frente. E trazia na mão um papel onde estava escritor um
número de telefone de outro Estado. Mas incompleto, com apenas quatro dígitos.
Ela queria que ligássemos e alguém viria socorrer o marido.
Resolvemos ver o que acontecia dentro da casa misteriosa.
O jornalista e a esposa não se relacionavam nem conosco nem
com os demais vizinhos. Sempre ele saía pela manhã e retornava depois de
meio-dia com pacotes, jornais e livros. Sabíamos que era um intelectual de
renome. Sempre apareciam crônicas com sua assinatura nos jornais. E a casa,
víamos de relance, ao passarmos em frente, era atulhada de livros e revistas. A
esposa vivia presa, embaixo de chave, atendia as raras visitas através da grade
do portão de ferro.
Desconfiávamos que ele poderia estar enfermo pois não o
víamos sair nos últimos quinze dias. Um senhor que mora mais adiante na rua,
dois trechos, um serviçal faz-tudo a todos, talvez o único com quem o
jornalista se relacionava regularmente, vinha toda pela com uma penca de
bananas e a fazia passar pelas grades do portão de ferro. O casal devia estar
se alimentando, ultimamente, disso.
Entramos na casa entulhada de livros.
O jornalista jazia em um catre, morto.
A esposa pedia que o ajudássemos a levantar-se e não
entendia a gravidade da situação. Fora da realidade, não dizia nada com nada.
Suas respostas não batiam com as perguntas que agoniados fazíamos.
O que fazer?
Nada sabíamos de parentes, pouco sabíamos até do casal que
habitava na c asa zinha há mais de dois anos...
Encontramos uma agenda jogada sobre um monte de livros e
ligamos para números, nenhum atendeu. Havia junto um carnê da Osaf e, pelo que
observamos, com prestações em atraso.
Resolvemos chamar o Samu, mesmo sabendo que o jornalista
estava morto. Íamos ligar ao 190 da polícia, mas uma viatura passava na rua.
Demos a mão, gritamos, corremos ao meio da rua impedindo que fosse embora.
Lembramos do faz-tudo da rua, o que morava dois trechos à
frente. Ainda bem. Ele sabia o número do telefone de uma sobrinha do
jornalista. Ligamos avisando do ocorrido. Daí a pouco, chegaram a sobrinha,
chamada Helena, e uma irmã, chamada Mabel: surpresas, assustadas.
Nem o Samu tinha o que fazer, nem a polícia, mas esta ficou
conosco até agora há pouco.
O comandante da patrulha policial definiu que o corpo do
jornalista seria guardado no Iml por não haver outro local possível. A família
iria, no dia seguinte, resgatar o corpo e cuidar das burocracias, do velório e
do sepultamento.
E a esposa de juízo fraco?
Alguém teria que ficar com ela.
Todos olharam para a irmã, dona Mabel. Ela recuou e disse
que não podia hospedá-la em sua casa nem um dia. Por fim, não houve alternativa
e a viúva foi com a cunhada mesmo”.
************
Eu escutei tudo e liguei a Cleiber Vieira, presidente da
Associação Sergipana de Imprensa, ASI, para decidirmos o que melhor fazer em
apoio à família. Cleiber atendeu ao telefonema, estava enfermo e não possuía
contatos da família de Clarêncio. Iria localizar a secretária que estava no
interior gozando a folga do carnaval.
O vizinho que me contou a história não reteve o contato e,
na agonia do momento, nem me lembrei de procurar o faz-tudo do trecho...
Liguei a pessoas que eu sabia mais próximas do jornalista
avisando da morte. Poucos atenderam, todos estavam viajando ou impedidos por
algum motivo.
Postei mensagem nas redes sociais.
************
No dia seguinte, Quarta-feira de Cinzas, por volta da dez
horas, como ainda não localizáramos a família, fui ao Iml. O corpo estava lá, liberado,
mas ninguém havia ido buscar. Apenas a família podia retirá-lo.
Fui à Osaf, seguindo o tal carnê em atraso. Na secretaria,
me informaram que alguém estava vendo o assunto Clarêncio no setor de
Assistência Funeral. Ao correr ao setor, vi duas senhoras saindo, caminhavam em
direção a um carro estacionado no outro lado da rua. Fui atrás e perguntei se
eram gente de Clarêncio. Eram. A sobrinha, Helena, e a irmã, Mabel. Já haviam
se acertado com a Osaf: o enterro seria à tarde no São João Batista. Estavam
indo ao cartório registrar o óbito e ao IML, depois, retirar o corpo para o
sepultamento. Não precisavam de minha ajuda. Me ligariam informando a hora do
enterro, para que eu avisasse aos amigos e colegas dele. Participei ao
presidente da ASI e, mais uma vez, postei a informação nas redes sociais.
************
Às três horas, a sobrinha, Helena, me informou que o enterro
seria as 16 horas. Passei a informação em frente.
************
As quatro horas, chegou o carro da Osaf no São João Batista
com o corpo de Clarêncio. O enterro foi feito sem delongas. Estavam presentes,
cerca de oito pessoa da família e quatro jornalistas da ASI e da Academia
Sergipana de Letras.
Na saída do cemitério, fiquei próximo a Mabel, a irmã de
Clarêncio que conheci pela manhã na OSAF. Perguntei sobre a viúva, onde
estaria. Ela começou a chorar e disse:
“Está lá em casa mas eu não tenho condição nenhuma me sequer
de hospedá-la. Telefonei para um parente dela em Salvador, pedindo que venha
busca-la logo. Estou com medo de não vir”.
Falou isso e desatou a chorar.
*************
Na missa de sétimo dia, a igreja do Salesiano estava lotada.
Eram várias intenções, mortos de numerosas famílias. O nome de Clarêncio foi
lido pelo sacristão ao final de uma lista longa; pensei que nem seria mais.
Mesmo assim, estavam presentes, membros da Academia Sergipana de Letras, da
Associação Sergipana de Imprensa (ao todo, quatro pessoas) e uma quantidade
significativa de parentes (irmãs, sobrinhos e amigos da família e do
jornalista; calculei que doze pessoas).
Ao final da missa, fui ao banco onde estava o povo de
Clarêncio, bem à frente, o primeiro banco do átrio. Mabel já me conhecia desde
o dia do sepultamento, e me apresentou a outra irmã, ao seu lado, que eu ainda
não vira. Ambas idosas, acredito acima dos setenta, maltratadas pela vida
ingrata mas ainda deixando transparecer uma beleza ariana admirável. Mabel e a
irmã falaram, ao mesmo tempo, talvez querendo conquistar minha admiração ou
mostrarem-se valorosas:
“Nós duas somos poetisas também. Saímos ao nosso pai e ao
nosso irmão!”.
Eu não soube o que dizer, não podia turvar o orgulho
declarado. Fiquei um momento atônito e, por fim, não achando nada a comentar,
perguntei pela cunhada, a esposa de Clarêncio, a qual Mabel acolhera e me
confessara, sete dias atrás, que não teria nenhuma condição de sequer
hospedá-la por uns dias.
Mabel olhou-me com dois olhos claros, marejados de aflição:
“Está lá em casa ainda. Deus me ajude! A família dela não
deu notícia. Não sei o que será de mim e nem da pobre coitada que, se imagina
uma rica princesa”.
Baixou a cabeça chorando.
* Admirador do jornalista Clarêncio
Martins Fontes
Texto reproduzido do blog: antoniosaracurasobrelivroslidos.blogspot.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário