Foto reproduzida do blogdojuca e postada pelo blog, para ilustrar o presente artigo
REGISTRO de publicação feita no dia 20/05/2019
Texto publicado originalmente no site da revista
CARTACAPITAL, em 20 de maio de 2019
Nirlando Beirão é o mestre das palavras e das ideias
Por Mino Carta
Ele escreve sobre a aventura solitária de fim marcado à
nossa revelia
Permito-me comparar Nirlando Beirão a um alguém que vai ao
baile, praticante pontual de todos os passos e rodopios, mas destinado por sua
natureza a perceber a banalidade da festa e o labor ginástico dos dançarinos,
enlaçados com o empenho obsedante de evitar infamantes pisões, com a bonomia
que lhe é própria, sempre vincada pelo senso de humor em doses irreparáveis.
Conheço Nirlando, a deitar raízes na Beira Alta, donde
Beirão, faz 51 anos, ele não completara 20, eu tinha 34. Meados de 1968, eu
costumava comparecer na redação do Jornal da Tarde, que dirigira até poucos
meses antes, para visitar os amigos. Nirlando, que logo se tornaria o Nirla
pela minha voz, acabava de chegar de Minas, e de pronto gostei dele, entendi
que não se levava a sério e que, talvez, encarasse o jornalismo como atividade
de escasso alcance.
Sobram momentos de exceção: o Brasil da mais sombria Idade
Média precipitado pelo impeachment de Dilma Rousseff e pela prisão sem provas
de Lula, e tudo quanto se seguiu até a instalação da demência como forma de
governo, isto sim inquieta Nirlando.
Do seu livro, Meus Começos e Meu Fim, editado pela Companhia
das Letras, a ser lançado no próximo dia 26, pretendo falar. Uma obra-prima,
prometo e garanto, na escrita e no conteúdo, um livro sobre a morte e a vida, a
inexplicável aventura solitária de fim marcado à nossa revelia. Queira ou não o
Nirla, há páginas ali francamente proustianas, embora nas suas últimas leituras
ele tenha preferido Hemingway ao gigante da Recherche. Compreendo, mas não
concordo: aquele foi um jornalista que, ao escrever, lembrava-se dos seus
tempos de Toronto Star, enquanto se regozijava infantilmente quando Scott
Fitzgerald no mictório público não escondia seu irrisório membro viril. Resta a
verdade factual: o texto de Nirla é deslumbrante. Ele consegue tecer na mesma
tela o seu destino e o enredo percorrido pelo avô pároco, Beirão originário,
vítima da tentação da serpente enrolada no tronco da árvore do Bem e do Mal, e,
a despeito do pecado da fornicação proibida, punido pela excomunhão, digno, no
entanto, de levar uma existência de comerciante e morrer pranteado.
Aflorou à memória a história de Fi-lippo Lippi, grande
pintor e frade pecador em circunstâncias similares àquelas vividas pelo velho
Beirão. É certo, porém, que a Florença do século XV, já em plena Renascença,
era bem mais mundana e tolerante do que Mangualde e mesmo Viseu, em Portugal do
século XX, e Oliveira, em Minas, etapas do trajeto do avô. Até os papas tinham
filhos. Do pecado do frade artista nasceu outro extraordinário pintor,
Filippino Lippi, autor de Visitação dos Magos em uma capela de Santa Maria alla
Minerva, em Roma, obra de sublime encanto, saída de um pincel esteticamente tão
delicado quanto a pena do Nirla. O qual, graças à evocação do avô Beirão,
vasculha a sua infância, juventude e idade madura, busca enlevado as raízes
lusitanas e alcança os sentimentos mais profundos do leitor, ou até o obriga a
descobri-los pela primeira vez.
Nirlando e eu trabalhamos juntos muitas e muitas vezes desde
seu retorno de Paris, onde fora enviado pelo Jornal da Tarde após nosso
primeiro encontro e por vias diretas surgiu na redação de Veja, que eu dirigia
na oposição à ditadura. Illo tempore, o Nirla envergava em ocasiões de relevo
um paletó de veludo azul que lhe conferia uma distinção de algum retratado por
Gainsborough, ainda que minha mulher, Angelica, apontasse nos olhos dele o
brilho caridoso dos santos barrocos invocados por Zurbarán. Conviver com ele
foi e é risonho, de sorridente serenidade e de natural, escorreita afinação de
partituras aparentadas, sem contar a segurança que ele me infunde quando assume
tarefas específicas. Tenho por ele o carinho do primogênito pelo irmão
temporão.
Hoje me dói que ele trafegue na cadeira de rodas, me dói
muito o sonho por ele sonhado do sapateado angelical de Fred Astaire, ou
muscular de Gene Kelly, com a certeza, ainda assim, de que o Nirla lograria
fundir os dois estilos fosse ele bailarino. Agora o percebo, nem sei se de caso
pensado, aportar à lição essencial de Spinoza, o filósofo filho de judeus
portugueses forçados a viver na Holanda para fugir dos Autos da Fé. Nirlando
ouve-lhe a recomendação: nem fé, nem medo.
Texto reproduzido do site: cartacapital.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário