segunda-feira, 5 de março de 2018

A morte de um grande jornalista: Clarêncio Martins Fontes


Foto reproduzida do Facebook/Carlos Magno Andrade Bastos.
Arte e postagem feita pelo blog "Meio Impresso".

Texto publicado originalmente no blog Antônio Saracura sobre livros lidos, em 04/03/2018

A morte de um grande jornalista: Clarêncio Martins Fontes

Por Antônio FJ Saracura*

Atrasei a cota que depositava todo mês para ajudar Clarêncio Martins Fontes pagar o aluguel da casa humilde onde morava. E ele não me ligou reclamando, como costumava fazer e não atendeu meu telefonema no qual pretendia me desculpar pelo atraso.

Clarêncio morava em uma casa deteriorada na rua Carlos Burlamarqui, o trecho ocupado por revendas de automóveis e que morre, mindinho, na avenida Coelho e Campos. Um local complicado para estacionar.

Aproveitei a terça-feira de carnaval e fui saber o porquê do silêncio do jornalista. Certamente não faltariam vagas para estacionar, já era comecinho da noite de um feriado.

Havia um casal, à porta, na casa vizinha, na calçada, conversando. A casa de Clarêncio estava fechada como de costume. Cumprimentei-o e perguntei se o jornalista Clarêncio estaria em casa. É que a luz da sala da frente não estava acesa como de costume.

O senhor, que presumi ser o dono da casa vizinha, disse que o jornalista havia falecido mais ou menos às duas da tarde e o seu corpo acabara de sair ao IML. O casal passou a narrar o sufoco por que passou naquela tarde, envolvido pela morte do vizinho:

“A esposa do jornalista, que parece ter problemas mentais, saiu à rua pedindo socorro, por volta da duas da tarde, pedia ajuda para levantar o marido do leito. Nós estávamos à porta e nem pudemos escapar, ela postou-se à nossa frente. E trazia na mão um papel onde estava escritor um número de telefone de outro Estado. Mas incompleto, com apenas quatro dígitos. Ela queria que ligássemos e alguém viria socorrer o marido.

Resolvemos ver o que acontecia dentro da casa misteriosa.

O jornalista e a esposa não se relacionavam nem conosco nem com os demais vizinhos. Sempre ele saía pela manhã e retornava depois de meio-dia com pacotes, jornais e livros. Sabíamos que era um intelectual de renome. Sempre apareciam crônicas com sua assinatura nos jornais. E a casa, víamos de relance, ao passarmos em frente, era atulhada de livros e revistas. A esposa vivia presa, embaixo de chave, atendia as raras visitas através da grade do portão de ferro.

Desconfiávamos que ele poderia estar enfermo pois não o víamos sair nos últimos quinze dias. Um senhor que mora mais adiante na rua, dois trechos, um serviçal faz-tudo a todos, talvez o único com quem o jornalista se relacionava regularmente, vinha toda pela com uma penca de bananas e a fazia passar pelas grades do portão de ferro. O casal devia estar se alimentando, ultimamente, disso.
Entramos na casa entulhada de livros.

O jornalista jazia em um catre, morto.

A esposa pedia que o ajudássemos a levantar-se e não entendia a gravidade da situação. Fora da realidade, não dizia nada com nada. Suas respostas não batiam com as perguntas que agoniados fazíamos.

O que fazer?

Nada sabíamos de parentes, pouco sabíamos até do casal que habitava na c asa zinha há mais de dois anos...

Encontramos uma agenda jogada sobre um monte de livros e ligamos para números, nenhum atendeu. Havia junto um carnê da Osaf e, pelo que observamos, com prestações em atraso.

Resolvemos chamar o Samu, mesmo sabendo que o jornalista estava morto. Íamos ligar ao 190 da polícia, mas uma viatura passava na rua. Demos a mão, gritamos, corremos ao meio da rua impedindo que fosse embora.

Lembramos do faz-tudo da rua, o que morava dois trechos à frente. Ainda bem. Ele sabia o número do telefone de uma sobrinha do jornalista. Ligamos avisando do ocorrido. Daí a pouco, chegaram a sobrinha, chamada Helena, e uma irmã, chamada Mabel: surpresas, assustadas.

Nem o Samu tinha o que fazer, nem a polícia, mas esta ficou conosco até agora há pouco.

O comandante da patrulha policial definiu que o corpo do jornalista seria guardado no Iml por não haver outro local possível. A família iria, no dia seguinte, resgatar o corpo e cuidar das burocracias, do velório e do sepultamento.

E a esposa de juízo fraco?

Alguém teria que ficar com ela.

