Publicado originalmente no site da revista CARTA CAPITAL, em 9 de maio de 2019
Mino Carta: Sem Gianni, tudo muda para mim
Por Mino Carta*
Quem diz que o tempo ameniza a dor se engana. Pelo
contrário, aprofunda o abismo da perda
A morte de Gianni muda a vida e o mundo, a dor é de pedra.
Meu filho era desassombrado, letrado, culto bem mais que o pai. E era também um
homem de bem, generoso, de cortesia refinada e sem jactância, com a
contribuição de um senso de humor apurado. Sábio inclusive: aos 16 anos, depois
de promover rebuliços políticos no Colégio Dante Alighieri, onde cursava o
Clássico, saiu do Brasil ao vaticinar: “Isto nunca vai dar certo”. Voltava ao
País para visitar a família. Fora leitor de Gilberto Freyre e Raymundo Faoro,
de quem foi grande amigo, a despeito da diferença de idade. Gianni é que estava
certo.
O passado roda à minha volta como um carrossel. Vejo o
meninote de 3 anos que ao crescer pretendia ser “mostorista japonês” e alcanço
o enviado especial a guerras, motins, levantes, revoltas, cenários
tempestuosos, da Sérvia a Gaza, de Kiev a Trípoli, de La Paz a Bogotá. E o
especialista na Rússia pós-URSS, e o entrevistador de personalidades e do
anônimo frequentador das calçadas. Repórter completo voltado para a busca
obsessiva da verdade factual, insuflada pelo scholar, um alter ego criado pelos
estudos que de Los Angeles a Paris foram encerrados com Ph.D. em Ciências Políticas.
Quando eu descia a campo à beira de um copo para afirmar que a política não é
ciência, e sim, às vezes, excepcionalmente, arte, ele não hesitava em evocar
algumas das inúmeras bobagens que pronunciei ao longo da vida. O seu primeiro
livro reúne uma série de reportagens introduzidas por um substancioso ensaio
sobre o “novo jornalismo” admirado nos Estados Unidos, e obviamente no
colonizado Brasil, desde o momento em que Mailer, Capote, Talese, Tom Wolfe
deram para tratar de assuntos jornalísticos. Neste prólogo iluminante ele
demonstrava que na Europa sempre houve jornalistas habilitados a escrever com
qualidade literária, e quanto a prática é estimulante para os leitores.
E de súbito Gianni aparece meninote, enverga quimono de
judoca, ou o uniforme escolar a galgar impávido o palco do teatro do colégio
para cantar, ele desafinado irremediável. Ou já moço em roupas imaculadas de
tenista cercado de alunos adolescentes em um clube de Los Angeles, o futuro
scholar a dar aulas ali ou a algum ricaço de Beverly Hills para sustentar os
estudos na UCLA. O judoca não esqueceu a técnica dos golpes mais eficazes, o
que o levou certa vez a enfrentar em uma briga de bar um valentão de 100
quilos: golpe perfeito, o brutamontes voou para cair sobre o próprio Gianni e
quebrar-lhe o joelho esquerdo. Mas ele quebraria também o direito, na quadra.
A respeito de tênis foi seu segundo livro, uma história
brasileira do esporte branco escrita em parceria com Roberto Marcher,
ex-profissional que formou dupla com Thomas Koch. Assinaria mais três, entre
eles um best seller, a biografia de Miguel Reali Jr., amigo querido e
companheiro de belas jornadas parisienses. O mais notável, a meu ver, é aquele
publicado pela Boitempo, ousado e revelador, descida com tocha e corda à
procura da criação do mito garibaldino. Custou-lhe dez anos de pesquisa através
do Rio Grande do Sul, Uruguai, Argentina e diversos países europeus. Nesta
edição Nirlando Beirão relê uma obra profunda e insólita, potente como seu
herói. Outro é o protagonista do quinto livro, este sim digno do scholar,
retrato minucioso e demolidor de Silvio Berlusconi, volumosa tese de Ph.D.
Casado duas vezes, encontrou em Valérie a outra metade da
maçã de Sócrates, e ela se tornou uma filha para mim. Escreve: “Como sobreviver
a esta perda? Gianni foi o amor da minha vida, um ser excepcional”. Do primeiro
casamento nasceram dois filhos encantadores, Sophia e Nicolas, ambos londrinos
educados na França.
Estavam em Paris quando o pai partiu para a sua viagem sem
retorno. E agora estou com meu filho à beira do Danúbio. Chegamos a pé da praça
central de Praga onde a música de Mozart ecoa para sempre, atravessamos a ponte
que leva a Malastrana, o bairro de Franz Kafka, que o ministro da Educação de
Bolsonaro confunde com um prato da cozinha árabe, estamos sentados à mesa,
comemos um peixe do rio e os copos admitem conter um branco potável. A mesa
sempre se ofereceu para os nossos melhores encontros, sobretudo em Roma, sua
cidade preferida.
Quem diz que o tempo ameniza a dor se engana. Pelo
contrário, aprofunda o abismo da perda.
* Diretor de Redação de CartaCapital
Texto e imagem reproduzidos do site: cartacapital.com.br
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