Nem a doença infame conseguiu quebrar seu espírit
Publicado originalmente no site da revista CARTACAPITAL, em
30 de abril de 2020
Nirlando Beirão: amigo generoso que escrevia sinfonias
Por Sergio Lirio
Ler os textos de Nirlando Beirão era como ouvir uma
sinfonia. As primeiras palavras, os primeiros acordes do violino, acomodavam
gentilmente o leitor nas portas de uma montanha-russa de sensações. De repente,
não mais que de repente, soavam as flautas, os oboés, os clarinetes. Quando se
estava confortavelmente aninhado na melodia, explodiam os trombones, as tubas e
as caixas. Até o ápice. Até a iluminação.
Embora angustiado nos últimos tempos, como qualquer
brasileiro com um mínimo senso de responsabilidade, Nirlando manteve a
contundência em tom mavioso. Seus escritos nunca saíam do tom, nunca
desafinavam. Enquanto muitos gritam, urram, na tentativa de se fazer ouvir,
Nirlando sussurrava ao pé do ouvido – e era difícil contestá-lo. Um tipo de
talento que, me desculpem os demais brasileiros, só viceja entre as montanhas
de Minas Gerais.
Seu texto era elegante por que espelhava o espírito do
autor. Amável, generoso, divertido, Nirlando preenchia qualquer ambiente com
alegria e serenidade. Não sei dizer se tinha inimigos ou detratores – invejosos
talvez, muitos, imagino -, mas seria preciso um grau extremo de desumanidade e
boçalidade, no patamar de Bolsonaro, para lhe querer mal.
Nem a doença terrível, cruel, conseguiu dobrar esse
espírito. Em “Meus começos e meu fim”, livro autobiográfico, Nirlando descreve
assim a enfermidade que lentamente obstruiu sua voz e movimentos, que de forma
impiedosa o empurrava para uma jaula. “A noite me enche de palavras – aquelas
que o dia, pouco a pouco, me faz perder. As palavras, nos sonhos, me surgem
inteiras, em sua acepção gráfica, e em barafunda que sugere quebra-cabeças.”
Nirlando sussurrava ao pé do ouvido – e era difícil
contestá-lo
Os quebra-cabeças, ele montou até o fim. O último texto
publicado em CartaCapital chegou às minhas mãos na quarta-feira 29, véspera de
sua morte. Mordaz, tratava da profusão de fardados aboletados em cargos
públicos em Brasília e integrantes da guarda pretoriana que mantém um celerado
no comando do País. Irretorquível. Mais uma sinfonia.
Vi o Nirlando Beirão pela última vez no lançamento de “Meus
começos e meu fim”, uma memorável noite de autógrafos em um restaurante nas
imediações de sua casa. Mal pude cumprimenta-lo, dada a quantidade de amigos e
admiradores que o cercavam de carinho. Vieram as loucuras de 2019, as
atribulações do fim de ano e, por fim, o isolamento social. Adiei as visitas,
ficaram para outro dia, quem sabe a gente ainda se veria, vou levar um vinho da
próxima…
Ter ficado tanto tempo distante é uma das muitas frustrações
que carregarei até o fim dos meus dias. De gente como Nirlando Beirão, é
preciso ficar perto o máximo que se puder.
Texto e imagem reproduzidos do site: cartacapital.com.br
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