Todos olharam para a irmã, dona Mabel. Ela recuou e disse que não podia hospedá-la em sua casa nem um dia. Por fim, não houve alternativa e a viúva foi com a cunhada mesmo”.

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Eu escutei tudo e liguei a Cleiber Vieira, presidente da Associação Sergipana de Imprensa, ASI, para decidirmos o que melhor fazer em apoio à família. Cleiber atendeu ao telefonema, estava enfermo e não possuía contatos da família de Clarêncio. Iria localizar a secretária que estava no interior gozando a folga do carnaval.

O vizinho que me contou a história não reteve o contato e, na agonia do momento, nem me lembrei de procurar o faz-tudo do trecho...

Liguei a pessoas que eu sabia mais próximas do jornalista avisando da morte. Poucos atenderam, todos estavam viajando ou impedidos por algum motivo.

Postei mensagem nas redes sociais.

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No dia seguinte, Quarta-feira de Cinzas, por volta da dez horas, como ainda não localizáramos a família, fui ao Iml. O corpo estava lá, liberado, mas ninguém havia ido buscar. Apenas a família podia retirá-lo.

Fui à Osaf, seguindo o tal carnê em atraso. Na secretaria, me informaram que alguém estava vendo o assunto Clarêncio no setor de Assistência Funeral. Ao correr ao setor, vi duas senhoras saindo, caminhavam em direção a um carro estacionado no outro lado da rua. Fui atrás e perguntei se eram gente de Clarêncio. Eram. A sobrinha, Helena, e a irmã, Mabel. Já haviam se acertado com a Osaf: o enterro seria à tarde no São João Batista. Estavam indo ao cartório registrar o óbito e ao IML, depois, retirar o corpo para o sepultamento. Não precisavam de minha ajuda. Me ligariam informando a hora do enterro, para que eu avisasse aos amigos e colegas dele. Participei ao presidente da ASI e, mais uma vez, postei a informação nas redes sociais.

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Às três horas, a sobrinha, Helena, me informou que o enterro seria as 16 horas. Passei a informação em frente.

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As quatro horas, chegou o carro da Osaf no São João Batista com o corpo de Clarêncio. O enterro foi feito sem delongas. Estavam presentes, cerca de oito pessoa da família e quatro jornalistas da ASI e da Academia Sergipana de Letras.

Na saída do cemitério, fiquei próximo a Mabel, a irmã de Clarêncio que conheci pela manhã na OSAF. Perguntei sobre a viúva, onde estaria. Ela começou a chorar e disse:

“Está lá em casa mas eu não tenho condição nenhuma me sequer de hospedá-la. Telefonei para um parente dela em Salvador, pedindo que venha busca-la logo. Estou com medo de não vir”.

Falou isso e desatou a chorar.

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Na missa de sétimo dia, a igreja do Salesiano estava lotada. Eram várias intenções, mortos de numerosas famílias. O nome de Clarêncio foi lido pelo sacristão ao final de uma lista longa; pensei que nem seria mais. Mesmo assim, estavam presentes, membros da Academia Sergipana de Letras, da Associação Sergipana de Imprensa (ao todo, quatro pessoas) e uma quantidade significativa de parentes (irmãs, sobrinhos e amigos da família e do jornalista; calculei que doze pessoas).


Ao final da missa, fui ao banco onde estava o povo de Clarêncio, bem à frente, o primeiro banco do átrio. Mabel já me conhecia desde o dia do sepultamento, e me apresentou a outra irmã, ao seu lado, que eu ainda não vira. Ambas idosas, acredito acima dos setenta, maltratadas pela vida ingrata mas ainda deixando transparecer uma beleza ariana admirável. Mabel e a irmã falaram, ao mesmo tempo, talvez querendo conquistar minha admiração ou mostrarem-se valorosas:

“Nós duas somos poetisas também. Saímos ao nosso pai e ao nosso irmão!”.

Eu não soube o que dizer, não podia turvar o orgulho declarado. Fiquei um momento atônito e, por fim, não achando nada a comentar, perguntei pela cunhada, a esposa de Clarêncio, a qual Mabel acolhera e me confessara, sete dias atrás, que não teria nenhuma condição de sequer hospedá-la por uns dias. 

Mabel olhou-me com dois olhos claros, marejados de aflição:

“Está lá em casa ainda. Deus me ajude! A família dela não deu notícia. Não sei o que será de mim e nem da pobre coitada que, se imagina uma rica princesa”.

Baixou a cabeça chorando.

* Admirador do jornalista Clarêncio Martins Fontes

Texto reproduzido do blog: antoniosaracurasobrelivroslidos.blogspot.com.br

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