Acervo pessoal
Publicado originalmente no site da revista CartaCapital, em 28 de maio de 2019
A literatura ou a vida: uma conversa franca com Nirlando
Beirão
Eduardo Nunomura, Jotabê Medeiros e Pedro Alexandre Sanches
Escrito entre o diagnóstico de um mal incurável e a memória
da família, ‘Meus Começos e Meu Fim’ emociona e ilumina
Jean-Paul Sartre dizia que escrevia “porque o artista deve
confiar a outro a tarefa de concluir o que ele começou”. Nada parece se
encaixar mais como definição de Meus Começos e Meu Fim (Companhia das Letras),
de Nirlando Beirão: é um livro cuja pulsão literária está na transmissão, para
adiante, de uma consciência do mundo, uma consciência dolorida, adquirida em
uma situação extremada.
Diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) em
julho de 2016, o jornalista Nirlando Beirão refugiou-se numa de suas atividades
de excelência, a literatura, para compreender o processo da vida. Mesmo em meio
à “corrosão emocional de ver a angústia da doença fatal me consumindo”, iniciou
essa investigação de si mesmo no que considerava a raiz de tudo: a história do
avô, António Beirão, ex-padre, ex-colega do ditador Salazar no seminário. O
resultado é uma das mais cortantes, emocionantes e singulares narrativas da
literatura brasileira em 2019.
Editor-executivo de CartaCapital, chefe, portanto, destes
editores, Nirlando é mineiro de Belo Horizonte, tem 70 anos e começou a
carreira no jornal Última Hora, em 1967. Passou pelos principais veículos de
comunicação do País e é autor de diversos livros, entre eles, América:
Depoimentos (Companhia das Letras, 1989). Em 2011, foi nomeado Chevalier des
Arts et des Lettres pelo Ministério da Cultura da França. Nirlando nos concedeu
por e-mail a descontraída/bem-humorada/sagaz entrevista.
NIRLANDO: “SOFRI CULPAS QUE NEM ERAM MINHAS”
CartaCapital: Como está sua saúde desde que concluiu o
livro? Já teria adendos a fazer à história que conta em Meus Começos e Meu Fim?
Nirlando Beirão: Hoje estou melhor do que amanhã, apesar de
todo o esforço e da competência do exército de aventais brancos que me cerca.
Esta é a sina – às vezes imperceptível – de uma doença degenerativa. Escrevi o
livro com a mão direita, continuo escrevendo.
CC: A certa altura você se pergunta se somatizou o 7 a 1 da
Alemanha, o Donald Trump, o impeachment de Dilma Rousseff, o Jair Bolsonaro…
Ainda que o pensamento não ajude a resolver as coisas, faz sentido viver a dor
de um país no próprio corpo, na própria mente?
NB: Tudo isso machuca, mas inconscientemente acabei
interpondo um véu leitoso entre mim e a realidade. Não que eu queira me
alienar, nunca. É uma defesa involuntária. Sempre tive a tendência de desligar
o botão do pânico. A primeira vez que percebi a película protetora foi passando
de forma banal pela Paulista. Foi como se desmaiassem som e imagem.
CC: Por que a culpa está tão presente no seu livro? É o avô
padre Beirão? É a avó mulher do padre? É a naturalidade mineira? É o
catolicismo? É, de alguma forma, uma culpa que você próprio sente?
NB: Estranhei a rezação excessiva em família quando meu avô
morreu. O catolicismo pune desde o início. Uma vez o Glauber Rocha me disse:
Sabe por que eu sou livre? Nasci em família protestante, sem a ideia do pecado
original. Criança, eu sofria de culpas que nem eram minhas.
O AVÔ PADRE DE NIRLANDO
CC: Você conta no livro que começou no jornalismo em 13 de
junho de 1967. Era um momento agudo da vida nacional, e já se desenrolava o
processo que no ano seguinte culminaria no AI-5. Do que tem acompanhado do
processo atual, que paralelos traçaria entre os dois momentos, o da sua
juventude e o dos 69 anos de idade?
NB: 70 anos, cheguei lá. A diferença é que, apesar do
entorno, a gente acreditava no jornalismo e no futuro do Brasil. Confesso agora
certo desalento.
CC: Quais foram e são os melhores momentos para fazer
jornalismo no Brasil? Os de maior liberdade ou os de grande aperto
institucional?
NB: Do ponto de vista profissional, minha geração foi
privilegiada. Havia várias empresas jornalísticas, investindo, crescendo. Hoje,
as que sobraram, com raras exceções, desistiram do jornalismo, só pensam no
business. Aliás, a indústria de comunicação, assim como toda a nossa indústria,
é muito atrasada. Ainda bem que existe a guerrilha da internet.
CC: O que a profissão do jornalismo tem, para você, de mais
feio e de mais bonito? Ainda vale a pena ser jornalista em 2019?
NB: Acho que respondi acima. O jornalismo que mobiliza, que
emociona, tem seu lugar. Chega de fingir que nós repórteres somos robôs e que
há normalidade nessa realidade tão anormal.
“O jornalismo que mobiliza tem seu lugar. Nós repórteres não
somos robôs”
CC: Você relata que sua condição, ou doença, não se pauta
principalmente pela dor. Isso é bom? Ou seria melhor sentir dor?
NB: A dor intrínseca existe. Tem dias que acordo Frank
Capra, it’s a wonderful world, mas tem dias que acordo Franz Kafka (não
confundir com cafta), me sentindo um inseto.
CC: Seu avô, António Beirão, teve a coragem de romper com um
elo moral, a Igreja, para fugir com sua avó e largar a batina. Ele representa
seus começos, como diz o título, que se refere a duas extremidades da vida.
Dessa forma, quais são os rompimentos fundamentais que a sua maturidade
jornalística e literária lhe propiciou?
NB: O primeiro rompimento foi com a culpa, o temor e os
dogmas que a religião infringe. No jornalismo, logo rompi com a hierarquia dos
temas. Como se uma notícia de esporte – que contagia milhares e milhares de
leitores – fosse mais desprezível que o solene editorial do jornal. O curso de
Antropologia, num momento sombrio da universidade, início dos anos 70, foi
importante para reiterar que as pessoas são diferentes. Do Country Club aos
Yanomâmi, cada tribo tem seu jeito de comer, dormir, dançar, fazer sexo,
sobreviver. Ninguém é superior a ninguém. A propósito, visitei uma oca coletiva
dos Yanomâmi. É tão grandiosa, tão imponente quanto as catedrais góticas. É
curiosa a Antropologia: nasceu porque os poderes coloniais precisavam entender
quem eram aqueles “primitivos” que eles estavam espoliando. Felizmente, os
antropólogos foram bem além. A psicanálise, que frequento há mais tempo que o
Woody Allen, me fez romper com certos fantasmas íntimos.
O NÚCLEO CENTRAL DA FAMÍLIA, RETRATADA EM SEU LIVRO.
CC: Anteriormente, você publicou livros sobre a churrascaria
Rodeio, sobre o arquiteto Claudio Bernardes, sobre o Corinthians, sobre Sérgio
Motta, o “trator de FHC”, sobre o Bar Original. Sua trajetória literária não é
marcada pela radicalidade, mas principalmente pela circunstancialidade. O que
significa para você publicar agora uma obra que se caracteriza pelo mergulho
mais profundo, doloroso e visceral na experiência humana mais extrema?
NB: Não chamaria propriamente de literária. Escrevi livros
de encomenda, alguns como ghost-writer. Estes citados por acaso gostei de
escrever: um passeio pelos Jardins, em São Paulo, a história dos bares e cafés
do mundo, a vida e obra de um arquiteto talentoso e carismático que,
infelizmente, morreu num desastre estúpido logo depois… Mas o livro que mexeu
com minhas entranhas é este de agora.
CC: O seu livro foi escrito em uma circunstância que
ultrapassa a questão do julgamento do autor pelo crítico e pelo leitor. Dessa
forma, posta-se em uma condição singular, que o posiciona além da ansiedade e
da repercussão. Você o entende assim? Você o vê como algo que vai além do
exercício do estilo e da vaidade literários?
NB: A vaidade talvez seja esta: é um livro, tem sua
compostura. Embora eu ironize a pose em torno do tema leitura, confesso que
tinha pensado antes em escrever um blog, uma espécie de diário da doença. Tinha
até título: Neuro e Neuras. Mas a internet me acovardou. Imaginei o dia em que
um internauta impaciente iria me interpelar: E aí, cara, vai morrer ou não vai?
CC: Livros escritos em situações de saúde debilitada marcam
a literatura de grandes autores, como Virginia Woolf, João Cabral de Melo Neto,
Machado de Assis. E, mais recentemente, Christopher Hitchens, em Últimas
Palavras. Hitchens teve o humor, a mordacidade e o sarcasmo potencializados
pela experiência. Quais são os sentimentos e qualidades que Meus Começos e Meu
Fim destacou em você?
NB: Na comparação, prefiro ficar com o Christopher Hitchens.
A narrativa dele na Vanity Fair me deliciou, se é que dá para usar a palavra em
tais circunstâncias. Até o absolvi do pecado de ter defendido a invasão do
Iraque pelo Bush. Eu morava na Califórnia em 2003 e o assisti falando besteiras
em Berkeley – mas com carisma e humor. O que mudou em mim? Talvez perder o medo.
Talvez aprender a receber o carinho que nem sei se mereço.
CC: O Nirlando Beirão, titular da coluna QI, é um homem
sofisticado, grand vivant, que sabe admirar tanto os bons vinhos quanto uma
capa inglesa Burberry. Mas que confidencia imaginar que a boa velhice incluía
uma boina vermelha. Por qual dessas imagens extremas você prefere ser lembrado?
NB: Roupa é uma fantasia, literalmente, que você expressa
ali. De Lady Gaga ao Duque de Kent. Nas viagens, eu comprava roupas fora do meu
padrão, na esperança de me transformar. Comprei de calça de capoeirista, de
algodão cru, no Mercado Modelo de Salvador, a paletó Harry’s Tweed na City de
Londres. Eu sou assumidamente esquerda-foie gras. Prefiro, de todo modo, a
boina. Uma vez, o Leon Ferrari recebeu em Buenos Aires este repórter brasileiro
perplexo com os enigmas da política argentina. Avisou que iria chamar uns
amigos sociólogos, jornalistas, cientistas políticos, artistas como ele. Foram
chegando, um a um, os velhinhos. Todos de boina. Parecia congresso da Segunda
Internacional.
CC: A sua atual cabeceira de livros inclui Philip Roth, Ian
McEwan, Gabriel García Márquez, Salman Rushdie, Edward Said, a revista Granta.
Revela tanto o perfil de um homem eclético quanto culto. Qual livro não leu,
não lerá, e se arrepende disso?
NB: Cheguei a estudar um pouco de alemão porque queria ler A
Montanha Mágica no original. Não li nem no original nem em português. Tenho uma
versão em inglês que me espia lá do alto da estante.
CC: No livro, afirma que sempre foi mais de calar do que de
falar. Um bom jornalista fala e ouve muito, mas não costuma se calar diante do
que deve ser dito, seja a quem for. O que e a quem você gostaria de ter dito
algo, mas se calou?
NB: Falo por escrito. Sou – desculpe a pretensão – militante
da palavra. Tenho convicções. Mas a minha “condição”, como dizem os médicos, me
leva muito mais a uma autocrítica íntima sobre tudo o que não fiz. Se fosse
botar em papel tudo o que devia ter feito, e não fiz, dava para encher toda a
biblioteca de Alexandria. É possível que ao longo da carreira e da vida eu
tenha engolido um ou outro sapo. Bem menos, asseguro, do que o ministro da
Justiça atual e provisório.
“Se fosse botar no papel tudo que devia ter feito, e não
fiz, dava para encher a biblioteca de Alexandria”
CC: Você afirma que adora o jornalismo desimportante, o
jornalismo pop, das franjas, da periferia. E lembra que fez colunismo social
com black-tie emprestado. Quem faz esses tipos de jornalismo nos dias de hoje?
NB: Passei pelo colunismo na época em que falava muito em
neocolunismo, ou new columnism, como preferia a categoria. Menos festa, mais
notícia. Zózimo Barroso do Amaral, no Jornal do Brasil, depois n’O Globo, o
Boechat. E a Joyce. Hoje o colunista, coitado, é obrigado a conviver com gente
muito xexelenta. Perto desse rebotalho que está no poder, o governo Collor, com
o qual convivi, era a corte de Lorenzo de Medici. Mas o jornalismo pop venceu.
Vocês estão aí para não me deixar mentir. A historiografia contemporânea também
se apoia muito nos faits divers.
CC: Lula livre? Por quê?
NB: Porque a matilha de Curitiba só o condenou, sem prova
alguma, para concretizar a etapa 2 do golpe e impedir a eleição dele. E porque
ele é o único líder de verdade que o Brasil tem.
CC: Você pensa na hipótese de seu final vir a ser
completamente diferente daquele dos 69 anos do avô Beirão? Gostaria que isso
acontecesse?
NB: Escrevi que tenho o duvidoso privilégio de pensar todos
os dias na minha morte. As fantasias variam. Pode ser uma suprema arrogância
essa, mas não tenho medo.
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